A boêmia em diferentes cantos de Belo Horizonte, a famosa “capital dos bares”.

Por Álvaro Goulart e Yasmin Fernanda

Balcão do Bar do Careca. Foto: Yasmin Fernanda

Desde o século XX, a boêmia belo-horizontina representa parte da cultura da cidade. A forte tradição dos bares e botecos, espalhados por diversas regiões, mantém viva uma cultura que caracteriza a capital. Em 2024, a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Belotur, em parceria com o Sebrae Minas, mapeou e divulgou um inventário de 30 bares para o “Bares com Alma”, projeto que visa promover uma série de ações para estimular a visitação e a prosperidade dos estabelecimentos selecionados, que foram considerados icônicos e relevantes para a história e identidade de Belo Horizonte.

Dentre eles está o Bar da Cida, localizado no bairro Floramar, na região Norte da cidade, que possui uma história que se iniciou em 1989. O estabelecimento começou como um bar de balcão, que vendia principalmente pinga, inspirado no comércio do irmão onde Maria Aparecida da Silva, conhecida como Cida, trabalhou anteriormente, mas rapidamente ela percebeu que esse não era o ambiente que desejava e decidiu investir em caldos e pratos a fim de atrair famílias, casais e uma clientela diversificada do bairro. Ela conta que começou com pouca experiência, com a ajuda do marido e dos filhos, e foi aperfeiçoando a culinária com o tempo.

No início, Cida foi aconselhada pela mãe a desistir. A comida não estava vendendo e o trabalho não tinha retorno, porém, os clientes sentiram falta dos caldos e a cobrança fez com que a proprietária voltasse a cozinhá-los, ainda que somente a quantidade demandada pelas pessoas que faziam uma espécie de reserva diretamente com ela. Assim, em pouco tempo, as panelas se tornaram caldeirões e os moradores do bairro Floramar e redondezas lotavam o Bar da Cida para apreciar um bom caldo, beber uma cerveja e compartilhar momentos.

Sua principal dificuldade atualmente é manter o espírito de boteco tradicional, mas se mantendo atenta às novas tendências, como o crescimento dos deliveries. Além disso, Cida conta ter dificuldade para conseguir renovar a mão de obra, já que há poucos jovens interessados no trabalho devido ao horário e à intensidade. Hoje ela conta com muitos funcionários, que operam como uma grande família, e não se preocupa em mudar a estrutura externa do local, que é bem simples. Ela já ganhou duas vezes o concurso “Comida di Buteco” e relata com orgulho que o bar cresce de boca em boca. Antes da pandemia, ela não trabalhava com delivery pois fazia questão de que as pessoas vivessem a experiência de sair de casa para comer sua comida. Essa valorização da convivência permitiu que a cozinheira construísse um ambiente tranquilo e aconchegante com uma boa relação com a vizinhança. “Eu amo estar aqui no meu bar porque eu faço o que eu gosto, que é mexer com o povo”, ela afirma.

1. Cida, do Bar da Cida, e seu famoso caldo de mandioca.
2. Quadros na parede do Bar da Cida. Fotos: Yasmin Fernanda.

Já na região Leste, no Bairro Santa Tereza, que carrega grande peso histórico da cultura boêmia da cidade, Dalmo Eustaquio, funcionário do famoso Bar do Bolão há 15 anos, comenta sobre a rotina trabalhando em um “bar com alma”. Ele menciona clientes que os garçons já conhecem a rotina e que com o tempo a vizinhança os acolheu como amigos. Dalmo relembra funcionários mais antigos da casa, já aposentados, como Hélio, que trabalhou no Bolão por 30 anos. O garçom explica que cada vez mais os freelancers têm aumentado, em comparação aos funcionários fixos  e a rotatividade é maior. O Bar do Bolão tem uma forte relação com a banda Skank, sucesso brasileiro de pop rock. Os integrantes costumavam se encontrar no bar e mais tarde realizaram uma gravação no estabelecimento, acontecimento que Dalmo relembra com orgulho, reforçando a riqueza cultural que um bar tradicional pode trazer à cidade pela relação entre funcionário, cliente, espaço e memória.

