Em ano de Copa do Mundo, visitamos algumas quadras de pelada em BH.

 

Diz a sabedoria popular que há três assuntos que não se discutem: política, religião e futebol. Interessante como todos eles estão bastante relacionados um ao outro. Num ano de Copa do Mundo no Brasil, no qual se debate mais os impactos negativos que o evento está trazendo ao país do que, propriamente, o futebol, podemos perceber o quanto este último ganha ares religiosos se observamos uma forte tradição existente em Belo Horizonte.

As peladas nas quadras da capital são um velho costume, e adquirem status de religião pelo fanatismo envolvido, pela capacidade de reunir 20 marmanjos, toda semana, numa sexta à noite, num domingo de manhã cedo, ou, ainda, no meio da semana, para jogar bola, abdicando de um tempo de descanso, de sono ou de lazer com suas queridas namoradas e esposas. Faça chuva ou faça sol.

Para entender melhor esse universo, resolvemos visitar duas quadras da cidade, uma tradicional e uma nova. As experiências foram bem diferentes, mas não da forma como imaginávamos. Quando dizem que há muito escondido e jogado para debaixo do tapete no mundo do futebol, talvez estejam falando não só do circo armado pela Fifa e pela CBF, mas também desse universo proto-amador peladeiro, a julgar pelo que aconteceu. Mas, antes, comecemos pelo caso em que tudo deu certo.

 

Quando futebol não rima com sol

 

Tempo cinzento e chuvoso: fora assim a semana inteira. O caos instalado em Belo Horizonte no dia 24 de abril, inerente a qualquer pancada de chuva que cai na cidade, foi agravado pela manifestação de moradores despejados de suas ocupações pela Prefeitura, na Avenida Afonso Pena. O cenário era ideal para fugir pra casa o mais rápido possível, após o expediente.

Ou não. Alheios a todo o buzinaço nas ruas e ao andar apressado das pessoas, ansiosas pelo conforto do lar e temerosas com a iminência de mais um pé d’água, cerca de 20 peladeiros disputavam mais uma partida na Arena Tupinambás, na Rua Rio Grande do Sul, centro da capital. “Mesmo se estiver chovendo, não tem problema: a gente vem. Na semana passada, foi a mesma coisa”, conta Vagner Santos, vendedor de 33 anos, sorrindo, enquanto espera sentado para voltar ao gramado society, no tradicional esquema do “primeiro de fora”.

Vagner é um dos empregados de uma empresa que fica próxima à quadra. A companhia paga o aluguel da quadra, no valor de 150 reais a hora, para seus funcionários, toda semana. E, religiosamente, toda quinta à noite, após o expediente, eles estão lá.

O vendedor amarga o banco (ou cadeira do bar) por pouco tempo – logo a seguir, alguém marca um gol e é hora de trocas no time perdedor. A partida corre no melhor estilo peladeiro: o time de camisa contra os descamisados. O jogo é bem disputado, como uma brincadeira séria. “Jogo para dar uma corrida mesmo, desestressar. É bom pra relaxar”, explica Francisco Costa da Silva, outro vendedor da empresa. “Tô garrado aqui, porra!”, grita um atacante que, ignorado, poderia ter marcado o gol, caso a bola tivesse sido passada. Afinal, o estresse pode ser extravasado de várias formas.

“Quem é esse menino aí?”, alguém pergunta no meio do jogo, estranhando minha presença deslocada, de alguém que trajava blusa, calça e bota, em meio a marmanjos que corriam de short na noite de frio. Vagner, trajando uma camisa do Messi, fez jus ao argentino, mandando uma bola na gaveta. Outro peladeiro, com sua camisa do atacante Alexandre Pato, tentou enfeitar um lance e errou bisonhamente o passe: também fez justiça à habilidade do atual jogador do São Paulo. Um jogador emendou três chapéus seguidos nos adversários, jogada típica de um Ronaldinho Gaúcho – de outrora.

O assunto da noite era o Atlético. A demissão do treinador Paulo Autuori, mandado embora no final de abril após a derrota do time para o Atlético Nacional, da Colômbia, pela Taça Libertadores da América, repercutia fortemente entre os peladeiros do horário seguinte, que tomavam cerveja no bar. Entre xingamentos a Ronaldinho Gaúcho e também a Júlio Baptista, do Cruzeiro, eles acompanhavam o MGTV e vibraram quando apareceu na tela a notícia sobre a demissão do técnico, quase como se fosse o gol que faltara ao time na noite anterior. “O assunto aqui é futebol, sempre. Em quadra, é assim, uai!”, ri o atendente do bar, Lopes. Apesar disso, outras conversas surgiam, sempre pontuadas pelo noticiário: manifestações, legislação do trânsito… Tudo repercutia na mesa do bar.

