Dossiê: Outro Olhar

Uma crônica sobre diversão entre amigas no cemitério.

Por Izabella Lourença

 

O Cemitério do Bonfim

Quando criança, mamãe morava no bairro Santo André, perto do Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte. Mamãe contou que já fora algumas vezes ao cemitério quando morria alguém que ela conheceu nas casas em que trabalhava como doméstica.

– Havia também as procissões para a santinha, uma menina que morreu novinha e foi enterrada lá. Todo ano tinha – contou.

Os arredores do cemitério também eram muito conhecidos por ela, principalmente a Igreja Nossa Senhora da Conceição, à qual ela ia todos os dias buscar sopa para o jantar. Mamãe contou algumas histórias dos anos em que circulava pela região e, sobre o cemitério, como não falar sobre a loira do Bonfim?

– Ela atraía os homens, passava a noite com eles, e no outro dia eles acordavam em cima de um túmulo – se eu não conhecesse suas ironias há vinte anos, ela me convenceria que acreditara nessa história.

 

A instigante vista na chegada do cemitério

A instigante vista na chegada do cemitério

 

Dessa vez, era eu quem iria conhecer os lugares que mamãe conhecia tão bem. Precisava escrever sobre o cemitério para uma disciplina na faculdade e, como uma boa estudante cheia de trabalhos no fim do semestre, aproveitei a manhã do dia 17 de abril, véspera de feriado e recesso escolar, para visitar o local. Só havia uma pessoa no mundo que toparia embarcar nessa comigo – mamãe, como uma boa servidora pública que trabalha em véspera de feriado, não poderia ser. Para ir a qualquer cemitério, Daiane era sem dúvida a pessoa ideal para aceitar o convite, por qualquer motivo que não fosse velório.

Conheci Daiane aos doze anos, em uma comunidade no Orkut. Quase três anos depois, nos encontramos pela primeira vez. Daiane é quase mamãe, sabe todas as coisas do mundo, é compreensiva com minhas diferentes fases na vida e está sempre pronta para encarar qualquer situação comigo. Talvez essa última seja a característica mais marcante e que mais assemelha as duas.

Durante as muitas ladeiras e a vista de um monte de cruzes e túmulos alinhados ao longe, passei todo o tempo contando à Daiane das minhas experiências com o cemitério Bosque da Esperança. Não dos velórios que já fui, mas das idas entre 2006 e 2008, quando costumava sair nos fins das tardes de sábados para lá. Essas minhas experiências, por sinal, eram muito pequenas perto das de Daiane, que na mesma época, apesar de três anos mais velha, também frequentava cemitérios para beber vinho e fumar, fazendo coro a uma prática comum entre adolescentes góticos.

 

Daiane tentando descobrir em qual parte do jardim estava a sepultura, ou as sepulturas, da Família Longo

Daiane tentando descobrir em qual parte do jardim estava a sepultura, ou as sepulturas, da Família Longo

 

Enfim, após um morro que parecia não acabar nunca, chegamos ao Bonfim. Havia alguns carros parados na entrada, poucos do tipo populares, a maioria do tipo Hilux, Corolla etc. À frente, a portaria e um carro entrando. Daiane me contou sobre a vez anterior que ela havia ido àquele lugar, há seis anos:

– Eu só cheguei à porta. Estava indo para uma entrevista de emprego, vi o cemitério de longe e resolvi vir ver. Mas não tinha tempo, só cheguei à porta – fiquei pensando como seria atrasar-se para uma entrevista de emprego e justificar: “desculpe, é que no meio do caminho tinha um cemitério e eu resolvi chegar à porta”.

 

O contraste do museu de esculturas cristãs com as flores

O contraste do museu de esculturas cristãs com as flores

 

Quando passamos pela portaria, Daiane e eu compartilhávamos os mesmos pensamentos sobre a exuberância daqueles túmulos: “vamos lá, vamos logo ver tudo isso de perto”. Enquanto eu tentava achar meu prendedor de cabelo, ela perdeu a paciência e começou a andar entre os túmulos. Apressei-me para alcança-la. No caminho entre os jazigos, encontrávamos alguns coveiros andando também, alguns com enxadas, outros sem. Revezávamo-nos entre contar experiências anteriores e comentar os túmulos típicos do cemitério. Duas coisas foram as primeiras a chamar nossa atenção: as tochas ao lado de muitos jazidos e na entrada do cemitério e a presença do cristianismo. As imagens, feitas de mármore, eram de Cristo, anjos, Maria…

– Nossa, esse é um jardim – Era o túmulo da Família Longo. Um minijardim muito mal cuidado. – Deve ter sido um incêndio e morreu a família toda – especulou Daiane.

– Nossa, aquela é muito bonita. Vamos ver ela primeiro? Dá até para escorregar.

Apontei para um mármore branco posicionado em 90 graus. Em cima, três livros: Direito, Psicologia e Filosofia. Embaixo, um texto assinado por Carlos Campos: “Mural do homem do futuro. Realiza-te de tal modo que a tua realização própria não seja obstáculo à realização de cada um. Nós somos viajores da solidão de mundos. Só depois de milênios e milênios de viagem abrimos os olhos para a estrada. Como haveremos de conhecer e pensar o ponto de partida? E como conhecer o termo da chegada, se não chegamos? Sejamos bons companheiros uns para os outros. Não há outro remédio. Tenhamos confiança na experiência de viagem e através dos milênios, ela acabará por imprimir no coração de cada um a grande verdade da paz.”

– Esse aqui morreu outro dia, hein? Tem até flores, acho que eu vou pegar uma e levar para Raissa [companheira de Daiane]. Risadas.

