Como as áreas verdes do campus Pampulha e a comunidade universitária constroem uma ecologia possível
Por Enaile Almeida
“Atravessar a portaria da Antônio Carlos sempre pareceu como entrar em um portal, em um contexto totalmente novo — diariamente, em toda semana mesmo. Estar em contato com as áreas verdes era um acalento, um ritmo de respiração diferente em meio aos deveres acadêmicos e profissionais”. Para Nataly Santos, egressa do curso de Relações Públicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse era o lugar que ocupava as áreas verdes do campus Pampulha em sua rotina. “Eu poderia descansar se quisesse. Eu poderia me escorar em uma árvore se quisesse. Era diferente”, completa.
A fala de Nataly é só um dos indícios do que o contato com espacos como esses, repletos de outras formas de vida, pode proporcionar aos estudantes e demais pessoas que frequentam o campus: um refúgio. Num olhar mais amplo, essas interações irradiam possibilidades de contrapor um modo de vida que ameaça a aliança entre os seres humanos e o meio ambiente.
“Ser todo é ser parte”
Essa relação, ou melhor, essa amizade com o campus pode ser compreendida de maneira mais sensível como uma simbiose, um “viver junto”. A teoria da simbiogênese, uma das contribuições da cientista Lynn Margulis (1938-2011) para a compreensão da evolução e da interconexão dos sistemas biológicos no planeta, sugere que a vida na Terra surgiu através da cooperação entre diferentes organismos, contrariando a perspectiva tradicional da evolução baseada na competição.
Sob esse ponto de vista, o campus Pampulha pode ser percebido como um ecossistema particular, que a partir de múltiplas relações simbióticas talvez constituam o que Luciana Bragança, professora do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFMG, vem chamando de uma ecologia possível. “É uma relação que você vive cotidianamente e isso vai criando em você, na comunidade, uma sensação, um elemento de pertencimento naquela cadeia ecológica”, explica a professora.
A partir dessa perspectiva, desenvolvida e estudada pelo grupo de pesquisa Natureza Política, é possível formar pessoas conscientes da necessidade, ou pelo menos da importância, da preservação ambiental. “E não de uma forma burocrática ou institucionalizada, essa consciência, esse entendimento, é criado pela vivência”, afirma Luciana. Esse olhar se inscreve num movimento mais amplo de reconhecimento dos direitos da natureza, especialmente na América Latina.
Ao incorporar visões ancestrais de seus povos originários, países como Equador e Bolívia têm buscado integrar a “Pachamama”, ou “Mãe Terra”, em seus sistemas jurídicos. Esse reconhecimento legal, ao desafiar normas eurocêntricas, protege o meio ambiente e valida a sabedoria ancestral que entende a natureza como um ente vivo. No Brasil, o reconhecimento do Rio Laje, em Rondônia, como um sujeito de direito, exemplifica essa mudança de paradigma, que fortalece a ideia de uma interdependência entre ecossistemas.
Do rio ao concreto, do pasto às matas
O professor João Renato Stehmann, do Departamento de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG (ICB), ressalta a relevância da grande mancha verde que constitui o campus Pampulha no contexto de Belo Horizonte.
“É uma das maiores áreas verdes da cidade, a gente não pode nem imaginar a Pampulha sem esse espaço aqui. Se não existisse, hoje, provavelmente, a gente teria um cenário muito diferente aqui, uma ocupação semelhante aos outros bairros da cidade, com muita área impermeável, muito concreto e pouca ou nenhuma área verde”, defende o docente.
O planejamento da capital mineira, que um dia já foi apelidada de cidade jardim, privilegiou modelos higienistas de cidade em detrimento da incorporação de seus rios e matas na composição urbana. Belo Horizonte foi construída na área de quatro grandes bacias hidrográficas: Ribeirão Arrudas, Rio das Velhas, Ribeirão do Onça e Ribeirão do Isidoro. O perímetro da cidade tem diversos rios e córregos invisíveis, enterrados, cobertos por ruas e avenidas durante o processo de urbanização.
A retificação dos cursos d’água, iniciada na década de 20, foi uma medida para adequar esses corpos à expansão urbana. Depois de canalizados, os rios foram cobertos. Até hoje, a capital sofre com as consequências disso: a maioria dos córregos e ribeirões pelos quais é atravessada passaram a integrar sua rede de esgotos e grandes enchentes criam problemas ainda maiores nos períodos chuvosos.
“Hoje a gente já sabe que o aumento da temperatura é muito em função de algumas liberações para ocupação que impactaram severamente o clima da cidade”, destaca o professor. Mais de 7 mil árvores foram derrubadas apenas em 2023 em Belo Horizonte, segundo dados da prefeitura. No mesmo ano, o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) do governo federal apontou que a cidade foi a capital que mais esquentou no Brasil, com registros de 4,2ºC acima da média.
