Uma das fundadoras do circuito urbano de arte de BH fala sobre a concepção e o futuro do projeto.
O que é uma exposição de arte? Essa pergunta parece ter uma resposta óbvia, mas são justamente as perguntas mais simples que acabam sendo as mais traiçoeiras. O primeiro pensamento de muita gente pode ir direto para um estereótipo de museu – Um casarão imponente com quadros e estatuas espalhadas por seus gigantescos cômodos, ou então talvez algumas pessoas imaginem uma galeria a céu aberto, um ateliê, um festival de cinema… Enfim, as possíveis respostas são praticamente infinitas, já que qualquer lugar PODE acabar sendo palco de alguma exposição de arte, afinal o que configura uma exposição de arte não é necessariamente o lugar em que ela é realizada, e sim as próprias obras de arte que lá estão expostas, pelo menos de acordo com o senso comum.
Porém, eu garanto que apenas um grupo muito pequeno de pessoas, quando confrontados com essa pergunta, pensariam imediatamente em uma exposição de murais pintados nas empenas de prédios do centro de uma cidade, todos visíveis a partir de um ponto comum, localizado em um mirante. É uma noção até mesmo um pouco estranha, não é? Ser uma exposição que fica na rua, sem ter que agendar visita, mostrar a identidade na porta, nem pagar ingresso. Mais estranho ainda é o fato de as obras ficarem tão longe do observador e uma das outras, ocupando uma área tão grande que é impossível definir tradicionalmente onde exatamente a exposição está localizada. Ela está lá pra quem quiser ver, na verdade.
Se o exemplo que eu acabei de dar pareceu muito específico pra ser hipotético é porque essa exposição de fato existe – o Mirante de Arte Urbana da rua Sapucaí, localizada ao lado do centro de Belo Horizonte. Começando em 2017 com a pintura de 4 murais em agosto, mais 2 no aniversário de 120 anos de BH em dezembro e depois com mais 4 sendo pintados em 2018, dez murais, todos visíveis do mirante na Sapucaí, que configura o local como único mirante de arte urbana do seu tipo no mundo. Muito interessante ver como um projeto focado em grafite e pixo dessa magnitude surgiu no mesmo ano da polêmica de quando o ex-Prefeito de São Paulo João Dória mandou pintar de cinza por cima dos murais de grafite da Avenida 23 de Maio. É fato que a arte urbana ainda sofre muito preconceito e perseguição no Brasil, afinal, ninguém acharia normal se um Prefeito qualquer organizasse uma queima de livros ou colocasse quadros pintados num moedor de papel. Mas pintar por cima de grafites? Perfeitamente aceitável.
Essa ideia do projeto CURA (Circuito Urbano de Arte) como sendo um projeto artístico e político de valorização da arte de rua foi o que mais me chamou atenção e me incentivou a pesquisar mais sobre ele. Como sou muito ligado a cultura hip hop e as artes no geral, a primeira coisa que eu pensei foi na proximidade que a rua Sapucaí tem com o Viaduto Santa Tereza – lar do Duelo de Mcs, e anualmente palco do Duelo de Mcs Nacional, um dos maiores eventos de rap do Brasil, organizado pelo grupo belo-horizontino Família de Rua (FDR), que são ligados a várias atividades, o pixo sendo uma delas. Será que o CURA tem alguma ligação ou parceria com a FDR? Outra coisa que me interessou foi que nas minhas pesquisas li que o CURA tem seus integrantes fazendo o papel de curadores, selecionando artistas baseado em diversos critérios e valores internos, conseguindo as autorizações para pintar as empenas dos prédios e organizando a logística no geral com os artistas. Gostaria de saber quais são esses critérios e como funciona a organização interna do projeto. Gostaria também de ser informado sobre isso a partir de alguém que esteja bem envolvido nesse processo. Contactei então o projeto e acabei tendo acesso a Janaína Macruz, cofundadora do CURA, que me ajudou respondendo algumas perguntas a respeito do projeto e das suas questões internas.
Como surgiu a ideia do projeto? Qual o envolvimento que os idealizadores tinham com a arte urbana antes da idealização do CURA?