Em outro lugar para além do centro, mais precisamente no bairro Cachoeirinha, é possível encontrar outro clássico ponto da boêmia belo-horizontina: O bar do Careca. O local, que está no bairro há 41 anos, localizava-se anteriormente no bairro Pompeia, por 20 anos. Foi fundado por Orcínio Gonçalves Ferreira, o Careca, natural de Patos de Minas, e sempre manteve no seu núcleo de trabalhadores uma grande maioria de familiares do proprietário. Dessa forma, atualmente um dos administradores é seu filho, Paulo Vitor Santos Gonçalves, que gere junto ao pai e em ocasiões que ele não está presente.

Interior do Bar do Careca. Foto: Yasmin Fernanda.

Para Paulo, que nasceu e cresceu no negócio de sua família, a “boêmia”, grande característica da capital mineira, sofreu várias mudanças no que diz respeito aos locais onde ela ocorria e quem se identificava com essa cultura. “O belo-horizontino que vinha ao bar era aquele cara que não era bem visto”, nos conta Paulo ao referenciar o passado e o presente. “Você não via mulheres frequentando e nem famílias. Hoje não, você vê de tudo como casais com filhos, avós com netos”. Além disso, o mesmo ressalta que em bares como o do pai, a troca de gerações é característica. É extremamente comum receber filhos e netos de pessoas que frequentavam o bar antigamente e vão entender porque aquele local era tão marcante para as pessoas que eles amam.

O Careca, devido à sua idade, já não aguenta mais a rotina de antes. O mundo, que ficou mais perigoso, não permite que o bar fique aberto até a madrugada, como ocorria há alguns anos. Porém, Paulo Vitor nos garante que o público do bar não some e aparece de diversas maneiras, seja pela internet, pela recomendação de amigos e família e pelo turismo, por se tratar de um bar muito tradicional.

Posicionamento Institucional

A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), instituição que representa os donos de bares, afirma que sempre teve uma boa relação e proximidade com a prefeitura da cidade no que se refere aos problemas enfrentados pelos bares. Redução da carga tributária, facilitação no acesso a crédito, modernização de regras para se adaptar à sazonalidade e à alta rotatividade do setor, promoção de cursos e treinamentos para qualificar mão de obra, combate à concorrência desleal de trabalhadores informais, multas e penalidades excessivas, além da preocupação com a segurança são questões que os donos dos estabelecimentos pedem mais atenção. Porém, toda essa situação traz uma questão: se a relação entre a prefeitura e a ABRASEL é tão próxima como a associação afirma, porque tantas demandas ainda persistem e incomodam aqueles representados pela entidade? Sobre isso, a Associação defende que: “essas questões frequentemente norteiam as negociações e projetos defendidos pela Abrasel junto a órgãos públicos”.

Futuro da boêmia

Portanto, seja nos entremeios dos tradicionais bares de BH ou em discussões mais técnicas do passado, presente e futuro destes lugares, a cultura boêmia da cidade, quase um patrimônio imaterial, ainda resiste. O que no passado chegou a ser taxado de maneira pejorativa, hoje é cultuado como um traço cultural importante da cidade. Mesmo com mudanças, existem tradições atemporais que se mantêm no coração e na mente de vários mineiros de várias gerações. 

Cerveja gelada, torresmo e uma boa conversa com amigos tornam-se um refúgio para aqueles que buscam tempos mais simples em uma modernidade tão rápida, dinâmica e, às vezes, caótica. Dessa maneira, é completamente possível afirmar que, se a cultura boêmia perseverou até em períodos em que ela era criticada, ela tende a se manter e até mesmo se fortalecer nas próximas gerações.

 

*Matéria produzida para a disciplina de Práticas Jornalísticas e Mídias Sociais, sob a supervisão da professora Dayane do Carmo Barretos.