De uma pessoa da Av São João com a Ipiranga, para todas aquelas que são BH.

Por Cauan Carvalho

 

Praça Sete (Arquivo IBGE)
Praça sete (Arquivo IBGE)

A dicotomia centro e periferia em BH é exercida de forma singular, pois o centro urbano possui sua delimitação, a avenida do Contorno, enquanto seu entorno é uma febre de subculturas.

Em 1897, Belo Horizonte tornou-se a sucessora de Ouro Preto na missão de ser capital de Minas Gerais, algo que ocorreu não só após problemas logísticos para manter a capital em Ouro Preto, mas também por causa de uma nova visão sociocultural, de caráter republicano. Buscava-se por mudanças que demonstrassem um rompimento com o regime monárquico, e sua correlação estreita com a igreja católica, afinal, o novo lema era e ainda é Ordem e Progresso.

Para isso, foi planejada a criação da “Cidade de Minas”, que chamamos hoje de Belo Horizonte. Tudo pensado para demonstrar essa metamorfose que se passava no país: não éramos mais uma simples Colônia, constituíamos agora uma República.

A melhor localização e as pessoas responsáveis pelo projeto da nova capital mineira foram,  então, definidos e os planos deveriam cumprir os pilares de ordem, progresso e higiene. Toda essa discussão foi encaminhada por políticos durante os mandatos dos respectivos presidentes de estado  (cargo equivalente aos governadores atualmente) Antônio Augusto de Lima e Affonso Augusto Moreira Penna. Nomes que são familiares para os belo-horizontinos.

Após muitos estudos e discussões, a região escolhida foi o Arraial do Curral Del Rey.  E o responsável para liderar essa missão, o engenheiro Aarão Reis, estruturou o plano, pensando a cidade com ruas largas, cheias de árvores bem posicionadas, todas organizadas em ângulos retos, e com os quarteirões divididos de forma igual. As fantásticas avenidas possuíam  espaço suficiente para que a cidade crescesse em até 200 mil habitantes no futuro. O projeto final mostrava uma delimitação bem conhecida: a atual Avenida do Contorno. 

Planta Geral da Cidade de Minas (arquivo publico mineiro)
Planta geral da Cidade de Minas (Acervo público mineiro)

Além da contorno

Muito se questiona se a Avenida do Contorno foi criada com a função de conexão ou barreira, contudo, para os pesquisadores Bruno Viveiro e Alessandro Borsagli, a avenida servia simplesmente como uma delimitação.

Bruno Viveiro, que pesquisa a história de Belo Horizonte, conta que: 

Avenida do Contorno ela é uma risca, um limite entre a cidade oficial planejada e construída em quatro anos e a cidade de cada um por si e Deus contra todos.” 

Já Alessandro Borsagli, pesquisador da geografia histórica de Minas Gerais e  autor do site Curral Del Rey, defende que a Avenida do Contorno segue ideais positivistas, pautados na diferença entre as zonas.

Entre a zona urbana, suburbana e a região de sítios, já que a suburbana nos primeiros anos da capital acabou se tornando as colônias agrícolas”, explica.

A delimitação imposta por Aarão Reis dividiu BH em duas, seu miolo e seu contingente. Dos 331,354 km² que constam no território do município, apenas  meros 31,85 km² estão delimitados pela Contorno. O que faz com que bairros como Venda Nova e Barreiro, que se localizam nos extremos da capital, possuam uma visão território-cultural diferente, até porque, já existiam antes mesmo da criação de BH,  como é apontado por Bruno Viveiro e Alessandro Borsagli.

Então, a identidade de Venda Nova diz respeito a um lugar que tem mais de trezentos anos de história. Ela se enxerga como cidade. No caso de Venda Nova e do Barreiro, são regionais da cidade que têm identidades próprias porque têm um passado próprio, que vai além da história de Belo Horizonte”, conta Bruno Viveiro 

Quando Belo Horizonte foi criada, Venda Nova já existia. A região que, segundo Alessandro Borsagli, possui mais de 300 anos, recebeu pessoas do Curral del Rey. Já o Barreiro foi criado como uma colônia agrícola, na época da construção da capital. “Tudo isso, acabou criando, depois de um tempo, subcentralidades, independente do centro de Belo Horizonte.” explica Alessandro Borsagli.

O centro não faz jus à diversidade presente por toda BH, advinda das diversas pessoas migrantes e imigrantes que a construíram e tiveram sua vida cruzada com a cidade, construindo subúrbios para sua vivência, produzindo cultura, conhecimento. Essa colaboração na história da cidade, não possui reconhecimento, assim como o Arraial do Curral Del Rey, que não teve sua história preservada nem reconhecida.  