Gols era o que não faltava na pelada, e o entra e sai fazia-se constante. Quem ficava de fora aguardava ansiosamente para voltar, mesmo que empapado de suor e sem muito fôlego. A bola também estava molhada pela umidade do gramado – mas nada que assustasse o goleiro de um dos times, com suas luvas de guarda-rede profissional. Do lado de fora, Wesley Henrique, motorista de 20 anos, esperava sua vez de voltar ao jogo, acompanhando ansiosamente cada lance. “Acho a quadra muito boa, e os colegas vem sempre. Mas é só pra jogar mesmo, porque eu não bebo”, conta. Para quem acha que futebol combina com sol e cerveja, a pelada daquela noite vinha para quebrar esse paradigma. À noite fria, juntava-se o discurso de Wesley, Francisco e Vagner: nenhum dos três bebia. “Mas alguns bebem, e ficam aí depois da pelada”, afirma Vagner.

“Semana passada teve churrasco e pagode”, conta Roberto Marques, um dos proprietários da quadra: “Ontem o pessoal ficou até mais tarde, vendo o jogo do Galo, que até tomou um ferro, no telão”. Administrador, ele entrou no ramo das quadras há quase dois anos. Segundo Roberto, a Arena Tupinambás recebe em torno de cem boleiros por dia, divididos em, mais ou menos, 40 horários por semana. A quadra enche muito mais durante a semana, quando o pessoal sai do serviço direto para a quadra. Nos finais de semana o movimento cai drasticamente. Roberto está tentando reverter isso, promovendo campeonatos no sábado e no domingo: “Não pode ficar nessa ociosidade”, lamenta. E admite, com um meio-sorriso: “Ainda bato uma bolinha de vez em quando também”.

A partida acaba. Uma hora não parece suficiente para satisfazer os peladeiros: para quem está dentro do jogo, passa rápido demais. O jeito é deixar a quadra para os próximos amadores (será que a cerveja não atrapalha?). Mas não tem problema: semana que vem tem mais. Faça chuva e faça manifestação.

 

O mistério da Quadra do Adão

 

Numa outra noite fria, fui ao bairro Santa Branca acompanhar uma pelada na tradicional “Quadra do Adão”. Havia conversado anteriormente com Márcio, administrador do local, e combinado o encontro. Na verdade, os telefonemas já tinham sido estranhos: fosse mais esperto, teria reparado neles o prenúncio do que viria.

Na primeira ligação, Márcio aceitou o combinado de que eu acompanharia a pelada, com uma condição: queria estar presente. Por isso, no dia em que eu aparecesse, deveria avisá-lo. Pensei tratar-se apenas de vaidade. Aquela coisa de aparecer no jornal, contar pra família, mostrar pros amigos, compartilhar no Face. Tudo bem. Na ligação feita no dia da visita, o tom mudou um pouco: “Estarei lá. Quero ver o quê que você está querendo mesmo”. Mas eu já não tinha explicado?

Peguei o ônibus das 17h15 para chegar cedo na pelada das 19h. Desci no bairro quase deserto e procurei a rua: “É aqui”. O endereço batia, mas a fachada não dizia “Quadra do Adão”, e sim, “Companhia do Futebol Forbex”. Não foi surpresa: no Google, era possível encontrar as duas referência, sendo a primeira, provavelmente, um nome popular ou antigo.

No local, ao lado esquerdo, ficava um bar, no meio, a quadra e, à direita, a recepção, de onde saiu Márcio para me cumprimentar. Sentamos numa das mesas e ele abriu a conversa: “Afinal, o que você está querendo fazer aqui na quadra?”. Ciente de que já tinha explicado ao telefone, por duas vezes, temi ser um caso de amnésia e voltei a dizer tudo, torcendo para que ele não se esquecesse dali a meia hora. Contei que era do curso de Comunicação Social da UFMG e estava fazendo uma matéria sobre a tradição das peladas em Belo Horizonte para a revista Transite. Márcio fez questão de dizer que estudara Administração na Federal e que fizera uma pós em Marketing, e por isso cuidava do setor na quadra.

