Conheça a Praça Raul Soares em primeira pessoa.
Crônica por Gustavo Aleixo e Talles Cabral
Foto: Prefeitura de Belo Horizonte
Construída na década de 30 e revitalizada em julho de 2008, situada no coração da capital mineira, hoje sou sinônimo apenas de passagem. Minhas belas fontes de água, meus tons esverdeados e meu ar bucólico, expostos em meio a toneladas de concreto acinzentado, não são páreo para a rotina de milhares de belo-horizontinos que por aqui trafegam diariamente. Além dos que passam, um número impreciso mora comigo. Hoje mesmo, por volta das três da tarde, um grupo de aproximadamente dez homens, descamisados e à vontade, acendiam uma fogueira com caixotes de madeira para esquentar sua comida.
André Luiz, 29 anos, é um dos moradores de rua que atualmente eu acolho. No canteiro que ele mora com a namorada Carla, de 32 anos – e outras doze pessoas – há um carrinho de supermercado, com os seus pertences pessoais, e dois colchões molhados pelos regadores do meu jardim. Natural de São João Del Rey, saiu de casa cedo, ainda na adolescência, por problemas pessoais com a família. Desde então, já esteve em Rondônia, Paraguai, São Paulo, Rio de Janeiro e até no Acre. “Sigo o rumo, tudo clandestino”, diz André, que em umas das suas andanças acabou um dia chegando a BH.
Conheceu a namorada Carla, natural de Belo Horizonte, na rua, logo que chegou à capital mineira, e desde então os dois vivem juntos sob o meu abrigo. Ele trabalha como guarda de carros no Terminal JK, ponto de agências de turismo e saída de ônibus para excursões. No entanto, boa parte da sobrevivência depende mesmo é de caridade. “A gente dá muita sorte, não tenho o que reclamar. Tem dia que eu sinto fome e logo alguém aparece com uma marmita, um lanche. Graças a Deus. Mas quando não tem e a fome aperta, a gente sai pra pedir, aí tem que andar”, ouço ele desabafar.
Aqui, os moradores de rua dividem o espaço com alguns poucos e instáveis ambulantes, casais e esportistas que me frequentam, em um relacionamento que aparenta ser saudável, sem atritos. Mas a convivência não é tão pacífica como parece. Em meu entorno estão casas e edifícios, e frequentemente os moradores se organizam para ir a autoridades exigir alguma medida sobre a ocupação ou a violência. Como consequência, a polícia tem me feito visitas regulares. André, apenas mais um estranho em meio a outros dos meus moradores, já conhece a rotina: “pode ter certeza que uma hora a polícia vai aparecer e nos fazer uma revista”.
André nega que os moradores pratiquem roubo e tem convicção de que a atuação da polícia é extremamente ofensiva. De fato, como ele mesmo lembra, durante o dia, de hora em hora eles vêm. Confere o que meus moradores possuem e o que estão fazendo. Depois da meia noite, quando ficam só os moradores, aí eles são mais abusivos ainda, chegam a agredir, como diversas vezes testemunhei.
Não raro, reconheço ao longo do dia algum policial, agora à paisana, que na noite anterior esteve em meus jardins fazendo revistas. André, que nada tem a esconder, muito menos sua personalidade extrovertida, acena e cumprimenta o seu contumaz observador, chamando-o por “seu polícia”. Carla o repreende logo em seguida. “Você é bobo e ainda fica provocando os hômi”, comenta, nervosa.
André não é bobo, definitivamente. O seu tom brincalhão rapidamente se interrompe em meios aos seus próprios questionamentos acerca dos problemas vividos por ele e seus companheiros que compartilham meus espaços. Todo dia chegam quatro ali, dois aqui, um ali, e outros vão embora. E todo mundo se respeita, porque quem vai botar ordem neste meu espaço tão democrático? Quem é dono de um lugar grande e aberto como esse?
Após tantos anos vivendo de maneira nômade, André não entende o que ele chama de uma “aporrinhação” propiciada pelos residentes dos prédios próximos, que me tratam como sua propriedade. Como sem-teto, André talvez seja até mais dono dos lugares por onde passa. A rua é sua casa, afinal.
Mas ele não quer nada para si. André quer somente poder tomar banho em paz na fonte de água. Dormir ao relento na grama molhada. Para ele, sou um local público, livre. Comum aos moradores das ruas e dos edifícios.
Olá Gustavo e Talles, tenho uma página no facebook que se chama “Praça RS” inaugurada em abril de 2016 e que denomino como “Uma página de amor a Praça Raul Soares… a história, o cotidiano, as curiosidades do centro geográfico da cidade de Belo Horizonte”. Gostei desta crônica e gostaria de publicá-la na página, com seus créditos é claro… aproveito para convidá-los a visitar a página https://www.facebook.com/pracaraulsoares2016/timeline
Abraços,
Demilson Malta Vigiano