Arraial Curral Del Rey

Arraial Curral del Rey (Arquivo IBGE)

Na região escolhida para a nova capital já existia o Arraial do Curral Del Rey,  que teve sua população desabrigada para as obras, ocasionando um apagamento daquele povoado, e sua cultura, uma das primeiras marcas da segregação espaço-social de BH. Ao expulsar os nativos, destinaram suas casas para estrangeiros (tanto brasileiros de outras regiões, como construtores de outras nacionalidades) envolvidos nas obras da nova capital, algo que já estava previsto no plano de Aarão. Existem relatos que contam que uma parcela se tornou operária na obra da capital, em busca de sustento para enfrentar a mudança abrupta.

A maioria não tinha título de propriedade das terras, então nem sequer indenizados eles foram. A expulsão foi violenta E eles tiveram literalmente que desocupar as casas e ir embora sem destino pra Venda Nova, Barreiro, Contagem, Santa Luzia, Betim, Vespasiano, Sete Lagoas onde eles puderam encontrar um reduto, eles encontraram”, explica  Bruno Viveiro

A população do Curral del Rey, boa parte foi expulsa, foi expulsa para povoados próximos, porque o valor da desapropriação era muito baixo. Teve gente que morava fora da freguesia ou em outros pontos da freguesia do Curral del Rey e não foram nem buscar o dinheiro com a comissão da desapropriação porque não valia a pena. Era de fato muito barato o valor que o Estado  pagou, de indenização. Então, boa parte dessa população foi morar nos povoados e arraiais fora do perímetro de onde se construiria a nova capital”, completa Alessandro Borsagli.

Assim, ao enfrentar esse novo modelo de vida, a população do arraial formou comunidades ao redor da edificação de BH. Já que a indenização não era suficiente para habitar a cidade, se iniciava um processo de remoção dessa população para áreas mais longes, buscando sua saída da zona urbana, desenvolvendo bairros precários que, com o crescimento intenso da cidade, foram aumentando o número de moradores e tornando sua remoção mais difícil. Um exemplo desse fenômeno seria a Pedreira Prado Lopes, que resistiu à tentativa de remoção em 1940 com a criação da Avenida Pedro Lessa, porém, voltou a ser reocupada em 1946, onde se mantém atualmente. Esse processo de marginalização, que empurrou parte da população para as margens do território, criou uma segregação profunda, já que os planos de saneamento e de vias não seguiam os padrões da região central.  

Esse processo  foi um dos fatores principais para a formatação socioestrutural contemporânea de Belo Horizonte. Segundo Alessandro, os loteamentos excessivos entre 1925 e 1934 levaram à expansão urbana. Contudo, esse movimento se deu de forma desconexa, criando vazios urbanos que possuíam precariedade em quesitos como água, transporte e emprego. Algo que era potencializado pela separação entre área urbana, suburbana e rural que constava no plano para a capital.

Com isso, os habitantes desabrigados construíram comunidades nas áreas menos disputadas, onde, assim, não corriam riscos de serem expulsos outra vez. Esse processo formou boa parte dos bairros que mais tarde seriam incorporados à BH, assim como as Cidades da região Metropolitana, como Contagem e Sabará, que até hoje possuem  grande fração de sua população trabalhando em Belo Horizonte. 

Lagoa da Pampulha (Arquivo IBGE)

Seu Crescimento e surgimento de bairros

Essa série de acontecimentos não previstos culminaram em uma descentralização populacional por todo o território, criando novos bairros, com necessidades e a dificuldade de integração dessas novas localidades com o centro. 

Gráfico populacional por determinadas décadas (Cauan Carvalho)

Na linha do tempo acima podemos ver o surgimento de 43 bairros de Belo Horizonte, de seus 487 bairros atuais. É interessante notar que os quatro primeiros, que estavam prontos em sua inauguração, constavam exclusivamente em sua zona urbana, e ao longo do tempo novos foram surgindo. Bairros de operários foram criados ou aumentados pelas reformas industriais que a cidade passou e também pelos fluxos de êxodos rurais, principalmente entre as décadas de 1940 e 1970. Entre eles estão  Concórdia, Prado, Gutierrez, Renascença, Grajaú, Morro das Pedras, Padre Eustáquio, São Cristóvão, Pedreira Prado Lopes (PPL).

Simultaneamente à sua construção, bairros da futura cidade já ganhavam forma. Como o Lagoinha, que serviu de habitação para imigrantes envolvidos na obra da capital. Já o Barreiro, de origem agrária, era formado por colonos agrícolas, em sua maioria imigrantes. Venda Nova, que constituía rota de tropeiros, com a expansão causada pela construção de BH veio a criar um novo ponto de comércio, dando nome a região.

