Dossiê: Outro Olhar
Uma crônica sobre a busca de uma boneca da Loira do Bonfim no cemitério e uma habitante muito viva do Bonfim.
Por Marina S. Dayrell
Não que eu goste de cemitérios, mas, entre todos os de Belo Horizonte, o do Bonfim é o que mais me incomoda. Afligem-me os jazigos sem nenhuma ordem aparente e misturados horizontal e verticalmente. Perturbam-me os mausoléus sem sentido, as imagens enormes e essa herança de um passado no qual até o momento da morte era encarado como uma competição entre quem tem mais, quem tem menos e quem não tem nada. Em tempos de rei do camarote e Mc Guimê, o Cemitério do Bonfim, sem sombra de dúvida, poderia ser chamado de morte ostentação.
No entanto, apesar de toda a megalomania exposta no Bonfim, pela primeira vez nessa longa jornada de conhecer quase todos os cemitérios da capital, os holofotes da visita deixaram de lado as estruturas de mármore e miraram uma outra. Essa, de carne, osso e cabelos grisalhos. Primeiramente, para compreender os rumos dessa história, é preciso que você conheça a famosa lenda da Loira do Bonfim. Ignorando toda a gama de variações e simplificando bastante, a personagem é conhecida por rondar os arredores do cemitério desde a década de 50. Personagem. Espírito. Fantasma. Assombração.
Ouvi falar, por uma amiga que havia feito uma matéria sobre o cemitério, que a lenda havia se transformado em uma boneca de pau e plástico para a exibição no cemitério. Duvidei, mas depois da insistência (afinal, ela havia visto na TV) resolvi pagar para ver. Foi o que me levou à senhora mirrada e de cabelos grisalhos, uma das poucas representantes da humanidade viva ali, entre mil baratas, formigas, matérias em decomposição e imagens imponentes. Antes, concedi alguns minutos à observação, já que, por todo o tabu que o local representa, abordar alguém em um momento de dor e emoção não seria a melhor escolha. Mas aquela senhora não era visitante. Carregava vasos e um regador. Parou na torneira, lavou uma bacia. Foi até uma lápide e passou um pano. Depois, foi em outra. Parecia não ter laço emocional com nenhum daqueles espaços preenchidos por mármore. Supus que trabalhava ali.
Me aproximei quase pisando em ovos, dei “boa tarde”, pedi licença e perguntei sobre a tal boneca. Expliquei que uma amiga havia me contato sobre e gostaria de saber se era verdade e, caso fosse, onde estaria. Esperei por uma informação ou até por alguma risada de deboche, já que imaginava ter caído em uma pegadinha. Mas, não. A senhora fechou a torneira, me olhou nos olhos e começou a gritar comigo. Me disse pra deixar de ser desocupada, ir procurar trabalho, ir para um asilo. Gritou que era para parar de inventar essas coisas, que não existia nada de Loira do Bonfim, não, que isso é papo de gente à toa. Me mandou ir para um asilo outra vez. Tentei pedir desculpas, agradecer e sair de fininho, mas ela continuou gritando. Se ali não estivesse tão vazio de gente viva, com certeza, eu já teria chorado de vergonha. Me ative a apenas ruborescer, dar as costas e caminhar para qualquer outro lugar do cemitério. Não ousei observar, mas na minha imaginação, até as imagens de Jesus e Maria riram de mim.
Andei mais algumas quadras, fui para mais longe e visitei outros jazigos. Avisei à minha companhia que queria ir para longe daquela mulher. Andamos, mas não foi o suficiente: em todos os lugares que fomos, ela apareceu de supetão. Por fim, desistimos e fomos embora. Já estávamos ali há algum tempo e a senhora dos gritos já havia perturbado demais. Na porta de saída, uma macumba. Um prato de farofa, uma garrafa de cachaça e umas velas queimadas. Rimos da bizarrice de se fazer macumba na porta do cemitério. Refletimos sobre as pessoas que vão até lá pra beber vinho e namorar. Condenamos a morte ostentação.
Entrei no ônibus. Lotado. Ainda tive que pegar mais quatro daqueles no mesmo dia. A chuva não deu trégua e minha sombrinha quebrou. Olhei um endereço errado e tive que subir dois morros íngremes, na chuva e com a mochila pesada. Na volta, meu cartão não passou no caixa do supermercado. Perdi dois ônibus porque o motorista disse que não me cabia lá dentro. Cheguei em casa, tirei os sapatos e me sentei no chão. Que dia! Lembrei da senhora e dei uma risada. Quando coloquei as mãos no chão, percebi o terrível: havia sentado em uma poça de xixi que minha cadela carente ousou em deixar no meu quarto.
Contei para os amigos e um deles me disse: “e não é que a velhinha te macumbou mesmo?”. Ainda não entendi o que tanto ela queria que eu fizesse em um asilo e tampouco sei se a Loira do Bonfim é mais do que uma lenda (e espero não descobrir). Mas, a grisalha do Bonfim… ah, essa existe e sabe gritar bem alto.