Conversamos com travestis e transexuais em situação de rua em Belo Horizonte sobre os motivos que as fizeram sair de casa, suas experiências na rua e as perspectivas de uma vida melhor.
“Lopes é de família. Sônia é o primeiro nome que eu tive, social. Sissy é apelido de minha mãe”, explica Sônia Sissy Kelly Lopes. “Eu venho de uma pequena família de Minas Gerais, pequenos agricultores familiares. Eu sou do leste de Minas, Aimorés. […] Eu sabia que era uma pessoa um pouco diferente das crianças com quem eu fui criada. Aquilo me perturbava bastante. Eu sofria depressão constantemente, eu me cortava com gilete e cheguei a ser internada em hospital psiquiátrico como pessoa louca por causa desse comportamento e pelas pessoas me encontrarem em casa vestida com roupas femininas e maquiada”, ela conta.
Sônia é mulher transexual e, hoje, aos 60 anos, vive na República Maria Maria, no bairro Lagoinha, casa da Prefeitura de Belo Horizonte para mulheres em situação de rua. Essa é a única casa com o perfil em Belo Horizonte, em que mulheres podem viver durante todo o dia, e não apenas pernoitar, como no caso dos albergues da cidade.
A República Maria Maria tem capacidade para até 40 moradoras. Somente três são transexuais, incluindo Sônia. Em BH e outras cidades, ela já precisou viver em abrigos para homens. “Eu me sinto bastante feminina, eu me sinto mulher mesmo. Você ter que dormir em um quarto junto com três, quatro homens, não é fácil. Não é fácil você ser obrigada a usar o banheiro masculino. […] Eu nunca ‘retroagi’ a usar roupa masculina, eu usava uma roupa mais unissex e ficava um pouco mais comportadinha, mas eu nunca deixei de ser a pessoa que eu sou”.
República Maria Maria para mulheres em situação de rua em BH.
Sônia saiu de casa aos 17 anos, após uma tentativa frustrada de entrar para o Exército. “Pensei que o Exército pudesse salvar-me de todos aqueles meus medos. E o Exército me dispensou logo de cara, eu tinha uma carinha já bastante afeminada”. Depois da rejeição, foi para Vitória, no Espírito Santo, onde conheceu travestis, transexuais e prostitutas na zona boêmia, e começou a fazer faxinas.
“Com 18 anos, eu já estava bem hormonizada e comecei a trabalhar como profissional do sexo”, ela conta. O restante da vida foi uma sucessão de viagens e amores por vários estados do Brasil e quase uma década na Europa, de onde retornou em 1991 diagnosticada soropositiva.
Sônia Sissy, militante, conta já ter dado muitas outras entrevistas.
Ela diz sentir falta de programas de acolhimento específicos para pessoas LGBT em situação de rua em Belo Horizonte. Essas pessoas somam 6,3% da população de rua da cidade, segundo censo de 2014 realizado pelo Centro Regional de Referência em Drogas da UFMG, o CRR. 0,8% declara ser transexual, dentro de um universo de 1.827 pessoas em situação de rua. Isso representa cerca de 15 pessoas.
“A gente questionou muito esse censo. Existem vários fatores que geram uma subnotificação quando a gente fala da população LGBT como um todo”, conta Elizabeth Marques, analista de políticas públicas no Centro de Referência LGBT de BH. Segundo ela, muitas pessoas LGBT não revelam sua orientação sexual e/ou identidade de gênero ao serem abordadas. Elizabeth acredita ainda que o censo não foi capaz de localizar grande parcela dessa população, em especial as pessoas transexuais e travestis.
Sônia Sissy diz que, em reunião no Centro de Referência da População de Rua durante a Semana de Visibilidade Trans, no dia 26 de janeiro, soube que há pelo menos 18 pessoas trans hospedadas em albergues da cidade. Ela estima que, além dessas e das outras duas mulheres que vivem com ela na República Maria Maria, possam existir cerca de 30 pessoas trans “que têm trajetória de rua ou estão em situação de rua” em BH, ou seja, 50 pessoas. “Então, meu amor, há um trabalho muito grande aí pra ser feito”, ela diz.
