A partir do relato de experiências imersivas dentro do Grindr, aplicativo de encontros para comunidade LGBTQIAPN+, vamos entender como a figura do homem homossexual negro é facilmente sexualizada e associada a uma viralidade extrema

Por Eduarda Barcelos, Gabriela Araújo, Maria Carolina Gonçalves, Vinícius Prates e Wesley Felix

Além de já sofrerem pressões sociais por estarem dentro da comunidade LGBTQIAPN+, homens negros gays ainda passam pela discriminação racial e consequente sexualização ou invisibilização de seus corpos. Fundamentada em uma construção social e histórica, a compreensão de um corpo negro, na sociedade brasileira, passa por noções tipificadoras que acabam por revelar o racismo ainda muito latente. De acordo com o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, quase 60% da população do Brasil é composta por pessoas negras. De modo contraditório, a maioria numérica se faz minoria quando se fala de luta por direitos básicos e essencialmente por respeito.

A noção corpórea perpassa todo um imaginário que se espera: homens viris e brutos na hora do sexo. As representações tipificadoras, além de escancararem um racismo, afetam e se tornam um empecilho nas relações sociais destes homens, que ora se enxergam como objeto sexual e ora como seres invisíveis. Além de tudo, se trata de um processo de violência; além de sobreviverem em um país que a cada 23 minutos assassina um jovem negro, segundo relatório desenvolvido pela ONU em 2017, ainda vivem na nação que mais mata LGBTQIAPN+’s do mundo. O corpo negro gay é violentado pela homofobia e pelo racismo.

Sendo constantemente associados com aspectos de uma virilidade extrema, com um grande apetite sexual que acompanha um porte físico avantajado, em todos os sentidos, a representação de um corpo negro na sociedade é reverberada para o âmbito dos aplicativos de relacionamento. O Grindr, aplicativo de relacionamento homoafetivo que usa da geolocalização para alcançar adeptos próximos, surgiu em 2009, criado pelo israelense Joel Simkhai. Ainda que não tenha sido desenvolvido em terras brasileiros, o aplicativo mantém grandes usuários no Brasil e guarda a proeza de ser uma das primeiras plataformas a cair no gosto do público bisexual e  homossexual. O princípio básico é conectar indivíduos que estão atrás de amizades e relações sexuais.

As relações no aplicativo

Dentro do aplicativo, no processo de criação de um perfil, o usuário tem a opção de inserir ou não uma foto e também de escolher o nome que o identificará. Para incrementar a experiência, os indivíduos podem informar seus dados “básicos”, como idade, altura, peso, etnia, posição sexual, porte físico, suas qualidades e desejos que gostariam de compartilhar com os outros frequentadores.

Para o estudante Matheus Victor, de 23 anos, essa caracterização do aplicativo contribui para a hipersexualização, uma vez que a plataforma cria um “filtro”. “As pessoas que não se encaixam dentro de um padrão de beleza social têm muita dificuldade de se relacionar com outras pessoas. Essa ‘peneira’ começa pela própria estrutura do app, onde altura, peso e etnia são super destacados no perfil dos usuários”, diz. Para ele, os usuários contribuem involuntariamente para a normalização desse padrão na plataforma, uma vez que eles se adequam a esse espaço.

Outra possibilidade na plataforma é informar o que se procura dentro do aplicativo, os pronomes de sua preferência, gênero com que se identifica e atual estado do teste de HIV. Com isso, acaba que as relações dentro do Grindr são pautadas no erotismo e transações sexuais. “Diferente de outros aplicativos de relacionamento, o Grindr é um app onde as pessoas buscam algo mais imediato. É muito raro achar alguém lá que queira uma relação duradoura e a maioria dos caras buscam apenas sexo rápido”, afirma Matheus.

Na experiência imersiva do aplicativo, se observa que a construção de fortes estereótipos e hipersexualização, vigentes na sociedade, se mostram presentes também no âmbito digital. É possível afirmar que o próprio processo de ascensão das mídias digitais reforça as representações do corpo negro gay. Os aplicativos evidenciam os fetiches com relação ao corpo negro já recorrentes na sociedade: desejo insaciável e porte físico hiperdesenvolvido.

Ao relatar sua experiência pessoal, o estudante universitário Pedro Henrique*[1], de 23 anos, descreve vivências parecidas com as de Matheus. Para ele, resumindo a sua experiência na plataforma, os vínculos dentro do aplicativo colaboram para relações sexuais que se baseiam em “sexo imediato”. De acordo com o estudante, o aplicativo o acompanhou em diversos momentos, mas de modo geral, sempre com o intuito de “satisfazer desejo sexual e, muito raramente, para conversar ou conhecer outras pessoas de fato”.