Em contraste com esse movimento, o campus Pampulha é uma espécie de refúgio. Sua construção foi feita em meio a um deserto de vegetação, numa área de pastagem, a antiga Fazenda Dalva. “Essas matas que hoje a gente tem aqui no campus são originadas de um processo de sucessão de remanescentes que sobraram naquela época e que se consolidaram”, explica Stehmann.
A professora Luciana também reconhece essa característica. “É incrível entender como a presença de um campus de uma universidade, naquele território, fez uma diferença ambiental grande, historicamente. Foi um projeto de território”, comenta a pesquisadora. Anna Carolina Cruz, graduanda em Letras e jornalista pela UFMG, observa que o clima no campus é mais confortável do que nas áreas mais urbanizadas da cidade. “Nunca sinto muito calor lá”, conta a estudante, que sempre espera pelas aulas nos gramados, lendo ou passando tempo.
Graças à capacidade de resiliência da Mata Atlântica, hoje o campus abriga uma vegetação surpreendente e diversa.
“A diversidade é uma coisa que caracteriza muito o campus e isso é muito legal. A gente tem aqui espécies nativas, das matas originárias daqui, frutíferas que foram plantadas, muitas ornamentais. Hoje, o campus é um jardim botânico, a gente poderia falar assim”, exalta o professor Stehmann.
A região da Pampulha é uma zona de encontro de diferentes tipologias da Mata Atlântica e do Cerrado, portanto abriga elementos de ambas as formações vegetais. As áreas verdes do campus são essenciais tanto para a flora quanto para a fauna dessa região, pois permitem a existência e a reprodução de animais que necessitam de um espaço maior para encontrar alimento e se reproduzir, como o jacu e o mico-estrela, que já foram avistados por ali. “E mais do que isso, pela extensão e conexão que tem hoje com a Pampulha, é um corredor ecológico, que permite que os animais, principalmente aves, circulem por outras áreas”, explica o professor.
Alianças verdes
Estudos científicos têm demonstrado ainda que viver em áreas verdes faz bem para a saúde mental dos seres humanos. Para a professora Luciana, “os espaços, verdes ou não, os espaços no geral, têm sim uma influência em como a gente vive, na qualidade das nossas percepções e ações”. Essa influência não está necessariamente relacionada ao tamanho ou à opulência do espaço em termos de materiais, mas sim à sua riqueza em termos de sensações, da possibilidade de tranquilidade, acolhimento e de um sentimento de pertencimento.
André Brasil, professor do Departamento de Comunicação e integrante da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, acredita que isso é possível porque essas relações contrariam a noção de que os seres humanos estão sozinhos no mundo.
“A gente está sempre numa relação, que é uma relação inclusive com agências que não são só humanas: com bichos, com as folhas, com os encantados. Tem uma miríade de seres, de pessoas com as quais a gente se relaciona, que não são só humanas. Eu acho que esses espaços permitem essa dimensão relacional com o fora”, reitera o professor.
Bianca Rodrigues, egressa do curso de Psicologia na UFMG, conta que já participou de um grupo de estudos que costumava se reunir no gramado de um dos Centros de Atividades Didáticas. “Eu lembro que teve uma vez que foi no Jardim Mandala e no caminho pra lá a gente foi por aquela trilha que corta caminho pelo bandejão. E essa trilha, uma trilhazinha, só um quarteirão, esse lugar é muito precioso pra mim”, compartilha a psicóloga.
Emanoelle Vasconcelos, estudante da Escola de Belas Artes da UFMG, comenta que antes mesmo de se matricular, já havia se encantado pelo campus durante excursões e passeios. “Adoro andar pelo campus, acho que foi uma das primeiras coisas que eu reparei, antes mesmo de me tornar uma estudante da UFMG: eu achava tudo muito lindo. Parecia tão gostoso estar num ambiente assim”, conta a universitária.
Emanoelle descreve sua relação com a natureza no campus como uma espaço de convívio constante, tanto com amigos quanto, indiretamente, com sua família, que nunca visitou a universidade.
“Eu sempre mando fotos pra minha mãe, principalmente quando o campus está florido e ela acha muito lindo. Eu relaciono muito a minha mãe e a natureza da UFMG porque ela é uma pessoa que gosta muito de plantas, minha casa é muito florida”, completa a estudante.
Já os pais de Anna Carolina Cruz tiveram a oportunidade de conhecer o campus, num domingo, na época em que a jornalista começou sua primeira graduação.