O Cura surgiu da vontade dos artistas Priscila Amoni e Thiago Mazza de pintarem 1 empena, a Priscila entrou em contato com a Juliana, esposa e agenciadora do Mazza, para conversarem e surgiu a ideia de em vez de fazerem uma ação isolada, se juntarem para fazer um festival de empenas. A partir daí elas me convidaram, amiga e produtora cultural, na época eu estava trabalhando em um grande projeto de Arte urbana o Telas Urbanas, realizado pela Prefeitura de BH em 2015, e sentamos pra pensar e desenhar o Festival.
Quais foram os critérios que mais influenciaram na escolha da rua Sapucaí como o foco do projeto?
Durante o mapeamento das empenas no centro da cidade, resolvemos escolher as empenas com um ponto de vista em comum para o público, e transformar o mirante da Sapucaí em um mirante de arte urbana.
A rua Sapucaí é muito próxima do viaduto Santa Tereza, que hoje abriga um dos maiores eventos de cultura urbana do Brasil com a Batalha de MCs. Esse fato teve influência no processo de idealização do projeto, visto que o rap e o grafite são duas formas de arte tão interligadas?
Não teve. A escolha da Sapucaí foi pensada para criar o Mirante de Arte Urbana, que segundo nossas pesquisas é o único do mundo. Mas independente disso somos amigas do pessoal do Duelo, inclusive um dos produtores do Cura é um integrante da Família de Rua organizadora do Duelo, o PDR.
Como é o processo de seleção dos artistas? Eles são convidados ou se oferecem para pintar os murais?
Fazemos uma curadoria à três mãos, e sempre estamos atentas a diversidade de estilo, de técnica, tentando ter uma mostra de cada na nossa coleção de Obras gigantes. Temos como princípio também que que tenha pelo menos 50% de mulheres, um artista local, um internacional, além de estarmos atentas a diversidade de raça e geográfica dos artistas.
O Mirante de Arte Urbana da rua Sapucaí é considerado o único do seu tipo no mundo. O projeto de vocês recebeu algum reconhecimento internacional por isso, seja em forma de prêmios, reportagens, documentários, etc.?
Não nesse sentido, mas já tiveram matérias internacionais sobre o Festival em mídias especializadas. Atualmente o Festival é conhecido no mundo inteiro na Cena da Arte Urbana.
Quais são as metas futuras para o projeto CURA?
O Cura é um Circuito de Arte Urbana e nesse sentido queremos criar mais mirantes por BH. Ainda não saímos da Sapucaí porque na verdade o festival existe apenas há 2 anos, teve apenas 2 edições e 1 edição especial de aniversário no mesmo ano da primeira.
Por último, é comum ver um juízo de valor muito grande a respeito de todas as formas de arte urbana, principalmente o pixo, já que muitas pessoas não o consideram como arte. Existe essa concepção de que o grafite é “do bem” e o pixo é “do mal”, uma forma de vandalismo. Esse discurso inclusive entrou muito em pauta depois que o ex-Prefeito de São Paulo, João Dória, pintou por cima dos trabalhos na Av. 23 de Maio, justificando seus atos usando desse argumento. Considerando que seu projeto trabalha com grandes murais de grafite, a arte “do bem”, o que vocês têm a dizer sobre essa distinção que se tem entre pichação e grafite? Existe uma diferença tão grande entre os dois ou é só preconceito?
Pixo, Graffiti, Arte Urbana, Arte Pública é tudo arte de rua. O respeito ao pixo está presente desde o começo do Festival. Não escolhemos empenas que já estejam toda pixada, e quando escolhemos alguma que tenham alguns pixos conversamos com os autores e colocamos eles em diálogo com o artista que vai pintar a empena, e normalmente eles acabam ou refazendo os pixos em um espaço acordado, como foi o caso da empena do DMS, ou eles acabam sendo coautores da obra, como foi o caso da empena da Milu Correch, em que o pixo foi a textura base de toda a obra. E na última edição tentamos mostrar para o público a importância artística e histórica das letras, que deu início ao movimento do Graffiti em NY, com a empena de Letras, onde participaram 21 artistas, incluindo pixadores, para deixarem sua marca em uma empena.