Saúde mental foi apontada como uma das principais razões para o abandono da primeira graduação pelos entrevistados
Por João Alves
Na língua portuguesa, “jornada” é uma palavra que se encaixa em muitas situações. Do trajeto diário percorrido por uma pessoa qualquer até a história de uma vida inteira, ou mesmo a uma aventura espacial, como na série de ficção “Jornada nas Estrelas”. Embora diferentes, esses significados pressupõem o fim como o “grande momento” – uma espécie de recompensa por trilhar um caminho com firme certeza, sem hesitação. A jornada do herói acaba (gloriosamente).
Mas e quanto aos desvios? De certo, esta pessoa qualquer, em seu trajeto diário, percebeu que a rua X, embora não sendo a mais rápida, era mais bonita que a rua Y; e mesmo o Capitão Kirk mudava a rota da nave, vez ou outra, pelo bem da missão.
De volta à terra, mais especificamente à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a jornada, desta vez acadêmica, não é diferente. Embora haja quem saia do Ensino Médio com plena convicção da profissão que quer exercer pelo resto da vida, há quem se sinta em um labirinto de possibilidades. E mesmo os vocacionados, futuramente, podem optar por desvios e terminar por trocar de curso acadêmico. Ao longo desta reportagem, veremos que muitos universitários, por razões variadas, decidem explorar outras áreas ou até abandonar uma graduação a fim de sondar novos terrenos.
Escolha profissional e saúde mental
Diogo Oliveira, 37 anos, atualmente está em sua terceira graduação, na qual cursa Cinema de Animação e Artes Digitais na Escola de Belas Artes (EBA). Antes disso, iniciou o curso de Letras na Faculdade de Letras (Fale) e de Arquivologia na Escola de Ciências da Informação (ECI), nesta ordem. Diogo conta que escolheu o primeiro curso por sua afinidade com a Língua Portuguesa e por seu desejo de escrever ficção literária. Porém, o seu estado de saúde mental, na época, o impediu de continuar.
“Saí jubilado da Faculdade de Letras. Tentei recurso, mas eu tinha um sério problema de saúde. Não consegui, durante o curso, me engajar suficientemente, acredito que isso se deu muito por conta da minha saúde mental e por não ter encontrado num primeiro momento o que eu esperava ao fazer uma faculdade. (…) A despedida da faculdade foi bem difícil porque era um sonho entrar na UFMG.”, comenta o estudante de Cinema de Animação.
Após deixar o curso de Letras, Diogo deu início ao curso de Arquivologia. Em suas palavras, “porque o curso tinha uma relação com a área de Biblioteconomia e o vestibular era pouco concorrido”, o que lhe permitiu voltar à UFMG. Entretanto, pouco tempo depois, o jovem decidiu enfrentar outro desafio: estudar Cinema e escrever roteiros cinematográficos.
A história de Laryssa Gabrielly, 22 anos, é semelhante a de Diogo em muitos aspectos, entre eles, a relação entre a vivência acadêmica e saúde mental; e a escolha da graduação na qual estão matriculados atualmente, Cinema de Animação e Artes Digitais. A jovem conta que a escolha de seu curso anterior, Direito na Faculdade de Direito e Ciências do Estado (FDCE), foi determinada pela influência de seus pais, além do receio de não se estabelecer em uma área pouco convencional.
“Eu comecei fazendo Direito e foi uma escolha baseada no que a minha família queria para mim. Eu tinha uma sensação de dívida com os meus pais e seguir a carreira que eles escolheram para mim seria uma forma de pagar essa dívida. Eu também tinha medo de não conseguir me estabelecer na área que eu realmente almejava, por não ser um caminho tradicional”, conta Laryssa.
O peso da escolha foi sentido logo nos primeiros meses. Além de não gostar do curso, a estudante não se via atuando na área. Com isso, sentimentos como desconforto, ansiedade e não pertencimento foram se agravando e tomaram proporções que ameaçavam a saúde mental da estudante: “Tive um caso de depressão muito forte que estava em grande parte ligado a escolha da faculdade e carreira. Com isso, percebi que não valeria a pena permanecer naquele caminho apenas para agradar meus pais”, relata.
“Que curso eu vou fazer na faculdade?”
Thais Moreira, 26 anos, natural de Eunápolis (BA), se viu diante de inúmeras opções de carreira antes de se mudar para Belo Horizonte como universitária: “Que curso eu vou fazer na faculdade? Eu escolhi como primeira opção aquilo que as pessoas falavam para mim. Foi medicina por muito tempo, depois mudei para Engenharia…E sempre tive essa outra opção: ‘ah, depois eu faço Psicologia’. E aí eu comecei a perceber que eu sempre quis fazer Psicologia”, comenta a baiana.
