Uma manhã acompanhando as doações aos refugiados sírios em BH

 

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Igreja Sagrado Coração de Jesus, na região hospitalar de Belo Horizonte.

Jordana e Péricles aguardam ansiosos a volta para casa. Os dois se conheceram em Belo Horizonte, onde vivem há três meses. Ela está grávida e, até conseguirem retornar ao lar, varrem os pátios da Igreja Sagrado Coração de Jesus, no Santa Efigênia. “Acho que estou pagando uma promessa varrendo essas escadas”, brincou Péricles, crucifixo pendendo no peito. Já Felipe chegou a BH há quatro anos. Com uma úlcera no olho esquerdo, precisa de antibióticos para não perder a visão. Ele fez aniversário ontem, dia 17 de setembro, quando completou 40 anos.

Com a chegada de mais doações destinadas aos refugiados sírios em Belo Horizonte, Jordana e Péricles conseguiram algumas roupas de bebê e dois pacotes de fraldas. Já Felipe conseguiu um par de tênis brancos. No entanto, nem Jordana Farias, nem Péricles Santos, nem Felipe são refugiados ou sírios, mas moradores de rua vindos do interior do estado. Nesta sexta-feira, 18 de setembro, enquanto veículos lotados levavam doações para quem cruzou o mundo fugindo de uma guerra, os três moradores de rua se viram no meio de um conflito que vai muito além daquele gramado de igreja.

 

Tem para todo mundo?

 

Chegamos à igreja às 10h desta sexta-feira para acompanhar as doações aos refugiados sírios. No dia anterior, uma corrente viralizou pela internet com a mensagem de que havia 70 recém-chegados à cidade, dentre eles uma mulher que havia acabado de dar à luz, e que estavam precisando de toda a ajuda possível.

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Reprodução Facebook

A corrente surtiu efeito, tanto que, desde a quinta-feira, a paróquia passou a receber um volume enorme de doações. Havia pelo menos um cômodo lotado de fraldas descartáveis. Desde cedo, voluntários se amontoavam à porta da igreja trazendo mais fraldas, roupas para adultos e crianças, brinquedos, roupas de cama, produtos de higiene pessoal, água, pães, sacos de feijão e até mesmo uma televisão.

O problema começou quando Jordana, Péricles e Felipe pegaram algumas dessas doações para si. Quem pretendia ajudar os sírios não gostou e os dois grupos começaram a discutir. “Vai procurar emprego, vagabunda!”, gritou uma mulher que havia trazido doações, antes de outros voluntários pararem duas viaturas policiais para prestar queixa contra os moradores de rua. “Essa senhora veio muito arrumada, num carro muito bom para trazer doações para os refugiados de guerra, mas chamou aquela mocinha de vagabunda”, criticou Vitória Campos, que assistia à cena. “São todos desassistidos, desamparados, jogados na rua, por que não ajudar os de casa primeiro para depois pensar nos outros?” completou.

De um lado, duas voluntárias acusavam Jordana e Péricles de terem-nas ameaçado e roubado doações. Do outro, Péricles clamava conhecer bem os seus direitos e estar sendo caluniado. Enquanto conversava com as senhoras, a polícia interrompeu Péricles, que tentava expor sua versão. “É a segunda e última vez que eu te mando esperar quieto ali!”, disse o policial. Péricles se afastou, mas não obedeceu e gritou às voluntárias: “Seu coração vai doer! Eu tenho cinco filhos para criar!”.

No final, a polícia não levou ninguém para a delegacia. As voluntárias desistiram de prestar queixa. Hilda Araújo, uma delas, disse que o tempo que gastaria registrando uma ocorrência não valeria a pena, afinal ela só estava ali para ajudar. Péricles bem que queria ter seguido com a denúncia de calúnia, mas, segundo ele, a polícia se recusou a registrá-la.

 

Os donos das doações

 

Outros voluntários questionaram os moradores de rua – “não estão trabalhando mesmo, devem até estar drogados”, disse um senhor. Um  homem que se identificou como policial civil afirmou que “quem doa não precisa saber para quem está doando. Mas, neste caso, eu quero ter certeza de que minhas doações irão para os sírios, e não para vagabundos”.