“Acho que a própria construção do aplicativo e seus usuários têm essa premissa de sexo imediato. Uma coisa peculiar do aplicativo é a troca breve de mensagens comumente utilizadas como: ‘tem local?’, ‘curte o quê?’, ‘real?’, ‘curto semelhantes’, ‘quantos cm?’, dentre outras. Todo esse ambiente faz com que eu baixe e o use somente quando quero transar, caso contrário desinstalo e fico tempos sem utilizar, como agora, pois prefiro o aplicativo concorrente, o Tinder”, diz o entrevistado ao comparar o Grindr com outra rede social de relacionamentos. Se denominando como o “app de relacionando mais popular do mundo” o Tinder, fundado em 2012, é o espaço para se conhecer novas pessoas e criar conexões. Diferentemente do seu adversário Grindr, o Tinder não apresenta o recorte específico para o público gay e bisexual.

No aplicativo o “real” aparece como um questionamento ao usuário sobre a sua identidade. Uma vez que não é preciso adicionar a sua foto, é comum que perfis falsos integrem a plataforma. Já “quantos cm?” é uma referência ao tamanho do órgão genital masculino, o que também é comumente indicado pelos usuários no lugar do “nome” como uma forma de se destacar.

Reprodução/Ella Byworth for Metro.co.uk

A sexualização e o racismo

As próprias tipificações de sexualização são atitudes que perpetuam o racismo, que molda o sujeito como um objeto sexual ao passo que se estabelece que não se pode ser nada além disso. Além do processo de discriminação, as ações estereotipadas afetam fundamentalmente o emocional do indivíduo que se vê inserido nessas representações. Arthur Bugre, homem trans que é colunista do jornal Estado de Minas, explica que toda a sexualização deriva do racismo estrutural, advindo da escravidão no Brasil.

“Algumas pessoas ainda insistem na frase ‘a cor do pecado’, que é algo extremamente pejorativo e racista. Isso também reflete na vida desse homem negro gay. Na maioria das vezes, ele não é escolhido para se direcionar afeto, para se ter um relacionamento duradouro ou constituir família. Isso também reflete na comunidade dele, de uma maneira geral, e nos homens negros gays. Ele é muito sexualizado. Parece que está ali apenas, ainda, como esse animal sexual que tem uma potência e é viril.  Mas isso também é um estereótipo, é o racismo estrutural. Essa pessoa, na maioria das vezes, não é alvo de afeto, de amor. Ela não é alvo nesse sentido de construir uma família ou ter um relacionamento de fato além da questão sexual”, contextualiza.

Dentro da comunidade LGBTQIAPN+ também existe a associação dos corpos negros como ativos e nunca figuras de passividade. A virilidade extrema, relacionada a seus corpos, serve como um marcador da própria vivência enquanto homem gay. Além disso, o ideal por trás de um “padrão”, isto é, um corpo com músculos, considerado mais “atraente” por uma parte dos usuários, marca e estabelece as relações, para além dos aplicativos, mas também dentro da plataforma.

Reprodução/Helen Frost

Reprodução/Helen Frost“Eu era bem magro, com pouca definição, inclusive com ossos proeminentes. Hoje, após dois anos de musculação, tenho um corpo com mais massa muscular, bem definido etc. Quanto à aceitação, sinto que meu corpo atual é muito mais aceito, mais pessoas me enviam mensagens, mais pessoas bonitas, mais pessoas com corpos bonitos ou, simplesmente, ‘corpos padrão’. Então, não acredito que tenha uma ampla aceitação de corpos que fogem a esse ‘padrão’. Antes, eu conversava e encontrava pessoas com corpos mais próximos ao que eu tinha. Isso ocorre até hoje, tenho saído com pessoas com corpos ‘semelhantes’ ao que atualmente tenho. Dessa forma há sim invisibilização de ‘corpos não-padrões’ e uma hipersexualização de ‘corpo padrões’. Por ser negro isso aumenta ainda mais. As pessoas ali pressupõem que eu tenha um grande órgão sexual, serei ‘ativão 100%’, coisas do tipo, como se fosse um fetiche, sempre recebo mensagens nesse sentido”, confessa Pedro Henrique.

Matheus relata que nunca sofreu racismo diretamente, mas diz que já foi “rejeitado” sem ao menos conversar. “Sou negro e percebo muito a objetivação do corpo negro dentro do app. Quanto mais malhado, mais fácil é de conseguir conhecer alguém. Nunca me ocorreu de alguém deixar explícito que o motivo do desinteresse era minha cor, mas já aconteceu da pessoa falar que não me ‘curtiu’ sem nem termos conversado”, conta.