“Como são do interior, eles apreciam muito lugares assim, com muita área verde, que remetem às cidades interioranas daqui de Minas Gerais, e eles ficaram encantados com a universidade por isso. Passamos um tempo andando por lá, e foi a minha forma de incluir os dois na minha nova vida”, conta Anna.
Pedro Bernardo, estudante do curso de Jornalismo na UFMG que também vem do interior do estado, considera a capital uma cidade cinza demais. Por isso, encontrou seus próprios rituais pelos jardins do campus: “Ficava deitado no gramado da Música, tive bons momentos ali”, comenta.
Pedro compartilhou sua experiência em uma disciplina de laboratório realizada na Estação Ecológica da UFMG, que incluiu a participação de mestres do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais. As aulas foram ministradas em meio às árvores, embaladas pelos sons das matas.
“Era outra experiência, a tarde inteira ali, duas vezes na semana. A sensação… o friozinho, o cheiro, o barulho dos bichos… Foi uma disciplina muito boa e uma das melhores experiências que eu tive na graduação inteira, não só pela coisa técnica, mas por ver a outra relação que essa galera tinha e tem com o verde, com as plantas. Guardo uma memória muito boa”, conta o estudante.
Nataly Santos relembra com frequência seu último momento com o campus, antes da pandemia de Covid-19 que a impediu de vivenciar sua amizade com os gramados: “Meus amigos andando em meio às árvores, aquele som meio natureza meio cidade grande do estacionamento e os pés passando pela grama sem nem imaginar que aquele seria o nosso último intervalo”.
Uma ecologia possível
Dos momentos de ternura vividos pelos estudantes de graduação — inscritos em suas memórias ao som das cigarras, nos gramados recém tocados pela chuva — às peregrinações dos micos pelas calçadas delicadamente rachadas por troncos de 40 ou 50 anos de idade, o inusitado ecossistema simbiótico do campus Pampulha aponta um caminho possível nessa era que se convencionou chamar de Antropoceno.
De maneira empírica, os estudantes que frequentam o campus exercitam uma percepção de si como parte de um todo, em que as plantas, as águas e os animais também são agentes, com os quais é possível se aliar para experienciar a vida de maneira mais sensível.
No grupo Natureza Política, a professora Luciana trabalha outras estratégias que tornam isso possível. Através do Projeto Multiespécies, por exemplo, os estudantes de arquitetura exercitam a seguinte proposta: “Vamos supor que seu cliente de arquitetura são os animais urbanos, como é que você pensaria a cidade? Seu cliente de arquitetura são as plantas ou as águas urbanas, como é que você pensaria essa cidade?”.
O Cinema na Mata é outra dessas iniciativas, inclusive dentro do campus. A disciplina surgiu como uma proposta de cinema ao ar livre, em 2022, logo depois da pandemia de Covid-19, pelo professor André Brasil junto aos professores Pedro Aspahan, da Belas Artes, e Eduardo Rossi, da Música. A ideia veio das experiências em eventos e na Formação Transversal em Saberes Tradicionais. O Bosque da Música, espaço já precioso para os estudantes, é sede das exibições de filmes e conversas com diretores e diretoras mestres e mestras dos saberes.
André Brasil reconhece que, ao valorizar as áreas verdes e as relações que esses espaços produzem, essas iniciativas amenizam um problema na universidade: o distanciamento do presente. Às vezes, aquilo que faz bem acaba perdido numa rotina automatizada, em que o aspecto interacional do cotidiano é naturalizado. “Mais uma vez, os mestres nos ensinam com essa ideia da presença, de estar, de perceber os espaços e as relações. Essas atividades produzem presença”, afirma o professor.
Além disso, num contexto macropolítico e macroeconômico marcado pelo acirramento de tensões, com o crescimento de ideologias fascistas, ultrapassar a lógica antropocêntrica na relação com os espaços é um imenso desafio. “Mas o que a gente percebe, por exemplo, nos Saberes Tradicionais ou iniciativas como essa do Cinema na Mata, é que quando se faz na brecha, muita coisa se transforma”, sugere Brasil.
As áreas verdes do campus Pampulha são cenário para experiências humanas intimamente relacionadas à natureza que formam uma amizade em grande escala. Na medida que demonstram o que uma relação harmônica entre espécies humanas e não-humanas pode proporcionar para um ecossistema, essas amizades contribuem para o que o ambientalista e filósofo Ailton Krenak chama de “empurrar o céu” e adiar o fim do mundo.
* Reportagem produzida na disciplina Laboratório de Produção de Reportagem sob supervisão da professora Dayane do Carmo Barretos