Militante e frequentemente envolvida em encontros e rodas de conversa sobre transexualidade, Sônia conhece muitas mulheres transexuais e travestis em situação de rua. Nas imediações da região da cracolândia de BH, apresentou-nos duas delas, que atualmente vivem em barracas improvisadas próximas a uma das mais movimentadas avenidas da cidade.
Sereia no asfalto
“Porque eu gostei de sereia. Acho bonito. Sereia é uma mulher bonita”, é assim que Sereia, 20 anos, explica o nome que escolheu para si. Natural de Governador Valadares, ela vive na rua há oito meses, sendo três deles em uma barraca improvisada. Próxima ao fluxo intenso de carros que passam pela região da Lagoinha diariamente, Sereia resiste nadando em seu próprio ritmo.
“Eu me sinto melhor comigo, eu me sinto melhor assim… entendeu? Independente do que os outros pensem, eu me sinto melhor assim. E vou continuar assim. Me engulam assim… entendeu?”, diz. Sereia se declara travesti e diz estar ciente da orientação sexual e da identidade de gênero desde muito cedo. Ela fala de maneira direta sobre sua vida e do preconceito que sofre.
“A gente pra entrar em lugar público é mais difícil. Não tratam a gente como tratam os outros. Tratam bem diferente. A gente se sente mal”, afirma. Sereia conta que, quando confrontada com situações de discriminação, costumava discutir, mas passou a ignorá-las como forma de se proteger.
Sereia diz que as mudanças em sua vida aconteceram de maneira muito rápida e que quando se deu conta já estava vivendo na rua. “Eu fui parar na rua, no começo, por conta das drogas, mas agora parei, já. Aí a gente vai pra rua, entra nessa vida louca e assim vai, tá na rua até hoje”. A parte mais difícil, ela conta, é encarar o tempo frio e chuvoso sem ter jeito de se proteger. Atualmente, ela vive com um parceiro que conhece desde os tempos em que morava em Governador Valadares.
Assim como Sereia, a maioria das pessoas em situação de rua em Belo Horizonte não nasceu na capital, informa o relatória do CRR. 64,2% das pessoas entrevistadas nasceram em outras cidades – 39,7% em outros municípios de Minas Gerais, 24,5% em outro estado e 0,3% em outro país.
A barraca que Sereia divide com o parceiro.
Sereia conta que trabalhava como cabeleireira desde seus 15 anos, mas hoje está desempregada. Ela explica que não recebe nenhum tipo de assistência da Prefeitura e que ainda quer voltar a trabalhar e conquistar, mesmo que aos poucos, mais estabilidade: “Eu quero o que é meu, o fruto do meu suor”.
A convite de Sônia Sissy, Sereia participa de uma pesquisa da UFMG sobre travestis e transexuais. “É um aprender mais da gente, entendeu? Um ser mais ser humano da gente. A gente também é ser humano. (…) A gente tem que ser percebido, tem que ser olhado e notado, igual todo mundo é”, conclui.
Descaminhos longe de casa
O sotaque forte já sugere que Paula, 22 anos, não é de BH. Faz apenas quatro meses que ela está na cidade, mas foi tempo o bastante para mudar a amazonense. Natural de Manaus, ela conta que desde a infância mantinha o cabelo grande. As mechas negras já lhe chegavam aos quadris, mas na capital mineira decidiu vendê-las. “Eu cheguei aqui e sabe como é que é, né? Uma coisa leva a outra”, diz. O lucro foi pouco, ela conta: R$ 150. Hoje, usa um penteado bem curto, mas com uma franja grande que não esconde a vaidade.
Não foi só isso o que mudou na vida da de Paula na capital mineira. “Aqui em BH, eu conheci a droga”, ela diz, referindo-se ao crack. Ela não é exceção: segundo o censo do CRR, 51,5% das pessoas em situação de rua na cidade usam drogas ilícitas, principalmente crack e maconha.