Ao ser questionado sobre as imposições de buscar esse “ideal” do corpo masculino, principalmente na comunidade gay, Matheus responde que isso afeta diretamente a sua autoestima, mesmo que inconscientemente. Ele acredita que a objetificação é algo muito presente nas relações e que “corpos padrões” protagonizam uma espécie de aceitação. “Eu sinto a necessidade de malhar para ficar ‘sarado’, emagrecer e me enquadrar em um certo padrão. Percebo que amigos meus, que são negros e se encaixam nesse padrão, têm uma maior taxa de relacionamentos com outros homens. Com certeza ser malhado ajuda muito nas relações”, diz.

Pedro Henrique também acredita que essas “pressões” para se encaixar em um padrão estabelecido moldam não só suas relações, mas também a sua aceitação pessoal com o próprio corpo. “Não à toa, mudei muito meu corpo nos últimos anos, isso influenciou bastante. Lembro que ficava me imaginando tendo um corpo ‘padrão’, como alguns tinham, isso abala bastante minha autoestima, eu mal me olhava no espelho, sentia vergonha de ficar sem camisa em piscina, não conseguia me relacionar bem com as pessoas, por sempre acreditar que, por não ter um corpo ideal, as pessoas não me aceitariam.  Hoje isso mudou muito (visto que meu corpo também), já não tenho mais esses problemas e conflitos internos, sinto que meu corpo é muito mais aceito (e desejado)”, descreve.

Para ele, o cenário atual, do ponto de vista dos corpos negros gay, ainda é de hipersexualização, quase como um “recorte fetichista” e que é enfatizado pela busca de prazeres rápidos e satisfação de desejos. “Sinto que é mais difícil construir relacionamentos mais sólidos do que outras pessoas (brancas), parece que somos descartáveis, utilizados somente para fins sexuais e jogados fora”.

Pedro Henrique vê na comunidade LGBTQIAPN+ um avanço em relação à hipersexualização. Para ele, a exposição da temática é necessária para ampliar o debate e fazer com que mais pessoas compreendam o tópico. “Acho que grande parte de nós negros não tínhamos consciência de que isso acontecia, eu particularmente não tinha e não tinha chegado a essa conclusão por mim mesmo. Essa temática tem sido mais conhecida e é preciso ser amplamente abordada, porque é uma questão que nos afeta e mal nos dávamos conta disso. Hoje, ciente de como nossos corpos são enxergados, principalmente nesses ambientes, consigo ponderar melhor com quem me relaciono”, opina.

Com todas as palavras, a corporeidade negra e gay se vê em um universo pautado na sexualização constante, em sua grande maioria, aos olhos da branquitude que não enxerga estes corpos para além de seu próprio prazer. “O processo de se reconhecer e se aceitar é lento, mas quando ocorre fica mais fácil entender que a comunidade gay precisa de mudanças e que o erro nunca esteve em mim simplesmente por eu não me encaixar em certos padrões”, afirma Matheus Victor.


Entrevista Lá e Cá com Arthur Bugre

Arthur é jornalista e colunista trans que fala sobre pautas LGBTQIAPN+, em especial sobre a comunidade negra. Confira a entrevista:

Como se dá historicamente a construção social do homem negro e gay? É um cenário de sexualização ou de invisibilidade? Depende da corporeidade e da individualidade?

Resposta: Já no período da escravidão as pessoas que foram escravizadas passaram por diferentes humilhações, torturas e diferentes formas de retirar a sua dignidade. Essas pessoas não eram vistas como seres humanos, tiraram a humanidade de diferentes formas e uma dessas formas era olhar para essas pessoas como animais sexuais, uma erotização exacerbada. Foram mais de 300 anos de escravidão, desde o início do tráfico negreiro para cá, até assinada a lei, mas isso não terminou. Foi ressignificado, adaptado, mas, ainda assim, esse corpo negro é visto, de uma maneira geral, com esse olhar exagerado em relação ao sexo.

Algumas pessoas ainda insistem nessa frase “a cor do pecado”, que é algo extremamente pejorativo e racista. Isso também reflete na vida desse homem negro gay. Na maioria das vezes, ele não é escolhido para se direcionar afeto, para se ter um relacionamento duradouro ou constituir família. Isso também reflete na comunidade dele, de uma maneira geral, e nos homens negros gays. Ele é muito sexualizado. Parece que está ali apenas, ainda, como esse animal sexual que tem uma potência e é viril.  Mas isso também é um estereótipo, é o racismo estrutural. Essa pessoa, na maioria das vezes, não é alvo de afeto, de amor. Ela não é alvo nesse sentido de construir uma família ou ter um relacionamento de fato além da questão sexual.

E qual é o cenário atual com relação aos corpos negros gays? Quais dificuldades enfrentadas? E qual é o cenário nas relações sociais? São mais vistos como um ser extremamente sexual ou há outra representação? 