Já em terras mineiras, sua primeira impressão da universidade – e da vida universitária como um todo -, foi bastante diferente daquela que ansiava. Thaís explica que não conseguiu fazer amizades no primeiro semestre e que se sentia bastante sozinha na capital. Este cenário nada ideal contribuiu para que a depressão que a estudante de psicologia já sofria se agravasse, gerando consequências em seu rendimento acadêmico. O ponto mais crítico desta condição foi durante a pandemia de Covid-19, na qual entrou em vigência o Ensino Remoto Emergencial (ERE).
“Chegou um ponto na pandemia que eu odiava as aulas online e eu passava muito mal psicologicamente. Porque a gente não tem atividade prática. Me senti muito angustiada. Aí, eu resolvi assumir uma questão minha que desde criança eu queria ser cantora, mas nunca tive coragem de assumir isso. E eu estava sofrendo tanto, que resolvi parar de deixar isso debaixo do tapete. Nesse meio tempo, a solução que eu encontrei foi procurar um curso em que eu poderia trabalhar a criatividade. Foi aí que eu escolhi Publicidade “, afirma Thaís.
“Cada um tem sua jornada”
Após abandonar Arquivologia, Diogo ingressou em seu curso atual: “Fiquei bem feliz de passar no vestibular do curso de Cinema de Animação e Artes Digitais, apesar de não ter tido tanto apoio familiar, pois estava indo para o meu terceiro curso ao invés de ter terminado algum anterior”. O processo de sucessivas mudanças de curso chegou a abalar o universitário, especialmente quando ele se colocava em comparação com os calouros mais jovens. Entretanto, hoje ele se considera “bem com relação a isso”.
“Passei por sensações de fracasso e a questão da idade me pegou muito também, por muito tempo. Ver os seus amigos de curso entrando com 18 anos, e você ali tentando se formar, depois de tanto tempo… é bem difícil. Mas hoje estou muito bem em relação a isso. Sei que formando essa conta se ´iguala’. E apesar de existir uma pressão externa, no fundo é lidar com a pressão interior. Entender o porquê da demora. Respeitar o próprio tempo. Cada um tem sua jornada”, enfatiza Diogo.
Laryssa comenta que a opção pelo curso de Cinema de Animação e Artes Digitais se deu após conversas com pessoas do ramo e uma orientação profissional para que pudesse “escolher com mais consciência”.
Perguntada sobre sua saúde mental após a saída do curso de Direito, a estudante relata: “Melhorou muito. Além de ter buscado tratamento psicológico e psiquiátrico para a depressão, eu finalmente gostava do que estava estudando e conseguia me ver atuando na área no futuro. Entretanto, ainda tive que lidar com a culpa de sentir que estava decepcionando a minha família. O processo para superar isso foi longo, mas finalmente consegui entender que essa carga emocional não era minha para lidar”. Hoje, no 7° período, a estudante se sente satisfeita com a escolha e já busca uma especialização após a formatura.
“Não me arrependo da escolha”
Após trancar um período do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), Thaís optou pelo processo de Reopção de Curso. Após a aprovação pelo Colegiado no curso de Publicidade e Propaganda, da mesma Unidade Acadêmica, a estudante relatou ter sentido medo de uma experiência repetida – no caso, de que ela experimentasse a mesma solidão de quando iniciou o outro curso.
“No começo fiquei com medo de ter uma experiência repetida – de não fazer amigos e de me arrepender da escolha. Mas, na verdade, foi muito bom. Minha vida realmente melhorou muito. Realmente me senti parte daquilo ali, e eu gostava muito das matérias, especialmente as que pediam criatividade. Senti que tinha feito a escolha certa. Fiquei bem satisfeita e orgulhosa da decisão”, enfatiza Thaís.
Perguntada sobre uma possível sensação de perda de tempo após abandonar o curso de Psicologia no 6° período, a estudante de Publicidade compartilha da mesma sensação de Diogo: a idade parece ser um motivo de frustração, especialmente quando posta em comparação: “Porque eu tenho 26 anos. Eu sou a pessoa mais velha que eu conheço no curso. E quando eu vejo as pessoas da minha idade que já estão em outros lugares, como onde trabalho, eu sou praticamente da mesma idade da minha chefe. Nesses momentos me sinto meio fracassada. Mas acho que quando me formar vou parar de pensar isso”.