“[A drogadição] é uma característica da população de rua para aguentar o frio, a ausência de um teto, as agressões que sofrem. A droga vem como uma estratégia para fugir um pouco da aridez e das dificuldades de quem está em situação de rua”, explica Elizabeth, do Centro de Referência LGBT.
Paula saiu da casa da família, em Manaus, aos 15 anos. Foi uma fuga do preconceito, ela conta, que já havia progredido ao ponto de agressões físicas após ela se assumir travesti.
“Desde pequeno, como meu pai e minha mãe sabiam que eu ia ser gay… Porque a gente já nasce com uma tendência, não é verdade? Aí eles já começaram o preconceito desde cedo, dentro de casa mesmo”, ela diz. “Desde novo eu tive que correr atrás das minhas coisas. Roupa, material escolar… Eles nunca me deram isso, entendeu? Com 15 anos, quando eu me revelei pra minha família, o meu pai me deu uma surra, aí quebrou minha costela”.
Paula passou quatro meses sob custódia do Conselho Tutelar, em que denunciou o pai. Quando voltou para casa, apanhou de novo. Desta vez o conselho a colocou sob a guarda da avó, com quem ela viveu durante um ano antes de sair definitivamente da casa de familiares. O conflito familiar por orientação sexual, de acordo com o censo do CRR, é o motivo que levou 1,8% das pessoas recenseadas a viver na rua.
Ela passou a se prostituir e fez programas em várias cidades da região metropolitana da cidade de São Paulo e também na capital paulista. Em BH, conheceu um rapaz com quem divide um quarto improvisado em um terreno.
O terreno que Paula divide com outras pessoas em situação de rua.
Ela diz nunca ter procurado auxílio do governo para conseguir moradia, e nem pretende. “Aqui eu tô de boa. Eu quero só meus documentos. Se eu tiver meus documentos, é mais fácil”, acredita. Sônia Sissy, da República Maria Maria, que acompanhou a reportagem durante a conversa, promete ajudá-la com a burocracia.
O plano de Paula é retornar a Manaus: “Só voltar mesmo, porque eu não usava droga, não”, ela conta. Ainda que sem pretensão de se reconciliar com a família, ela lamenta não contar com essa estrutura. “A gente que tem a vida assim, a gente procura uma melhoria pra gente, um jeito de ocupar o nosso coração, um vazio”, diz, “Porque o que faz falta do nosso lado é a família, né”.
Na rua, o preconceito não desapareceu. “Quem é de rua se respeita”, ela diz. Mas já sofreu transfobia de motoristas e transeuntes que passam por ela. “Com as travestis eles bagunçam, né”, conta, “olhou, riu”. “A gente tem que aprender a se defender”, acredita. Como ela aprendeu? “Com a vida”.
Pequenos objetos enfeitam o terreno em que Paula vive com outras pessoas em situação de rua. Um deles é esta casinha de brinquedo.
Horizonte sem teto
“Hoje a gente não pode dizer que o município de Belo Horizonte tem uma política pública para a população LGBT, isso não existe até o momento”, constata Elizabeth Marques. Segundo a analista, a função do Centro de Referência LGBT é “articular para que todos os serviços municipais consigam atender as demandas da população LGBT, respeitadas suas especificidades”, explica. O que nem sempre acontece.
Elizabeth relata um dos casos com o qual lidou no Centro. Segundo ela, uma travesti usuária de crack e em situação de rua procurou atendimento no Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (Caps-Ad) e ouviu de uma funcionária “sugestões” para que trocasse suas vestimentas e cortasse seu cabelo. Para a funcionária do Caps, tais mudanças deveriam ser feitas a fim de evitar que a travesti fosse violada pelo público do Caps, composto majoritariamente por homens.
“Eu tenho que deixar de ser quem eu sou para ter direito a uma política pública de tratamento? Não faz sentido. […] Eu tenho que possibilitar que a travestilidade entre naquela instituição e não seja violada. Em vez de mudar ela (a travesti), eu tenho que mudar a instituição”, aponta Elizabeth.