Dossiê: Transporte
Conheça a história de algumas mulheres que dirigem ônibus e vans em BH.
Beth é apaixonada por crianças. Andreia tem carinho especial pelos idosos. Beth teve três filhos, Andreia dois. Beth tem 52 anos, Andreia 33. Beth é casada, Andreia é separada e tem um namorado. Andreia é bastante vaidosa, não se esquece dos brincos, do relógio e de fazer o cabelo e a sobrancelha. Já Beth tem uma vaidade contida, discreta. Não esquece de seus óculos escuros e do batom rosa claro. Beth faz artesanato nas horas vagas, Andreia prefere descansar e ficar com os filhos. Beth é motorista profissional, Andreia também.
O escolar guiado por Elizabeth da Silva Ferreira é também seu meio de transporte fora do expediente. O marido, Humberto, não possui carteira de habilitação. Nos passeios, compromissos e viagens, é Beth quem dirige, com prazer. Não se incomoda em ser a motorista durante e após o horário de trabalho. Pelo contrário, diz já ter sido elogiada pelas manobras que faz para estacionar em frente às escolas. Quem olha para sua van, cheia de adesivos coloridos e bichinhos de pelúcia, percebe logo que ela transporta crianças. Há dezoito anos na profissão, essa mulher ama o que faz. Diz até que sua satisfação com o trabalho compensa o estresse enfrentado diariamente no trânsito de Belo Horizonte.
Andreia Lima é motorista de ônibus da linha 1170. Seu percurso diário inclui os bairros Santa Lúcia, Savassi e Mangabeiras. Certos passageiros da linha são fiéis. Aguardam o transporte no ponto e ficam mais felizes quando é Andreia quem chega. Um senhor, já de cabelos brancos, entra no veículo e, quando mal alcança o último degrau da escada, pega na mão da motorista e a cumprimenta pelo nome. De seu assento prioritário e em conjunto com outros passageiros, conversa com Andreia até que termine o trajeto, às vezes sendo interrompido por algum grito de “Tchau, Andreia!” que vem da parte de trás do ônibus.
Para conciliar a atenção no trabalho e na família, ambas dão seu jeito. Beth consegue cumprir seus horários e programar suas atividades de acordo com os horários de saída e de chegada nas escolas. Andreia, por trabalhar cerca de 10 horas diárias, aproveita as folgas que surgem em feriados e fins de semana para cuidar de sua casa e ficar com os filhos.
Carregam histórias muito ricas em experiências. São corajosas e não temem o preconceito por serem mulheres. Ainda que tenham seu espaço no mercado, o estigma da “mulher no volante perigo constante” precisa ser constantemente superado pelo bom desempenho no trânsito e nas manobras. Elas não querem fazer feio, não querem dar motivo para que os preconceitos ganhem força. São cuidadosas com seus meios de trabalho e muito atenciosas. Beth, por exemplo, troca sua van de 5 em 5 anos, para que os problemas mecânicos não se aproximem, e olha seus retrovisores vigilantemente.
Opinião forte e determinação
Para Andreia tudo começou há pouco mais de cinco anos. Na rua de sua casa, observou uma cena de discriminação de gênero com uma motorista de ônibus. Alguns homens riam e debochavam enquanto a condutora realizava uma manobra complexa. Ao assistir àquela cena, Andreia foi até à moça e disse que, apesar da presença dos “babacas”, como se referiu a eles, acreditava no conhecimento e na habilidade da motorista. Depois dessa motivação, vinda de uma desconhecida, as duas saíram ganhando: a moça conseguiu realizar a manobra e Andreia encontrou ali uma possibilidade de profissão.
Sua rotina é pesada. Levanta às 7 da manhã e dorme na última badalada do dia. Ela realiza até seis viagens diárias, que são distribuídas no decorrer do seu turno de trabalho e que costumam durar de 35 a 55 minutos, dependendo do trajeto e do trânsito. A rotina maçante não consegue anular o amor explícito de Andreia por sua profissão.
No dia 12 de setembro de 2013, sentada em uma das poltronas no fundo do ônibus 1170, compartilhou esses e outros detalhes da sua vida com bastante simpatia e confiança, ainda que nunca tivesse sido entrevistada anteriormente. O cobrador, Rafael, ouve tudo o que diz a “motô”, como muitas vezes é chamada por ele, e acrescenta um comentário aqui e outro ali, quase sempre para legitimar o que ela fala.
Determinação e vaidade
Andreia é dessas mulheres que exalam coragem, determinação e inspira quem ouve suas histórias. A conquista do seu espaço não veio de modo repentino. Ela conta que não sabia o que fazer após o divórcio, pois o trabalho autônomo realizado juntamente com seu, até então, marido, era sua fonte de sustento. Como não podia ficar parada, Andreia procurou uma vaga de cobradora de ônibus e, mais tarde, tornou-se a primeira mulher motorista de ônibus da empresa em que começou sua carreira. Andreia compartilha sua história com o entusiasmo de quem sabe a importância de suas conquistas e do papel que desempenha cotidianamente.
