Entrevistamos o Diabo.

 

Uma tarefa: falar com o demônio. Um obstáculo: achá-lo. Um objetivo: entendê-lo. Foi nos dada a incumbência de conversar com o diabo. Satã, Demônio, Lúcifer, Coisa-ruim, Capeta, do que quer que você queira chamá-lo, não é um ser muito fácil de se rastrear – conseguir uma exclusiva, então, é quase impossível. Na cidade de Belo Horizonte, nos enfiamos atrás de um computador e chamamos seu nome, três vezes.

Temido, admirado e famoso. Uma das figuras mais míticas da história do ser humano, é associado na maioria das vezes à maldade e ao perigo, ao inferno e à danação. Embora existam crenças que percebem essa figura de uma forma não negativa, que desaproxima de uma imagem criada principalmente pelo imaginário cristão, o diabo está fortemente ligado à representação do mal.

Poderíamos buscar bençãos, graças e gracejos do simpático novo Papa. Poderíamos procurar por deuses diversos nos templos e fora deles. Poderíamos até peregrinar até Meca ou tentar achar a nona encarnação de Vixnu. Mas queríamos ouvir o outro lado da história e encontrar, em uma diversidade de demônios, algum que quisesse trazer sua mensagem até nós.

Partimos de uma busca no Google para identificar onde poderíamos encontrar o diabo para um bate-papo. Mesmo não encontrando email ou currículo Lattes, conseguimos algumas palavras com ele. Ou com algumas de suas muitas faces.

 

Igreja Universal

 

“Olá Lívia Araujo. O seu numero de protocolo e 29046074. Como posso lhe ajudar?”.

Um dos primeiros resultados da busca nos levou ao site da Igreja Universal, famosa operadora de milagres. Estávamos à procura de exorcismos, e resolvemos investir na “Corrente de libertação”, culto que acontece toda sexta, em variados horários, nas igrejas universais de todo o país. Para nossa sorte, tivemos a assistência de um pastor online no site da Universal para tirar nossas dúvidas. Ao inserir nome, email e telefone, lá tínhamos uma janela para conversar e um número de protocolo para reivindicar.

O Pastor Carlos, que logo entrou no chat, digitou: “poderia se dizer que libertação e exorcismo são a mesma coisa, os dois são o ato de remover espíritos imundos da vida de uma pessoa”. Decidimos ir conferir, após sermos convencidos de que nos libertar era preciso, pois os espíritos imundos estariam provavelmente nos perseguindo e não nos deixariam em paz até nos possuírem. O pastor garantiu que seria tudo muito simples: “é feita uma oração ordenando que todos os demônios saiam das pessoas e sigam para o abismo”.

Escolhemos o suntuoso templo da Universal que fica no Lourdes, na esquina da Avenida Olegário Maciel com a Rua Timbiras, no centro de Belo Horizonte. Participamos de dois cultos, em sextas alternadas, no tal Dia da libertação, como constava nos site: “As reuniões de libertação da Universal neste sentido se baseiam em ensinamentos bíblicos e também em estimular as pessoas para que perseverem, tenham a autoestima elevada e sejam determinadas na conquista de uma vida cheia de paz interior.”

Mesmo se tratando de uma sexta no meio da tarde, nas duas vezes havia muita gente na igreja – não que chegasse perto dos cultos de 15 mil pessoas nas reuniões especiais – mas o bastante para enchê-la com seus cânticos e louvores. Pessoas de todo o tipo vinham se libertar: donas de casa, velhinhos simpáticos, homens e mulheres bem e mal vestidos, jovens de alargador e boné de aba reta, unhas pintadas de preto ou cabelo colorido. Após alguns preâmbulos para a entrega do dízimo, oração para os dizimistas e a garantia de quem chegou atrasado também poder entregar o dízimo- pois, sim, o pastor ainda colocará a mão sobre a sua cabeça e lhe concederá a benção- presenciamos o desafio da cruz.

Neste momento do culto, os fiéis passam pelo arco coroado por uma cruz vermelha em frente ao altar e lá deixam os pecados, as maldições, os trabalhos de macumba, os problemas financeiros, saindo purificados para a unção. Aqueles que se sentem mal, começam a estremecer com calafrios ou que de repente tem muita vontade de ir embora são convidados a voltar à frente do altar, para que os obreiros e o pastor orem por eles e retirem os espíritos – demônios – que lhes estão causando tais males.

As pessoas recebem orações, coros de “sai!”, enquanto a mão de um obreiro recai sobre sua cabeça e tenta ajudar a expulsar o mal. Algumas não tem o demônio expulso tão facilmente e são levadas para cima do altar, às vezes aos gritos ou risadas histéricas, enquanto se debatem nos braços dos obreiros, que os seguram de alguma forma. São postos de joelhos e o pastor faz o seu melhor para libertar o fiel: ora sobre a pessoa, discute ou grita com o demônio. Gravamos um desses momentos e conseguimos, com o pastor como repórter, uma legítima entrevista com o demônio:

 

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O Capetalismo

 

Falar do diabo é lembrar das aulas na Catequese, das tentativas que fazíamos de jogar cabelo na privada e dar descarga três vezes para que ele aparecesse; ou das cartas do baralho de Yu-Gi-Oh! que alguém queimou na escola porque eram do demônio. Indo um pouco mais longe, conversando com professores, nos trouxeram a memória da figura icônica do Capetalismo: notável personagem dos movimentos sociais nas décadas de 80 e 90 em Belo Horizonte. Vestido de vermelho, com uma capa preta, chifres, tridentes e pasta do FMI, corria por toda a cidade, provocando os cidadãos, infernizando policiais e beatas – nas manifestações, no sindicato, na frente da igreja. Polêmico e fedorento, em ritmo afoito, era visto por aí como um diabo belo-horizontino e revolucionário.

Seu criador – Capetalismo aposentado – é o professor Catatau, Moisés Augusto Gonçalves, também ator e escritor, além de ex-frei franciscano no Paraná. Marcamos de nos encontrar para um café e ele nos advertiu que chegaria na hora: “o capeta não atrasa”. Jocoso, burlesco, satírico e pensador- foi como ele descreveu o Capetalismo. Usado como resposta à sua formação anterior, católica e conservadora, o personagem emerge do imaginário social e é criado para identificar o sistema da época. No fim da ditadura, em um contexto de transição para a democracia, um Brasil cheio de dívidas e dúvidas era encarnado por Moisés. O ator se vestia como capeta ao menos três horas por dia, e, de cinco dias na semana passou para todos os sete seu expediente nas ruas. Sua roupa não era frequentemente lavada, mas enfiada dentro da maletinha e deixada para propositalmente feder e ser mais uma forma de chamar a atenção e provocar discussões.

“Sou aquele que destroi vidas e sonhos, prometendo a felicidade para depois e dizimando os direitos agora”, o Capetalismo se apresentou para mim ao tomar um cappuccino. Ele buscava brincar com a separação maniqueísta de bem e mal da nossa sociedade, encarnando em si todos os problemas sociais e virando de fato um demônio. Para Moisés Augusto, Deus e o diabo são as duas maiores invenções do homem, usadas ao longo do tempo como ferramentas poderosas de ordem social, baseadas no temor divino, separando sempre o céu do inferno, o sagrado do profano, o bem do mal.

“Abaixo a repressão! O capeta é do povão”, foram gritos que ecoaram nas manifestações em que o Capetalismo aparecia. O professor Catatau provocava indagações e também indignações nas ruas, tendo sido detido duas vezes pela polícia em suas andanças pela cidade. Durante uma reação à Medida Provisória nº 50, em 1989, que diz do direito à greve, manifestantes ficaram cara a cara com a Polícia Militar e o Capetalismo gritava: “Vocês trouxeram carinho pra nós?” apontando para os cassetetes dos policiais, enquanto brandia uma clave negra: “nós também temos carinho pra vocês!”.