Em momento algum duvidei da veracidade de tal informação, a julgar pelo excelente tratamento recebido até aquele momento. Mas Márcio duvidou de mim: pediu meu comprovante de matrícula. E examinou-o não como fazem os seguranças em shows ou os caixas no cinema, e sim, com muito cuidado e atenção. Anotou meu nome completo em sua agenda. E continuou: “Por que você escolheu logo esta quadra?”. Respondi que era pela tradição do espaço, e que um professor, que morava próximo, achava curioso o fato de o local estar sempre cheio, e por isso fez a sugestão. Márcio empunhou a caneta imediatamente: “E qual o nome desse professor?”. Respondi (desculpe, Bruno) e ainda fui questionado sobre qual disciplina ele ofertava. Pós em Marketing ou em Investigação criminal?

Márcio ficou curioso em relação à Transite, o que muito me deixou lisonjeado. Pediu para ver a revista eletrônica. Acompanhei meu Sherlock Holmes particular para a recepção: “Tenho outro escritório lá no Buritis”. É uma pena: o deslocamento de Santa Branca até lá deve ser exaustivo. Mas Márcio era incansável: olhou com cuidado cada detalhe do site e interessou-se pela matéria sobre os campos de várzea. Encontrando vários nomes no site, mas não o meu, disparou: “Não vejo seu nome no site, cadê?”. Tive que explicar que eu era novo na revista, e que o nome da equipe completa poderia ser encontrado no “Sobre nós”.

“Mineiro é muito desconfiado, você sabe!”, riu Márcio. “Até demais”, respondi. Mas os mineiros não eram um povo hospitaleiro também? Márcio quis saber o que seria perguntado. Já cansado do interrogatório, tirei a pauta e dei para que ele lesse e se lambuzasse com tanta informação. Talvez ali todas as respostas que ele queria pudessem ser encontradas, nas perguntas elaboradas. Ele resolveu respondê-las: um avanço, enfim! Passaria de entrevistado para entrevistador. Porém, tão logo mencionei o nome “Quadra do Adão”, a conversa esfriou: “Você está enganado, aqui não é ‘Quadra do Adão’. Adão é o cara do bar ali, ó! Aqui é ‘Companhia do Futebol Forbex’”. Ignorei esse detalhe e prossegui a conversa.

Algo desenhava-se estranho, na medida em que as respostas de meu entrevistado eram evasivas e mais curtas do que suas perguntas anteriores. Indaguei quão antigo era o local, o que ele não soube responder. Quando questionado se era o fundador da quadra, irritou-se: “Não, não sou! O quê que interessa isso?”. Nada, ora, é só para a matéria. Você pode perguntar o que quiser e eu, não?

A história do Adão ainda estava estranha, por isso deixei a cereja do bolo para o final: “A quadra é conhecida como ‘Quadra do Adão’, certo?”. “Não tem nada de ‘Quadra do Adão’! Nunca ouvi isso. Você que tá falando isso aí de Adão!”, respondeu, nervoso. Márcio havia sido atingido num ponto fraco, aparentemente. Retruquei que não era eu que estava falando, que estava no Google, inclusive no Maps. Pedi para ele olhar, mas Márcio não quis. Talvez o Google estivesse errado.

mapa quadra do adão

Encerrei a “entrevista” e pedi para conversar com os peladeiros, agora que a partida estava se iniciando (sim, já eram 19h). Márcio, desconfiado como bom mineiro que é, disse que era melhor não. “É uma coisa muito particular deles, muito pessoal, deixa eles pra lá… Pergunte pra mim, sou peladeiro também!”. Expliquei que a ideia era acompanhar a experiência dos jogadores, e não apenas conversar com um. Nada feito.

Desisti, frustrado. Márcio vencera pelo cansaço, e nem entrei em campo. Derrota por W.O. Disse para eu visitar outras quadras, que havia muitas por aí. “Podia ter dito isso pelo telefone”, respondi. O que ele temia, nunca irei saber.

Na rua, passei por um boteco próximo, cheio de velhinhos. Resolvi perguntar: “Onde é a Quadra do Adão?”. Um deles logo esclareceu: “Uai, é onde vocês estavam, acabei de ver vocês lá!”

E, caso tenha perdido sua agenda, Márcio, anote meu nome de novo:

Felipe Borges

Futebolista amador de pouco sucesso, ficou feliz por esquentar o banco de reservas, ainda mais naquelas noites frias e chuvosas. Mas garante que se sai melhor no PlayStation.