Posteriormente, a criação de determinados bairros demonstram uma ligação com o processo de exclusão da população  mais pobre, que habitava moradias conhecidas como “cafuas” na região urbana e que, gradativamente, após diversas remoções, foram se assentando na zona suburbana. Sendo expulsas do interior da contorno, por processos políticos com vieses elitistas, construíram bairros distantes do centro urbano, para a população mais pobre, como Primeiro de Maio, Providência, Heliópolis, Guarani, São Bernardo. Também é importante ressaltar que outro fator para essas remoções era a habitação em áreas de risco. 

Assim, esse processo que teve início em meados de 1902, ocorreu, portanto, sem um planejamento efetivo, sem conseguir acompanhar a velocidade com que as comunidades iam se formando, e com a força do êxodo rural potencializado pelo crescimento econômico da capital em meados de 1930. A ampliação populacional intensa e a carência de ferramentas urbanas presentes nessas comunidades para sua regulamentação fez com que o Poder Público Municipal buscasse em 1955 um planejamento social sobre a questão. Com uma das diretrizes principais sendo a  realocação em bairros já estruturados, essa iniciativa não foi tão aplicada e o plano anterior voltou a ser reutilizado. Um exemplo desse antigo sistema de remoção é a Favela da Barroca, localizada no bairro Santo Agostinho, que, após a expulsão de seus moradores na década de 1940, fez com que eles passassem a ocupar uma área da encosta do Córrego do Leitão, na Cidade Jardim, dando origem ao Morro do Querosene, já na Zona Suburbana, mostrando, mais uma vez, a tendência à marginalização que empurrava uma parcela da população para as margens do município.

O crescimento populacional impressionante de BH, que saiu de um contingente de 300.000 para mais de 1.200.000 entre as décadas de 1940 e 1970, foi um grande desafio para o desenvolvimento na capital, já desprovida do CCNC, sem nenhum órgão regulador desse crescimento. Resultando na diversificação da arquitetura por todo território. Com a verticalização, arranha-céus se tornaram o novo horizonte para o centro. Já em outras áreas, a diversidade se fez presente com outros modelos arquitetônicos, em especial na região da Pampulha, que sob os ideais de Juscelino Kubitschek, foi transformada em uma área de lazer de alto padrão, com direito ao renomado arquiteto Oscar Niemeyer assinando construções na área.

Viaduto Santa Tereza (Arquivo IBGE)

As falhas no plano

Aarão Reis, o engenheiro líder da Comissão Construtora da Nova Capital  (CCNC), dividiu a cidade em três áreas: Urbana, Suburbana e Rural, em que no interior da Avenida do Contorno se encontraria a zona urbana, em seu exterior, a zona suburbana (com ruas mais estreitas e um mapeamento mais irregular das vias), e por fim a zona rural, destinada a áreas de cultivo.

Bruno explica  que essas separações possuem um viés positivista, uma noção de mundo estático, em que não ocorreriam reorganizações dentro desse modelo. Uma visão completamente errônea, já que essas divisões não são correspondidas atualmente. Por exemplo, bairros como o Prado e o Barro Preto que já foram considerados subúrbios e, atualmente, são áreas nobres, mostram essa mudança.

“E por mais que ela fosse construída e pensada de maneira positivista e excludente a população tem capacidade de reorganizar a cidade. Tudo que é feito pela mão humana é capaz de melhorar ou piorar. Nada fica como está durante cento e vinte e tantos anos e a cidade é fruto dessa mão humana. A mesma cidade que exclui é a cidade que abriga o hip hop no viaduto de Santa Tereza que abrigou clube da esquina na esquina da rua Divinópolis e Paraisópolis, as bandas pop dos anos noventa como Pato Fu, Jota Quest e Skank. A cultura de Belo Horizonte se dá contra essa política da exclusão, ela é fruto desse encontro e do diálogo entre pessoas de várias origens do estado de Minas Gerais. Então Belo Horizonte por outro lado, ela cumpre um papel de criar uma cultura nova, moderna que se reorganiza de tempos em tempos como uma forma de lançar um olhar sobre si mesma”, conta Bruno Viveiro.

Ao ouvir a frase  “BH é quem? BH é nóis!”, é possível questionar: nós quem? Mas ao compreender o processo de formação da cidade ao longo de mais de cem anos, é possível perceber que o povo é a cidade e vice-versa, pois ambos foram crescendo em união, se entrelaçando, se expandindo não só territorialmente, mas culturalmente. BH abriga tantas culturas que se torna uma colcha de retalhos, uma disrupção com o plano proposto que pregava uma exclusão através de suas delimitações e promovia uma cidade desconectada.

*reportagem produzida na disciplina “Laboratório de produção de  reportagem”, sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos