História recente dos jogos é marcada por separação de torcidas rivais para “diminuir a violência” nos estádios
por Laura Dolabella e Duda Sperandio*
A ideia de torcida única nos estádios em clássicos divide opiniões entre torcedores de times de futebol no Brasil. Quem é a favor, defende que é uma forma de proteger os torcedores comuns da violência promovida por brigas entre torcidas organizadas rivais. Quem é contra, argumenta que a medida não soluciona o problema da violência e prejudica a experiência de ir ao estádio e curtir a rivalidade através dos cantos das torcidas. Em Belo Horizonte, esse modo de ocupação dos estádios voltou a ser adotado nos clássicos entre Atlético e Cruzeiro em fevereiro de 2024, na Arena MRV, após quase nove anos.
O primeiro jogo em que foi imposta a torcida única por motivos de briga entre as torcidas no Brasil foi em 2016 – um clássico entre Corinthians e Palmeiras, no Estádio Pacaembu, em São Paulo. A justificativa utilizada para a adesão da medida foi a morte de um idoso de 60 anos que caminhava perto do estádio antes de um dos jogos anteriores entre as equipes. Ele foi baleado durante briga de torcidas organizadas que acontecia na região.
Já em 2024, em Belo Horizonte, a decisão foi tomada por escolha dos clubes Cruzeiro e Atlético – algo inusitado, já que, normalmente, o formato é adotado após ordem/recomendação da polícia. Foi assim entre 2010 e 2015, quando a pedido do Ministério Público, a mudança aconteceu após o Mineirão ser fechado para obras da Copa de 2014, segundo o órgão público, para garantir a segurança dos torcedores.
O atual acordo entre as diretorias atleticana e cruzeirense, após a inauguração da Arena MRV, o estádio do Atlético, em abril de 2023, estabelece apenas torcida do time mandante nos clássicos até o fim de 2025.
Clássicos no formato de torcida única, no entanto, vão na contramão da tradição. De 1965, ano em que o Mineirão foi fundado, até 2010, quando o estádio foi fechado para reformas visando a Copa do Mundo, os torcedores de Galo e Raposa se acostumaram com a arquibancada do estádio dividida “meio a meio” – uma metade (a do lado da lagoa) lotada de atleticanos, a outra (do lado da cidade) lotada de cruzeirenses.
História dos clássicos mineiros
Há muitos anos, o mais importante clássico do futebol mineiro é disputado entre Atlético e Cruzeiro. Mas nem sempre foi assim. Na primeira metade do século XX, a maior rivalidade no estado era entre Galo e Coelho.
Na época, o América era considerado o maior clube de Belo Horizonte e de Minas Gerais. O time alviverde chegou a conquistar o decacampeonato consecutivo do Campeonato Mineiro, de 1916 a 1925.
O Atlético, também com poucos anos de existência, havia conquistado a Taça Bueno Brandão em 1914 e o Campeonato Mineiro de 1915. O alvinegro estava em fase de crescimento e buscava tomar do Coelho o posto de time dominante no estado.
O Cruzeiro, na época conhecido como Palestra Itália, foi o último dos três a ser fundado, em 1921. Mas a rivalidade entre o time celeste e o Galo só foi se iniciar, de fato, na década de 1930.
Depois de vencer o Mineiro de 1925, o América decaiu e passou 23 anos sem vencer o título da competição. Nesse período, a Raposa cresceu, conquistou melhores resultados e, gradualmente, tomou o lugar do Coelho na rivalidade com o Atlético. Entre 1925 e 1948 (ano que o América voltou a ser campeão estadual), o Galo levantou o troféu do Mineiro 11 vezes e o Cruzeiro, sete.
A primeira final disputada entre as equipes foi em 1931. A partida de ida foi vencida pelo Atlético, e a de volta não foi jogada – o Palestra desistiu de entrar em campo porque queria um árbitro de fora, reclamando de fortes agressões aos jogadores da equipe.
A inauguração do Mineirão intensificou a rivalidade entre os dois clubes, que passaram a dividir o estádio. O primeiro clássico disputado no local, em outubro de 1965, já dava indícios que as disputas tornaram-se ainda mais quentes: a partida teve que ser encerrada antes do esperado após jogadores do Galo, que perdia por 1 a 0, tentarem agredir o árbitro, que havia marcado pênalti para o Palestra.
Nos anos seguintes, os clássicos com torcida dividida tornaram-se tradição no Mineirão e consolidaram o estádio como o principal cenário para os embates entre Atlético e Cruzeiro. Mas, em 2023, a rivalidade entre os times ganhou novo palco: a Arena MRV, novo estádio do Galo, que tem mudado as dinâmicas do confronto, já que fica a 10 km de distância do Gigante da Pampulha e altera a territorialidade das torcidas no espaço urbano de Belo Horizonte.
Torcida única
A medida que impõe a torcida única nos estádios começou a ser implantada em Minas Gerais após o começo das obras no Mineirão, em 2010, para a Copa do Mundo no Brasil, em 2014. A primeira vez que Galo e Raposa entraram em campo com torcida única foi nesse mesmo ano, na Arena do Jacaré, em Sete Lagoas (MG), com mando de campo alvinegro. Após as reformas, essa medida foi tomada nos anos de 2012 e 2013, mas desta vez em Belo Horizonte, devido às brigas de torcidas organizadas que aconteceram na época.
A porcentagem da divisão de torcidas ao longo dos anos foi mudando em todo o Brasil até chegar no ponto de 90% e 10% que rege até hoje o futebol brasileiro. Essa decisão foi aderida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol, a Conmebol.
Já em 2023, a decisão foi mais repercutida. O primeiro clássico na Arena MRV, em outubro, contou com 10% da torcida celeste, que foi responsável pela depreciação da parte destinada à torcida visitante no estádio do Atlético, deixando um prejuízo de mais de 100 mil reais para o time mandante. Por outro lado, o clube alvinegro não recebeu o rival com boas ações. Torcedores do Cruzeiro denunciaram uma série de irregularidades oferecidas para a torcida celeste, como: ausência de portas no banheiro feminino e papel higiênico lacrado (sem poder ser utilizado). Como justificativa, a organização alegou a possibilidade de vandalismo por parte dos cruzeirenses.
A decisão de torcida única é ruim, perde a essência do futebol, da rivalidade. O problema da violência não se resolve cerceando o direito da pessoa de vir ao estádio porque a confusão acontece geralmente fora e não tem uma iniciativa para poder coibir isso de maneira correta, com punições individuais, e sim com punições coletivas que a gente já viu que não adianta nada. (Thiago, atleticano, 31 anos)
Com a decisão de torcida única nos clássicos, algumas mulheres se sentem mais seguras:
É preciso superar esses traumas de briga de torcida organizada, porque futebol é sobre competitividade e rivalidade sem que as pessoas tenham que morrer por isso. E existe uma coisa cultural sobre a forma que a torcida canta, e isso é uma perda muito grande com a torcida única. Como mulher, sabemos que o estádio não é um lugar feito pra gente, então tudo que diminui a chance de violência acaba que vira vantajoso pra gente. (Ana Lupiano, cruzeirense, 20 anos)
Outra torcedora também não concordou com a decisão de torcida única e explica o motivo:
Todo mundo sabe que não é só no estádio que tem briga. Dependendo da região da cidade que você for em dia de jogo, você não pode usar a camisa do seu time por ser perigoso, e todo mundo sabe disso. Se eles sabem que isso acontece, eles têm que melhorar a segurança, não acabar com a torcida única. Briga acontece em todo lugar. (Carolina Ramos, cruzeirense, 20 anos)
Frente à decisão, os torcedores estão sendo obrigados a ocupar outros espaços da cidade em dia de jogo. Bares, por toda a cidade, são as alternativas para os torcedores que não frequentam os estádios em dias de clássico. Os que preferem não sair de casa devido à, segundo os entrevistados, possíveis confusões nas ruas, se reúnem em casas de amigos para assistirem o jogo. Isso tanto por parte dos cruzeirenses como por parte dos atleticanos.
Quando o clássico não é na Arena MRV eu acabo indo para casa de amigo ou algum barzinho, o que seja. Mas tem que estar com os mano, os amigos. (Matheus Murici, atleticano, 21 anos)
Por conta dessa questão da segurança entre torcidas estar cada vez mais complicada, uma hostilizando a outra, o que já afasta o torcedor, acaba que assisto os jogos em casa, porque você junta o útil ao agradável. Já está em casa mesmo, gasta menos grana e se ganhar ganhou, se perder perdeu, sem muita confusão. Acho muito legal assistir em bar também, mas aí já é outro teste de convivência, porque por mais que tenham bares com mais atleticano ou mais cruzeirense é difícil ter essa totalidade, então fica um teste de convivência nesses ambientes também. (Terence Machado, cruzeirense, 53 anos)
O Bar do Salomão é considerado um reduto histórico dos atleticanos em dias de jogo, mas fica no bairro Serra, espacialmente distante do Mineirão, Independência e Arena MRV. O dono não reclama de torcida única, que aumenta o número de fregueses quando o mando de campo.
No Mineirão tem que ser torcida Atlético e Cruzeiro (dividida), esse negócio de torcida única não existe. O gostoso é você poder ver o adversário, ver a torcida cheia. Porque a gente ficava empurrando a torcida pra cá e empurrava a outra para lá. Agora, não existe isso mais. Aí não tem graça.” (Salomão – proprietário do bar)
Nova era do futebol mineiro
A cultura brasileira de estádios de futebol vai além da presença de torcedores que comparecem para assistir ao time do coração ou de organizadores que estruturam o evento. Geralmente, dia de jogo é também dia de trabalho para cambistas, vendedores e comerciantes.
O Gigante da Pampulha, por exemplo, conta com os autônomos que vendem camisas, bonés, faixas, feijão tropeiro – prato típico de Minas e comum nos estádios – bebidas, churrasco, e outros produtos que contornam o local da partida. Com a construção da Arena MRV, inaugurada no ano passado, em 2023, a dinâmica de Belo Horizonte em dia de jogo mudou.