Ao contrário do que a vaidade de Andreia pudesse sugerir, não havíamos agendado nenhuma entrevista. Além das sobrancelhas feitas pela manhã e do uniforme da empresa, ela levava pelo corpo anéis, relógio e brincos longos. As sobrancelhas, inclusive, são logo mencionadas por ela em nossa conversa. A motorista conta que estava bastante estressada pela manhã, mas, no momento em que saiu de casa para ir ao salão, deixou atrás da porta toda a irritação. Aliás, esse é o mesmo comportamento que ela espera dos passageiros. Entre um toque no cabelo e uma olhada no relógio, Andreia desabafa: o trânsito não a estressa, mas o que irrita mesmo é quem entra no ônibus e desconta nela os desprazeres da vida.
A mãe de muitos filhos
Os problemas não são os protagonistas da rotina de Beth. A vida lhe deu três filhos, dois deles com uma grave doença na medula óssea, sobre a qual “é difícil entrar em detalhes”. Ela perdeu os dois ainda adolescentes, mas Wallison, hoje com 27 anos, sustenta a alegria da mãe, que amou os outros dois enquanto houve tempo. Esse amor foi inclusive o motivo para a escolha da profissão. Elisabeth viu na carreira de motorista escolar uma alternativa para poder cuidar dos filhos doentes, que não andavam. Era possível fazer seus horários e estar integralmente com os dois após o curto expediente. Não pensou duas vezes. Saiu do escritório em que trabalhava e, com total apoio do marido, que é gerente administrativo, escolheu embarcar nesse trabalho de levar e buscar crianças.
E o trabalho continua firme. Sem tantas obrigações atualmente, Beth programa um horário tranquilo e o cumpre religiosamente. Acorda bem cedo, leva e busca as crianças no turno da tarde e logo está em casa, para dedicar-se ao artesanato, seu hobby. Lixeirinhas, vasos de flor, tudo ela faz usando a técnica do Patchwork, trabalho feito com retalhos.
Quando perguntada sobre uma situação marcante na carreira, ela narra uma história bastante curiosa. Durante uma volta da escola, um dos meninos teve diarreia. Infelizmente, o problema resultou numa situação constrangedora: o assento em que a criança estava sujou-se completamente. No momento do ocorrido, a van já não estava muito cheia, mas o menino voltou para a casa arrasado e não queria mais voltar ao escolar. Faltou por uns dois dias e Beth achou importante ir conversar pessoalmente com o garoto. Explicou que, mesmo que o cheiro tenha sido perceptível, ninguém soube que era ele quem tinha passado por aquela situação, porque a van já estava vazia. Disse ainda que sua amizade com ele era capaz de superar a situação desagradável e que ele faria muita falta no dia a dia de todos do escolar. Por último, ressaltou que essa era uma oportunidade para ser corajoso. No dia seguinte, o menino esperou a van na porta de sua casa com um semblante muito confiante. Beth se sentiu realizada e disse que a história comprova o diferencial de seu trabalho, o carinho e a atenção individualizados.
Do volante ela identifica o que acontece nos assentos de trás da van, apenas pela voz de cada um. Num dos momentos em que foi acompanhada por conta dessa reportagem, conversou com uma de suas crianças sobre o que ele havia aprendido na aula de ciências e notou, na mesma hora, que uma outra estava calada. Expressou o fato e logo a questionou, como uma mãe, o que havia acontecido. Para Beth, todas as crianças são igualmente importantes e o amor ao próximo deve ser diariamente exercitado por todos. Caso contrário, a vida fica muito dura.
Futuros traçados
Os dezoito anos de profissão e a flexibilidade de horários motivam Beth a seguir nesse trabalho de motorista até a aposentadoria. No entanto, seu plano de continuidade não impede a efervescência de sonhos concomitantes. Ela não é de contá-los assim de primeira, mas sorri com o otimismo de quem sonha. Revela apenas alguns, sempre discreta. Planeja ir a uma nutricionista e começar uma dieta saudável, continuar aprendendo técnicas de artesanato, melhorando ainda mais sua qualidade de vida.
Já Andreia, revela seus sonhos transformadores sem hesitar. Mesmo não reclamando da árdua rotina no trânsito, ela busca mais tranquilidade. Quer seguir temporariamente como motorista de ambulância para ter tempo de lutar pelo seu sonho de estudar Direito. Dessa forma, ela trabalharia menos horas por semana, permaneceria no volante, e teria mais tempo para se preparar para o vestibular. Após ter alcançado seu sonho inicial – o de ser motorista- Andreia agora busca alcançar um novo sonho – o de ser juíza ou delegada.
Sem ter lido sobre sua história, Beth chegou a questionar às autoras desse texto se sua história era boa o suficiente para sair na revista. Talvez ela não saiba que sua vida, assim como a de Andreia, é um recorte essencial da conjuntura brasileira e deve ser lida por todos. Não só para repercutir o crescimento das mulheres no mercado de trabalho, nem tampouco demonstrar somente a competência feminina no volante. Mais do que isso, suas histórias servem para nos inspirar a sermos a melhor versão de nós mesmos, por meio de escolhas, em vez do providencialismo.