 

Daiane não se conformava em não compreender os significados da obra feita para a morte do ex-governador Raul Soares

Daiane não se conformava em não compreender os significados da obra feita para a morte do ex-governador Raul Soares

 

Distraímo-nos quando passou um guarda civil de moto. Chegamos a cogitar que os guardas ali poderiam estar vigiando caso aparecesse um grupo de adolescente com bebidas, cigarros e drogas ilícitas. Não foi difícil chegar à conclusão que guardas-civis eram necessários ali devido ao preço dos mármores, dos quais os túmulos são feitos. Aliás, por que as pessoas gastam tanto dinheiro com a morte? Por ser uma forma de valorizar o querido falecido? Ora, se a valorização só é possível agora no campo espiritual, porque demonstrar esse valor através de algo material? No caminho, vimos duas visitas aos túmulos – uma de carro e uma a pé – além de duas mulheres negras, coordenadas por um homem branco, envernizando um jazigo.

Visitar o túmulo de alguém nunca fez muito sentido para mim, mas Daiane explicou que antigamente as pessoas acreditavam que a pessoa continuava ali após ser enterrada, por isso todo esse empenho em construir casas em cima da sepultura, símbolos ou coisas do tipo. Não à toa, as pessoas costumavam ir aos túmulos chorar, desabafar etc. Essa tradição ainda persiste hoje, mesmo que mais fragilizada. Daiane explicou muitas coisas durante a visita, inclusive os símbolos diferentes que encontrávamos no caminho.

 

Nem tudo é riqueza no Bonfim - às vezes há flores

Nem tudo é riqueza no Bonfim – às vezes há flores

 

– Esse representa o início e o fim e são os quatro elementos da Terra. (…) Esse aqui eu não sei bem, mas costumo ver ele em coisas relacionadas à Páscoa. (…) Esse é maçom. (…) Esse aqui não sei, não, parece um T… Vai ver era uma cruz e alguém roubou o mármore.

– Nossa, olha aquele ali – me inclinei ao túmulo de Olegário Maciel, grande, mesmo às vistas de longe. Mas antes que chegássemos:

– Olha, olha! – Dessa vez, o de Raul Soares. Imenso, caro. Na cor bronze sobre o granito, ao todo sete esculturas humanas. Naquele túmulo, especificamente, demoramos alguns minutos observando os detalhes, sem concluir nada sobre seus significados. Mais tarde, descobri que já existem alguns trabalhos sobre essa obra, esculpida pelo italiano Ettore Ximenes. Em cima, uma rainha, a figura da pátria, empunhando o símbolo do direito e da vitória. Ao lado dela, a imagem à esquerda simboliza a força, caracterizada pela espada que defende. A imagem à direita simboliza a eloquência, representada pela mão espalmada e por sua postura discursiva. Em plano médio, uma figura que beija o manto ilustra o amor à pátria e a outra reflexiva representa a História. Mais abaixo, dois anjos ladeiam com uma lamparina a imagem do ex-governador, encarregando-se de iluminar seu caminho além da vida.

– Credo! – Era o jazigo de Marina, a Santinha da procissão da qual mamãe havia falado. Morreu com menos de um ano. No túmulo, uma anjinha chorando. Talvez o tempo tenha sido determinante para deixá-la macabra. No túmulo, os dizeres: “Marina Morrendo. Filha adorada para o mundo e para os teus. Tu viveste imaculada para o céu e para o Deus”.

Uma fresta aberta de um jazigo interrompeu meus tormentos, que deram lugar as várias piadas sobre os mortos reviverem e saírem da sepultura. Piadas também sobre a visita dos familiares aos túmulos e velórios, além de conversas sobre relacionamentos, cheiro das flores, sensação de tempo, viagens, paisagens, problemas familiares, sociais e afins. O bem-te-vi na árvore parecia participar da conversa, mas quando o céu se abriu, o sol e o calor nos convidaram a deixar o pássaro e o cemitério.

 

Uma vista das sepulturas

Uma vista das sepulturas

 

– Olha o guardinha lá – Daiane apontou, no caminho de volta, para a silhueta parada ao fundo de uma rua que parecia não ter fim.

– Achei que era a morte – respondi. Comecei a ter um estranhamento com o cemitério, aquelas tantas fotos de mortos, aqueles tantos “templos”, e fui interrompida pela conversa de quatro coveiros que viraram a ruela atrás de nós. Estavam todos com enxadas, deduzi que cavavam uma cova. Sem nenhum material de segurança, alguns sem camisas, conversavam sobre o almoço.

– Como deve ser uma greve de coveiros? – Eu sabia que Daiane não saberia responder essa pergunta. Fiquei pensando sobre o caos que se instauraria caso uma greve dessas ocorresse. Sabia que já havia ocorrido em Manaus, Rio de Janeiro e, mais próximo a Belo Horizonte, Ribeirão das Neves. Pensei também que nunca vi uma coveira. Perguntei e Daiane também nunca viu. E se houvesse uma greve geral? O que os ricaços fariam sem funcionários, marmoraria e coveiros?

Saímos uma hora depois de entrar. Antes de pegar o ônibus de volta, resolvemos ver como eram os velórios. Olhamos da porta, tinham duas salas ocupadas com um caixão e pouquíssimas pessoas ao redor. Brinquei que ficaria triste se meu velório fosse assim e Daiane respondeu:

nem aí pra você. Eu já disse, não vou a velório nunca na minha vida. Se eu morrer antes de você, não deixe que me coloquem em uma caixa numa sala para as pessoas passarem a mão em mim – diferentemente de mamãe que insiste em dizer que quer ser velada por pelo menos um dia e uma noite.

Subimos para o ônibus e o cemitério voltou a ser somente a paisagem de vários túmulos alinhados.