Os três moradores de rua pegaram os donativos que haviam recolhido e foram para um canto, mais acima da rua. Enquanto isso, não paravam de surgir mais pessoas dispostas a ajudar os refugiados sírios: “uma coisa é estar sem pátria, outra é estar na rua. Esses refugiados vieram sem família, sem nada”, avaliou outro voluntário. O risco, disse um senhor, é a imigração no Brasil tornar-se um problema similar ao que é na Europa. “Por causa da mídia, vieram um monte de doações, mas o Brasil ainda não tem estrutura”.

Doadores-discutem-como-administrar-os-donativos

Doadores discutem como administrar os donativos.

Algumas pessoas apontavam que, entre os refugiados, há muita gente trabalhadora: médicos, advogados e engenheiros. Os doadores se diziam dispostos a ajudar esses profissionais a encontrarem emprego e uma jovem comentou que uma empresa já havia entrado em contato. O empecilho era não falarem português, comentaram, ao que uma senhora ensaiou uma solução: sua filha poderia dar aulas do idioma para quem precisasse. Alguns se ofereciam até para abrigar em suas casas os refugiados. Houve quem tivesse bordado um enxoval para o bebê sírio que nasceu nesta semana.

 

A logística da caridade

 

A situação rendeu toda a manhã, com mais jovens, adultos e idosos, sozinhos e com as famílias chegando para doar aos refugiados. Ao menos um caminhão, duas vans lotadas e um carro saíram carregados de donativos. Colados na porta da igreja, cartazes agradeciam aos voluntários, mas informavam que a paróquia não tem mais espaço para acolher os donativos, que devem ser entregues ao vicariato.

Fátima Iglesias, voluntária da Igreja Sagrado Coração de Jesus, trouxe notícias do Padre George Massis, quem fez o contato e trouxe os refugiados para Belo Horizonte. De acordo com Fátima, o pároco reforçou que a igreja não tem mais condições de receber doações. “Noventa por cento da notícia que saiu é mentira. Os refugiados daqui estão chegando desde 2013, todos alojados em apartamentos alugados, ninguém passa fome, ninguém está sem roupa. Não tem tragédia nenhuma, não tem órfão aqui dentro da igreja pra ser adotado, não tem refugiado sem lugar para morar.” Segundo Fátima, as doações serão distribuídas entre outras instituições.

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“Aqui recebeu demais. Nós não temos condição de receber mais nada. Não é pouco caso, não é nada. As condições da igreja não permitem”, explicou Fátima Iglesias, voluntária da Igreja Sagrado Coração de Jesus.

Maria Clara Oliveira, estudante de Relações Internacionais da PUC, que tentava organizar os voluntários que chegavam à igreja, relembrou que há mais pessoas precisando de ajuda em BH, como os milhares de haitianos que estão na cidade já há alguns anos, além dos próprios moradores de rua. “Foi uma proporção muito grande […] As pessoas que começaram a ajudar não faziam ideia [dessa quantidade], o que é muito bom, que doem mais, mas que comecem a fazer essa questão de logística e fazer, de certa forma, um estoque”.

A Casa dos Direitos Humanos, na avenida Amazonas, que aceitava doações para os refugiados, informou que também está lotada. A Casa dos Jornalistas alertou que não está recebendo donativos no local. Entretanto, outros centros ainda permanecem abertos para doações:

  • Escola de Engenharia UFMG – Campus Pampulha
  • Clube Atlético Mineiro – Vila Olímpica Planalto/Vila Clóris/São João Batista
  • Cidade Administrativa – 5º andar, Prédio Minas, Ala ímpar – Rod. Pref. Américo Renê Gianeti, 3777 – Serra Verde
  • Escritório de Integração – Arquitetura PUC Coração Eucarístico – Rua Dom Jose Gaspar, 500, Coração Eucarístico
  • Butic Bardot – Rua Paraíba, 1.352, loja 13, de segunda a sexta-feira, das 9h às 19h
    Fonte: Estado de Minas.

O Vicariato Episcopal constantemente aceita donativos para diversas ações.

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Uma das mulheres que acusou Péricles de roubar as fraldas que ela levara doou R$10 para ajudar no combustível da Kombi que transportava os donativos.

Gabriel Rodrigues

Em poucos metros de mundo, flagrei pedaços de guerra e humanidade. Entre as duas , muitas contradições.

Ítalo Lo Re

Fui ver os refugiados da Síria e acabei vendo os refugiados da lógica. 

Kaio H Silva

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