Durante anos, os porteiros da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG passaram despercebidos por alunos e outros funcionários. Com o início da operação das catracas no prédio, essa realidade começou a mudar.

Por Guilherme Reis, Luigy Hudson e Thiago Cândido

A partir do dia 1º de fevereiro de 2023, as catracas das portarias da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) entraram em pleno funcionamento. Instalados desde 2022, mas sem exercerem sua função, os equipamentos geraram um debate entre os “faficheiros”: alguns foram favoráveis a instalação, em nome da segurança; do lado contrário, a alegação adentra no debate da livre circulação em um espaço público.

Com essa reportagem buscamos aqueles responsáveis pela fiscalização das catracas: os porteiros. Com a circulação livre antes do pleno funcionamento das catracas, os porteiros, por muitas vezes, sequer eram notados pela comunidade universitária. A partir disso, buscamos conhecer um pouco da história de um desses funcionários, importantes para os docentes e discentes da UFMG e da FAFICH

Catracas da Fafich/Foto: Thiago Cândido

José Gomes do Nascimento, “Seu Zé”, para os chegados, 62 anos. Pai de dois, cruzeirense “sangue roxo” e porteiro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Um metro e setenta, pouca barba, muita história. Funcionário terceirizado da Universidade há quinze anos. Nascido na pequena cidade de São Gonçalo do Sapucaí, no interior de Minas Gerais. “São-gonçalense com orgulho”. Vida difícil, berço pobre e origem humilde. Pais lavradores, família extensa. Oito irmãos ao todo, sendo quatro ainda vivos. Aos dez anos de idade perdeu o pai, vítima de uma doença pulmonar, e viu a mãe sozinha tocar a criação do bando.

Aos 16, deixou a cidade natal em busca de trabalho na capital mineira. “Já fiz de tudo nessa vida. Fui marceneiro, catador, mas nunca desempregado”, diz. Aos quarenta e sete, conseguiu o emprego como porteiro na FAFICH, e tem sido assim desde então. Faculdade só mesmo até a portaria, nunca adiante. Com o passar dos anos, tornou-se uma figura querida no prédio. Seu Zé é conhecido por todos e sempre recebe elogios pela sua simpatia e presteza. Se orgulha muito do seu trabalho e sabe da importância da função para a Universidade e para os alunos que passam por ali diariamente.

A vida de Seu Zé daria um ótimo perfil não fosse o fato de o são-gonçalense ser um personagem fictício, inventado para a reportagem. Diferentemente da figura, entretanto, dezenas de porteiros reais espalhados pelo campus carregam inúmeras histórias encobertas pela inércia do dia-a-dia. Um deles, que será referido nesta reportagem como Paulo 一 a fim de mantermos sua identidade oculta à contratante 一, contínuo em uma das entradas da FAFICH há seis anos, percebe agora, no contexto de ativação das catracas dos prédios, uma mudança nesta perspectiva de invisibilidade. “Tinha menino que mal me cumprimentava, passava direto, e agora começou a conversar comigo”, conta.

Quebrando a invisibilidade

Belo-horizontino do Barreiro, Paulo é um de três irmãos. No fim de abril, completou 48 anos junto de seu gêmeo, com quem divide moradia na casa onde cresceram. Vêm de uma família de boa condição financeira: o pai, que atualmente mora com a esposa no interior de Minas Gerais foi funcionário dos Correios e possui alguns imóveis para locação. “Nunca tive dificuldade financeira”, destaca o barreirense, e completa afirmando que até hoje os pais o suportam nas contas. “Eles gostam”, afirma.

Solteiro e sem filhos, Paulo se denomina um homem festeiro. “Muita gente gosta de mim. Sempre estou em festas, churrascos… sempre frequentei clubes, joguei bola”. O amor pelo futebol é evidente e alvinegro: “Sou atleticano. Atleticano!”. A personalidade foliona parece ser fruto do bom convívio familiar. “Eu fui criado em uma família boa. Eu vou para a roça encontrar com eles (os pais) e nós fazemos churrasco… apesar do meu pai ser chato com excesso de bebida. Vai ficando velho, vai ‘enchendo o saco’. É aceitável”.

Mas nem tudo é festa. Ainda jovem, Paulo já “pegava no batente”. “Eu trabalhei autônomo na época em que eu estava fazendo segundo grau técnico em processamento de dados no Colégio Luiz Gatti. Depois trabalhei com minha mãe, aproveitei e comecei a fazer faculdade”.

Paulo cursou História por dois anos na Faculdade Asa de Brumadinho, mas não chegou a concluir a formação devido a acentuada timidez. “Eu sou muito tímido pra falar na frente (das pessoas). […] Eu fui apresentar um trabalho, ‘fechei a cabeça’, comecei a ler a cola, esqueci do retroprojetor, esqueci tudo. Aí minha turma fracassou e eu me senti muito pra baixo… abandonei a faculdade”, confidenciou.

Distante da timidez de outrora, Paulo relata o começo da sua jornada como porteiro. Foi em uma “oficina de conserto, autopeça, venda de caminhões novos e usados”, como relatou. Ele conta que ficou lá um ano e dois meses pela conserva que tinha. “Perdemos o setor, me mandaram para a PUC (Pontifícia Universidade Católica), fiquei lá por quase nove anos. Perdemos (o setor), acabou, ficou orgânico. Aí me mandaram para ‘cá’, e aqui eu estou há seis anos. Somando, dezesseis anos, né?”, detalhou o porteiro.

Entre uma fala e outra, inúmeras pausas para ajudar alunos e visitantes que buscavam adentrar na FAFICH. Na data da entrevista, o prédio recebia alguma espécie de seminário que ampliava a circulação de pessoas pela portaria. Solícito, Paulo instruía cada uma delas.

Do outro lado das catracas

Com a ativação das catracas nas entradas da Faculdade em 2023, veio à tona não só a discussão sobre a necessidade das instalações, a restrição da liberdade de trânsito e a ampliação da segurança no edifício, mas também a transformação das interações entre pessoas e ambiente. Nesse sentido, Paulo diz se sentir mais vivo com a nova realidade: “Agora eu converso mais com as pessoas”. A fala aponta a personificação sofrida pelo porteiro após a ativação das barreiras, como se antes a figura não passasse de um objeto inanimado componente da paisagem universitária.


Os reflexos da nova realidade também melhoraram a qualidade de vida de Paulo, que enxerga as novas interações como uma terapia. “Eu ficava no celular mesmo, o dia inteiro no celular. Agora eu estou trabalhando. Antes não trabalhava… Eu estou mais empenhado, mais ativo”. Ainda nas palavras do porteiro, a nova realidade o ajudou a “desconectar um pouco a mente. […] Agora as horas passam mais rápido, eu esqueço do relógio, as horas voam”. O cenário de mudança parece também ter renovado as energias do porteiro, que fita novas possibilidades: “Estou pensando em montar um negócio. Vai mais longe quem corre atrás”.