“É importante praticar a autocompaixão”
Renata Finotti, psicóloga especializada em orientação profissional e de carreira, repete o tom dos depoimentos acima. Para a especialista, a mudança ou desistência de curso pode gerar sentimento de frustração, já que envolve lidar com a expectativa de si mesmo e de outras pessoas.
“É essencial compreender que essa decisão [de desistir ou mudar de curso] faz parte do processo de autodescoberta e crescimento pessoal. Lidar com as frustrações envolve aceitar que nem sempre as escolhas feitas inicialmente são as melhores para nós, e que é possível aprender com essas experiências”, enfatiza Finotti.
Nesta perspectiva, a psicóloga recomenda buscar apoio emocional e psicológico durante o período de transição. Ela argumenta que buscar um profissional qualificado pode ajudar o estudante a explorar seus sentimentos de frustração, identificar suas necessidades e desenvolver estratégias para lidar com os desafios que surgem nesse processo. Em suas próprias palavras: “É importante praticar a autocompaixão, reconhecendo que mudar de direção é um sinal de coração e crescimento pessoal”.
“A pressão para seguir uma carreira que não está alinhada com os desejos e habilidades individuais pode levar à insatisfação, estresse e até mesmo ao desenvolvimento de problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão. Portanto, é importante que o estudante leve em consideração seus próprios interesses, valores e talentos ao fazer uma escolha profissional”, conclui a especialista.
De acordo com o último “Relatório de análise dos estudantes nas situações de trancamento e evasão dos cursos de graduação presenciais da UFMG”, da Pró-reitoria de Graduação, o número de estudantes com vínculo inativo, seja por desligamento do estudante em acordo com as resoluções internas – o “jubilamento – ou por desistência formal, ficou abaixo dos 10% com relação ao número total de estudantes com matrícula ativa. O período analisado abrange desde o primeiro semestre de 2014 até o segundo semestre de 2021.
Neste intervalo, o menor índice de evasão verificado foi de 3,2% em 2021/1, enquanto o maior foi de 7,8% em 2019/1. A situação relatada de trancamento total da matrícula é análoga à do vínculo inativo, observando o teto de 9,4% – marca alcançada em 2021/2, durante o Ensino Híbrido Emergencial (EHE). Embora o relatório não traga maiores especificações sobre as razões pelas quais os estudantes foram desligados ou se desligaram, é da opinião da reportagem que a saúde mental pode ser um tópico de importância.
A produção entrou em contato com o Departamento de Registro e Controle Acadêmico (DRCA) para o recebimento de estatísticas relacionadas à Reopção de Curso – modalidade destinada ao preenchimento de vagas remanescentes por alunos da UFMG que desejam mudar para outro curso de graduação -, porém até o momento não obteve resposta.
Reaproveitando saberes
Entre altos e baixos, a experiência de mudar de curso, conforme relatada pelos universitários, é uma história de como seguir uma jornada que faça sentido individualmente, ao invés de sucumbir às expectativas externas e pressões pessoais, pode levar ao amadurecimento e autoconhecimento.
As histórias de Diogo, Laryssa e Thaís ilustram que a trajetória acadêmica não é uma linha reta e que cada mudança pode fazer a diferença na saúde mental e no crescimento pessoal – aliás, os entrevistados relataram que o conhecimento adquirido nos cursos anteriores são reaproveitados não só na graduação em que estão matriculados atualmente, mas na vida em sociedade de forma geral. E afinal, não é este um dos objetivos centrais de uma universidade (especialmente de uma universidade pública)?
“Tive muitos estágios durante todos os cursos. Trabalhei com muitas coisas tanto na Letras como na Arquivologia. Sem contar que a experiência de estar por mais tempo na graduação me deixou muito mais organizado e focado. Eu sei exatamente o que preciso fazer. Isso demorou a acontecer por mil questões, mas vejo que, hoje, os estudos tomam grande parte do meu dia e sinto prazer em responder às demandas acadêmicas. Também adquiri habilidades de leitura, de apresentação de trabalhos, aprendi a usar muitos programas de computador que facilitam tanto a vida na universidade como no mercado de trabalho”, conclui Diogo.
Para mais informações sobre a Reopção de Curso na UFMG, acesse o portal do DRCA através do link https://www2.ufmg.br/drca/drca/Home/Graduacao/Reopcao-de-Curso.
Revisão Final: Arthur R. Castro e Giovana Pena – Edição: turma Laboratório de Reportagem