Desvendamos quem são, afinal, as pessoas cujos nomes identificam os auditórios da Fafich, na UFMG.

 

Nomes servem para identificar. Em nossas experiências diárias, circulamos por diversos ambientes, e o fato de ruas, bairros, prédios, salas, bibliotecas, auditórios, dentre outros, serem nomeados, ajuda a nos localizar, lembrar e transitar por aí.

Mas nomes não servem apenas para identificar. O batismo de espaços de concreto por nomes de pessoas intenta também preservar a memória, transmitir às gerações seguintes um nome que mereceria recordação. Mas será que alguém se lembra?

Estudantes, professores e funcionários da UFMG vivenciam diversos ambientes do campus: as ruas, os prédios, as salas, os auditórios, as bibliotecas… Nada mais normal do que assistir a uma palestra, combinar de estudar ou apenas marcar uma conversa nesses espaços.

Quem circula pelos prédios da universidade acaba se acostumando a repetir esses nomes de forma corriqueira, como numa intimidade indiferente: “A palestra é lá no Sônia Viegas”, “O debate é no Baesse ou no Bicalho?”. Dizemos os nomes que batizam esses ambientes sem pensar muito de quem se trata. Só interessa saber se a sala tal fica do lado esquerdo ou direito do prédio, em qual andar. É quase como se fossem números – frios, distantes, exatos. Mas não são.

Por toda a universidade, em cada prédio, espaços importantes recebem nomes próprios, tomados emprestados de personalidades famosas. Famosas? Se não para a maioria de nós, eles o são para muita gente e, não à toa, nomeiam ambientes da UFMG. Mas, afinal, quem são as pessoas que dão nome a esses locais, e o que fizeram para receber essas homenagens?

Esta série da Transite irá tratar justamente disso. A partir de agora, os nomes deixam de ser vazios para nós, e ganham vida novamente. Cada vez que você estiver num lugar desses, saberá um pouquinho mais sobre a personalidade ali homenageada  – afinal de contas, é essa a ideia da nomeação: preservar a memória.

Começaremos pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), revelando quem foi Antônio Luiz Paixão, que dá nome à biblioteca, Sônia Viegas, Carlos Baesse e Luiz Bicalho, que batizam os auditórios do prédio.

 

Antônio Luiz Paixão

 

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Antônio Luiz Paixão. Foto: Leandro Simões. Acervo: Jornal Alternativa DCS/UFMG

Antônio Luiz Paixão, que dá nome à biblioteca da Fafich, nasceu em 1947 e foi professor do Departamento de Sociologia da UFMG. Tornou-se referência, no país inteiro, nos estudos de sociologia das instituições e, mais tarde, em sociologia do crime – área em que foi pioneiro. “Ele era intelectualmente privilegiado. Se houve alguém brilhante na nossa geração, foi o Paixão”, conta Antônio Augusto Prates, professor do mesmo departamento, que conheceu seu xará ainda no Colégio Estadual, e que foi colega e parceiro de pesquisa até o falecimento de Paixão.

De fato, já em 1975, Paixão seguia correntes teóricas avançadas para a época, como o interacionismo simbólico, a etnometodologia e a microssociologia, quando a sociologia estrutural marxista não era questionada. Segundo Prates, Paixão conseguia ser unânime, superando as diferenças ideológicas no interior da sociologia e circulando bem entre as diversas áreas do conhecimento. Ainda segundo ele, seu colega vivia rodeado de alunos, com quem tinha uma relação muito próxima, sendo um orientador exímio, tanto de estudantes de graduação como de pós.

Ao mesmo tempo em que varava noites lendo livros, acompanhado do cigarro inseparável, Paixão era extremamente bem-humorado, e um piadista nato, sempre fazendo os outros rirem. “Me lembro uma vez, nos anos 90, quando fui de ônibus com o pessoal da sociologia para um encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG). A gente foi rindo daqui até lá, com o Paixão no meio do ônibus, contando piadas”, recorda o professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, Carlos Roberto Horta, o Bebeto, de quem Paixão foi padrinho de casamento.

Boêmio, o falecido professor adorava conversas de bar. Bebeto relembra outro episódio marcante: “Em 1978, quando o Papa João Paulo I morreu, logo após ter sido empossado, eu resolvi dar uma saída da universidade para comemorar o fato inédito de que teríamos três papas num mesmo ano. Encontrei o Paixão pelo caminho, e ele se juntou a mim. Ficamos por horas bebendo, e acabamos sem condições de dar aulas depois”.