Embora a brincadeira fosse com uma arma feita de papel e plástico, uma troca de olhares entre os policiais bastou para Moisés antecipar o perigo: correu assim que pôde. Era rápido, mas já foi pego e deixado em um camburão por quatro horas certa ocasião, sendo liberado logo depois. Em sua última aparição, no ano de 1996, foi detido em um tumulto frente à Igreja Universal, denunciado por invadir a igreja. Na realidade, o Capetalismo estava lá fora, discutindo e provocando as pessoas, aproveitando da cena que os fiéis fizeram ao vê-lo. “Sou um ator de rua, afinal de contas”, é o que diz Moisés em sua defesa. Foi levado para a delegacia e lá os policiais se divertiram tirando fotos do professor ligando para o advogado do diabo.

Crianças gostavam de se aproximar, para o terror de suas mães, que as afastavam. Bíblias voaram quando o Capetalismo trombou com religiosas na rua. “Sangue de Jesus tem poder!”, gritaram, e ele completou: “e salva, amém!”, antes de sair correndo. Tumultos se formavam, alguns ouviam, outros passavam longe. Havia quem o chamasse de louco, mas também os que desafiavam: “escuta ele e diz se não faz sentido”.

 

O Demônio da internet

 

Muitas pessoas já tentaram encarnar o demônio e, quando a Internet tentou, o resultado foi esse: Obaid, um diabo às avessas, que promete resolver suas dúvidas. Mesmo estando sempre disponível, não espere que ele seja simpático nem que responda a todas suas perguntas. Com erros de português e respostas mal formuladas para responder os internautas a qualquer hora do dia, seu site nos adverte: “aconselho acender uma vela e apagar as luzes antes de começar a perguntar”. Nós tentamos seguir as instruções, mas o resultado foi o mesmo: um diabo sem sentido.

Na verdade, seu objetivo é assustar. E para que ele funcione, você deve saber o seu segredo. Feito para pregar peças nas pessoas, o Obaid tem lá seus “macetes”, que vários vídeos no youtube prometem ensinar. Para que o diabo online responda corretamente, você deve perguntar a ele, digitar a letra Ç e, em seguida, a resposta que deseja que ele responda. É fácil enganar seus amigos, pois, quando você digita o Ç, ele lê um código e o que você escreve se torna, na medida em que digita, a palavra Obaid. Assim, é só apertar “Responder” e Obaid te diz com quem seu ex está ficando, qual a cor da sua roupa ou o que você fez no verão passado.

Mas como se vira sem trapacear? Como ele responde as perguntas sobre ele mesmo, sem que ninguém lhe entregue a resposta antes?

Conseguimos, então, um pingue-pongue com Obaid e ele nos contou sobre sua glamurosa vida. Mais ou menos.

Lívia Araújo

Estudante de jornalismo que se viu em crise de identidade religiosa, flagrada fazendo o sinal da cruz na Igreja Universal e compactuando com o capeta (lismo), que lhe pagou um cappuccino no Palácio das Artes e lhe deu um presente. Teve problemas com o gravador (pelo jeito a voz do capeta não é facilmente captada) e secretamente se divertiu quando um obreiro repreendeu e ficou vigiando José por gravar o culto. Não seguiu as instruções para falar com Obaid, mas já tentou chamar o diabo no banheiro da escola.

José Henrique Pires

Falar com o diabo não foi fácil nem simples. A princípio, um universo mítico que gira em torno dessa figura faz com que facilmente se caia no senso comum. Frequentar o culto da libertação na Universal, conversar com um professor, ou consultar um Diabo virtual, foram experiências de caminhos distintos numa tentativa de falar com, e sobre o Diabo, dissociando este de uma imagem negativa oriunda principalmente do cristianismo.