Resposta: Eu acredito que o homem negro gay ainda hoje é visto como uma pessoa que tem uma potência grandiosa em relação ao sexo. Uma pessoa muito viril que ainda é uma visão cheia de estereótipos e de racismo. Além disso, esse corpo não é algo que as pessoas, mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+, atribuem e oferecem amor ou afeto. Na maioria das vezes, ele é visto apenas para esse momento do sexo e com essa visão distorcida de que todo homem negro é uma potência sexual.

De uma maneira geral, o corpo de um homem negro é visto como algo ligado ao perigo. Por exemplo, eu sou um homem negro retinto e quando eu estou na rua as pessoas correm de mim, fogem de mim ou me agridem. Me tratam com muito desaforo e falta de educação, até mesmo com violência física. Infelizmente um corpo negro masculino no Brasil, ou que está dentro desse universo masculino, é tratado dessa forma.

Com as vivências que eu tenho como homem trans negro, percebo que um corpo que não tem esses músculos, que não é um corpo saradão e que não está em forma, é deixado de lado. Essa pessoa sempre é vista com uma alguém que não tem os requisitos para conseguir ser uma pessoa desejada, dentro da comunidade LGBTQIA+.  Se você não se encaixa nesse padrão, provavelmente não vai ser visto, muito menos acolhido, até no sentido de permitir conversar, sair e de ter experiências sexuais. Quando entra a questão de ser um corpo negro, aí piora ainda mais, porque se o afeto já não é atribuído para essa pessoa, nem mesmo essa interação sexual esse jovem negro vai ter naquele período que ela está se conhecendo. Na maioria das vezes, esse processo acontece muito tarde na vida de uma pessoa negra, de uma maneira geral, e dentro da comunidade LGBTQIA+. A pessoa passa por um processo e vai se entendendo, mas enquanto isso não acontece, ela fica muito refém desses estereótipos. As pessoas sempre estão cobrando esse tipo de padrão e, se ele não se encaixa, vai sendo jogada de lado.

Como as representações de um indivíduo totalmente sexual e viril afeta socialmente e de maneira afetiva os homens negros e gays?

Resposta: Eu já escutei de pessoas do tipo assim: ‘Olha, eu nunca fiquei com um homem negro. Deve ser uma maravilha, né? Deve ser uma potência gigantesca’. Acredito muito que isso acontece também nos aplicativos de relacionamentos. Os homens negros nesses aplicativos são vistos dessa forma de uma maneira geral, incluindo os gays. Na maioria das vezes, as pessoas vão muito nessa expectativa e não dão espaço para outras coisas. Se esse homem não performar aquilo, ele ainda é alvo de falas, xingamentos, brincadeiras e piadas muito racistas também. ‘Eu fiquei confuso e não tem nada daquilo que eu pensei’. Mas espera! Quem disse para ela que aquilo era certeiro? Existe toda uma expectativa que tem como base o racismo em relação a esse corpo.

Existe alguma ação, movimento social ou campanha educacional que tente modificar esse cenário de sexualização/invisibilidade dos corpos negros gays nos aplicativos e/ou na sociedade?

Resposta: Eu acho que de uma maneira geral é levar informação e conscientização para essas pessoas. Promover conscientização. Não é porque é comunidade LGBTQIA+, por exemplo, que todas as pessoas já sabem o que é racismo estrutural. Ainda lembrando do período da escravidão, o corpo negro era visto sobretudo nessa sexualização exagerada. Ele é um corpo que está sempre pronto para o sexo. É um animal do sexo. E isso não foi desfeito. Não é a mesma exata visão, mas ela foi adaptada e ficou ainda mais cínica e sofisticada. Hoje você passa por essa sexualização e de olhar apenas como um objeto sexual.

Por exemplo, um programa de diversidade de inclusão para dentro das empresas. A gente precisa levar para dentro da comunidade, LGBTQIA+, para quem está na liderança, para abrir essa conversa e explicar o que é o racismo estrutural. Como que ele é perverso? Como que ele se manifesta de diferentes formas e uma dessas formas é olhar para o corpo de uma pessoa negra como um animal sexual que é um legado terrível da escravidão. Infelizmente, isso não afeta apenas os homens gays negros, mas a comunidade negra de uma maneira geral, então é muito importante falar de uma forma aberta. Eu já passei por diferentes formas de racismo dentro da comunidade LGBTQIA+, e de pessoas que a gente está esperando acolhimento ou um abraço. Por exemplo, a comunidade trans negra, é invisível.


[1] Nome fictício escolhido para identificar o entrevistado ao longo da reportagem para preservar a identidade do entrevistado, a pedido do mesmo.