Após sua morte, pouco tempo demorou até que a homenagem fosse feita. “Logo pensamos na biblioteca porque o Paixão era uma fonte de inspiração intelectual. Não era uma liderança política, e, sim, intelectual, de uma forma muito plural”, explica Prates. Assim, o espaço saiu de um  insosso “biblioteca da Fafich” para um nome próprio, bem mais apaixonante.

Para ler: Recuperar ou punir? Como o Estado trata os criminosos, de Antônio Luiz Paixão (Ed. Cortez, 1987)

 

Sônia Maria Viegas Andrade

 

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Sônia Viegas em entrevista para o jornal Estado de Minas, em 1988. Fonte: Escritos: Vida filosófica (Org. Marcelo Marques Pimenta)

Sônia Viegas em entrevista para o jornal Estado de Minas, em 1988. Fonte: Escritos: Vida filosófica (Org. Marcelo Marques Pimenta)

“Soninha”: é assim que todos ainda se referem a Sônia Viegas, que nomeia o maior auditório da Fafich. Muito mais do que pela baixa estatura da antiga professora do Departamento de Filosofia da UFMG, o apelido no diminutivo prevalece pelo carinho guardado por ela. Sônia lecionou na UFMG por 22 anos, até sua morte prematura, aos 45 anos, em 1989, causada por um câncer de mama.

Apesar do período relativamente curto de atuação acadêmica, Sônia é dona de uma vasta bibliografia sobre filosofia antiga, moderna e contemporânea, e que inclui artigos sobre cinema, literatura e artes plásticas. Sua dissertação de mestrado virou livro, intitulado A Vereda Trágica do ‘Grande Sertão: Veredas’. O trabalho é uma leitura filosófica da obra de João Guimarães Rosa, cuja tese é de que o escritor, por meio do relato poético das viagens do jagunço Riobaldo pelo interior de Minas Gerais, faz uma reflexão filosófica sobre o sentido da existência humana no mundo. A ideia que orienta a pesquisa é de que a ação humana só encontra seu acabamento e significação plenos na medida em que é contada, narrada – ou seja, na medida em que vira palavra.

Tanto a dissertação quanto diversas outras produções de Sônia, que incluem também as poesias e cartas escritas por ela, podem ser encontradas na série Escritos, que reúne o material em três volumes: Filosofia e Arte, Filosofia Viva e Vida Filosófica. A obra foi organizada pelo professor de Filosofia da UFMG Marcelo Marques Pimenta, que foi orientando de Sônia no mestrado.

Segundo Marcelo, Sônia foi homenageada com a nomeação de um auditório na Fafich por ser uma das professoras mais importantes da faculdade, sendo um ponto de convergência entre alunos de todos os cursos, além de detentora de uma capacidade de atrair para a faculdade profissionais de outras áreas, inclusive dos que já tinha saído do universo acadêmico: “Todos queriam ouvir a Soninha, e ela fazia muito bem a ponte entre universidade e comunidade em geral”. Segundo ele, isso era possível porque Sônia tinha uma grande capacidade de comunicação, além de sensibilidade para perceber a demanda do interlocutor, combinando uma formação erudita com uma hábil expressão argumentativa. “Ao falar, ela tocava a cada um de nós, individualmente. Tanto que, mesmo em interações coletivas, eu sempre tinha a impressão de que ela estava se dirigindo especificamente a mim”, relembra Marcelo.

Para ler: Série Escritos – Filosofia e Arte, Filosofia viva e Vida Filosófica, organizado por Marcelo Marques Pimenta (Ed. Tessitura, 2009)

 

Carlos Eduardo Baesse de Souza

 

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Carlos Baesse. Foto: Gustavo Lacerda. Acervo: Jornal Alternativa DCS/UFMG

Carlos Baesse. Foto: Gustavo Lacerda. Acervo: Jornal Alternativa DCS/UFMG

“O Carlos está entre as cinco pessoas mais mais inteligentes, bem-humoradas, afetuosas e respeitosas que eu já conheci na vida. Está num lugar especial”. Quem diz é a professora aposentada do Departamento de Ciência Política da UFMG, Vera Alice Cardoso Silva. Vera já dava aula na UFMG, nos anos 80, quando Baesse iniciou sua docência no mesmo curso. A partir daí, ambos desenvolveram uma relação profissional e de amizade, que se estendeu até a prematura morte de Baesse.