Os atleticanos que já estavam acostumados a frequentar o Mineirão, tiveram que mudar a rota e os planejamentos de locomoção, estacionamento e alimentação. Isso porque o entorno do estádio do bairro Califórnia ainda não foi totalmente ocupado por bares, barraquinhas e “podrões” como no Mineirão. Além disso, o preço do estacionamento para quem arrisca se locomover de carro é significativamente mais caro se comparado ao tradicional estádio.
No entorno do estádio do Galo estão sendo construídos bares e alguns galpões que são improvisados para que os torcedores ocupem e possam comer e beber antes dos jogos. Já em relação aos ambulantes do entorno, a adesão dos consumidores ainda é pouca e os vendedores de camisas reclamam da diminuição de vendas após a construção do estádio e mudança no perfil dos torcedores do Atlético nos jogos.
Tem quase 40 anos que eu vendo camisa em torno do estádio. Quando havia Atlético e Cruzeiro no Mineirão, você tinha que escolher o lado do estádio, camisa de qual clube iria vender. Depois da torcida única as vendas diminuíram muito mesmo. Na Arena, vendo ainda menos que no Mineirão. (Eloisa, vendedora de camisa, 60 anos)
Uma outra reclamação vem dos torcedores atleticanos sobre a elitização dos preços da Arena MRV. Segundo a maioria dos entrevistados, após a construção da Arena, não está sendo possível manter a frequência de jogos que eles tinham no Mineirão por conta dos altos preços – tanto dos ingressos quanto dos consumo dentro do estádio.
Já os torcedores do Cruzeiro encaram a medida da torcida única como algo negativo no que diz respeito à rivalidade. Segundo os entrevistados, a final do Campeonato Mineiro deste ano não teve o mesmo impacto que tinha na época da torcida meio a meio e, apesar de se sentirem mais seguros com o formato de torcida única, a “briga no grito” das torcidas fez falta no último clássico.
Acho uma babaquice a decisão de torcida única porque atende só os desejos das diretorias para os dois times lucrarem com a venda de mais ingressos. Isso não enriquece o espetáculo, só enriquece e empobrece o futebol. Também falta civilidade de muitos torcedores, que em ambos os estádios arranjam confusão nos entornos. Então, hoje em dia, quando o jogo é na Arena MRV, eu assisto em casa. (Matheus Hermógenes, cruzeirense, 30 anos)
A decisão, dos clubes e por autoridades judiciárias, por torcida única nos estádios em dia de clássico Atlético x Cruzeiro impacta ambas as torcidas mineiras. A saudade da rivalidade alvinegra e celeste “cara a cara” é um consenso. Por outro lado, a justificativa da falta de segurança é o principal motivo para separar os torcedores rivais. A dúvida é se os ânimos se acalmam quando o estádio só recebe a torcida de um clube da partida.
O futebol extrapola o espaço físico do território do estádio. Os confrontos não estão presentes apenas ali, mas também em outros espaços da cidade. Os embates não acontecem somente pela disputa das partidas dentro do gramado, mas principalmente entre torcidas organizadas rivais ou torcedores com camisas do time de preferência que, inclusive, ocupam o transporte público, os bares, as vias públicas e outros espaços de Belo Horizonte. A ideia da torcida única como uma solução para “diminuir a violência” tensiona o futebol que deve ser pensado como prática cultural, social e política.
A Minas Arena finalizou justificando os motivos pelos quais implementou todas as mudanças: “A administração do Mineirão justifica as mudanças implementadas com base no compromisso de oferecer a melhor experiência possível aos torcedores. A modernização do estádio foi essencial para garantir conforto, segurança e acessibilidade a todos os visitantes, além de adaptar a arena às exigências internacionais para a realização de grandes eventos esportivos e culturais.”. Ainda em nota, completou dizendo que: “As melhorias estruturais e as novas políticas de segurança foram projetadas para preservar a essência e a paixão do futebol mineiro, ao mesmo tempo em que proporcionam um ambiente moderno e acolhedor para todos os públicos. Estamos orgulhosos de dizer que o novo Mineirão é um estádio para todos, onde tradição e inovação caminham lado a lado.”.
A afirmação da Minas Arena sobre a modernização do Mineirão não pode ignorar os impactos controversos das reformas pós-Copa de 2014. Embora tenha havido melhorias na infraestrutura, como conforto e acessibilidade, a realidade é que muitos estádios brasileiros passaram por um processo que, na prática, acabou por elitizar o acesso, muito devido aos altos preços dos ingressos.
Além disso, os problemas de segurança interna persistem. A tentativa de alguns torcedores em trocar de setor, como ocorrido em agosto de 2023, revela deficiências na gestão de ingressos e na fiscalização dentro dos estádios. A violência entre torcedores rivais também continua sendo uma preocupação constante, refletindo falhas na segurança e na gestão de eventos esportivos, que culminou na decisão de Atlético e Cruzeiro em optarem por torcida única nos estádios nos clássicos até o final de 2025.
*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismos e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira Souza, sob supervisão de Phellipy Jácome