Baesse era defensor da democracia desde os tempos da ditadura, quando ainda era colega de colégio de Antônio Luiz Paixão. Assim como este, também era de muito bom humor e astral elevado, além de bastante espirituoso, segundo Bebeto. O professor conta que, em 1989, nas primeiras eleições para presidência no Brasil após o longo período de ditadura militar, um dos candidatos entrou de última hora na disputa: ninguém menos do que Sílvio Santos. Uma pesquisa da época apontava que o segundo turno seria entre ele e Fernando Collor de Melo, tirando do páreo candidatos como Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizolla, Mário Covas e Paulo Maluf. Parte da população começou a fazer pressão para que a candidatura de Sílvio Santos fosse invalidada, por meio de telegramas enviados ao Tribunal Superior Eleitoral, que decidiria se ele poderia ser ou não candidato. “Até hoje, me lembro da mensagem que o Baesse mandou: ‘Professor universitário em pânico pede clemência’. Ele era autor de frases muito divertidas, e tinha sempre umas tiradas espirituosas”. Para a tranquilidade de Baesse (e de tantos outros), a candidatura foi impugnada.

Baesse não era engajado apenas politicamente. Segundo Vera, era extremamente dedicado às aulas e aos estudos, além de ser querido por todos, desde professores e alunos até funcionários. Tanto que a homenagem de batizar um auditório da Fafich foi apoiada de forma unânime, “pois ninguém queria que a memória dele se perdesse”.

Em vida, o professor, que vivia visitando a Serra do Cipó e adorava motocicletas (tendo até ido parar no hospital por conta de um acidente mais sério), teve com uma de suas principais produções o artigo “O capitalismo contemporâneo: o papel do Estado e o problema das crises”. Era também profundo conhecedor das obras de Montesquieu, Voltaire, Diderot e Rousseau. Além disso, atuava como tradutor de trabalhos científicos, visto que era poliglota. Em 1994, após a morte de Baesse, o professor Adriano Mitre organizou o livro Ensaios de teoria e filosofia política em homenagem ao Prof. Carlos Eduardo Baesse de Souza.

Uma leitura: Ensaios de teoria e filosofia política em homenagem ao Prof. Carlos Eduardo Baesse de Souza, organizado por Antônio F. Mitre (Ed. UFMG, 1994)

 

Luiz de Carvalho Bicalho

 

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Nascido em 1920, Luiz de Carvalho Bicalho foi notório pela trajetória acadêmica no Departamento de Filosofia da UFMG e pelo ativismo político. Mais velho que os demais homenageados na Fafich (e professor tanto de Bebeto quanto de Vera Alice), foi bastante engajado nos movimentos de esquerda e na luta pela democracia, desde 1964. Segundo Vera, muito da homenagem a Bicalho deve-se à questão política.

“Acompanhei a perseguição que o Bicalho sofreu, e ele sempre foi extremamente fiel aos seus princípios de esquerda. Era uma autoridade em marxismo”, afirma a professora. Além de Marx, Luiz Bicalho, que fez parte do Partido Comunista Brasileiro, era grande entendedor da filosofia de Jean-Paul Sartre.

Bebeto conta que Bicalho marcou época. Sempre envolvido com os movimentos políticos, era convidado constantemente para dar seriedade a alguma comissão ou reinvindicação organizada por professores mais jovens, já que possuía cabelos brancos, o que conferia respeitabilidade à causa. Quando uma delegação era enviada para Brasília, para pressionar o Congresso, geralmente ele acabava no meio para fazer o papel de senhor mais velho, “e sabia disso, prestando-se alegremente à função”, nas palavras de Bebeto. “Quando estava tudo pronto, alguém sempre perguntava: cadê o cabeça-branca pra gente ir?”, continua.

Uma prova da popularidade de Bicalho ocorreu ao final da ditadura militar. O professor foi o primeiro diretor da Fafich eleito com consulta à Comunidade. Naquela época, uma lista com seis nomes era enviada para escolha pelo Ministro da Educação. Bicalho foi o mais votado e integrou a lista, mas acabou não sendo escolhido por questões políticas, já que traços do período militar ainda se faziam presentes.

Uma leitura: O Capital: Resumo Literal – Condensação dos Livros 1, 2 e 3, de Luiz Carvalho de Bicalho (Ed. Novos Rumos, s/d)

Felipe Borges

Foi praticamente chamado de Nelson Rubens durante a apuração da matéria, por querer saber demais da vida dos professores homenageados. Sentiu-se ofendido, mas OK, OK.