Dossiê: Transporte

Em um ponto de ônibus, observamos discretamente a movimentação, ouvindo histórias e assistindo a chegadas e partidas.

 

É uma tarde de quarta-feira no quarteirão que envolve a Praça Rui Barbosa, mas não faria diferença alguma se fosse uma segunda ou quinta. A dinâmica de um trânsito agitado numa região em obras talvez diminua somente aos fins de semana, com menos carros e ônibus em circulação. O que parece não diminuir nunca é a movimentação de histórias que ocorrem em seus espaços, inclusive nos pontos de ônibus. A cada quinze minutos – média do intervalo entre os ônibus de uma mesma linha – a parada se reconfigura para receber novos casos e se despedir de outros ao longo da Avenida dos Andradas.

 

Contos da Espera - Foto Paulo Henrique dos Santos

 

Localizados em frente à Estação Central de trem e metrô, estes pontos se parecem com um baú. A cor de ferrugem e seu aspecto envelhecido contribuem para esta associação, além do formato de uma caixa alongada coberta por um teto de flores. Neste espaço, comerciantes disputam os fregueses-passageiros com ofertas de água, salgadinhos e picolés, produtos requisitados no horário do almoço e sob um calor de 25 graus.

Dentre as estratégias de venda utilizadas, eles direcionam elogios às mulheres e puxam papo sobre futebol com os homens, na tentativa de criar uma proximidade que possa facilitar o seu trabalho. Sem ter que pagar impostos e com um público constante, ser ambulante em ponto de ônibus não parece um mau negócio.

 

Online/Offline

 

Alheias a esta movimentação, algumas pessoas agem como se estivessem em uma bolha. O uso de dispositivos como smartphones dominam o processo de interação entre os passageiros. A folclórica conversa sobre o clima ou a má qualidade do serviço público de transporte, se ocorre, é pelo Facebook ou Whatsapp, não mais com a pessoa do lado. Perguntar as horas para iniciar uma aproximação é atitude rara e nem se justifica como desculpa, ainda mais com o grande relógio fixado no alto da entrada do Museu de Artes e Ofícios, situado do outro lado da avenida. A infame socialização no ponto de ônibus é bem menor do que se imagina e estas conversas cotidianas tendem a ficar cada vez menos frequentes. O ponto de ônibus está ficando mudo.

E mesmo estando num lugar de aglomerações, algumas pessoas tornam-se invisíveis em meio a tanta gente. Só um olhar mais atento consegue reparar que em um dos cantos do ponto de ônibus há uma moça que cuidadosamente segura um balão vermelho. Quem se aproxima percebe que tem algo escrito nele e, com um pouquinho mais de esforço, descobre que aquelas palavras formam mensagens de aniversário. Arrisco a dizer que se trata de uma surpresa dos amigos do trabalho ou da escola, mas o tempo é curto para saber a fundo: num piscar de olhos, lá se vai a jovem, espremida em um ônibus lotado enquanto tenta preservar seu tesouro.

Quem vive da mendicância também não tem visibilidade. Um senhor é ignorado por todos enquanto pede uns “trocados” pra almoçar no Restaurante Popular, que fica a cerca de um quilômetro dali. Sua história não comove os demais, que simplesmente o ignoram.

Não se pode dizer se foram as roupas sujas, a fala atrapalhada ou a abordagem muito próxima, mas o homem não conseguiu juntar nem um real. Ele garante que não está ali “pra matar e nem pra roubar” – e é só isso que conseguimos saber sobre ele. Como os outros, é mais uma história que caminha pelas calçadas daquela praça.

 

Linguagem de sinais

 

O cartaz era simples: foto em preto e branco, letra tortuosa, tinta e papel. Roubava um pouco de tempo ao propor a tradução de um português interno e pessoal para o português ortograficamente correto: “Deza parecidar”, tentava dizer.

Desaparecida, dizia.

Quem verificasse com um pouco mais de ânsia e angústia talvez chegasse à constatação de que era quase um espelho: perdidos estávamos todos, bem como “Dayane Perera dos Santos”, a figura que, triste, ressoa no poste de eletricidade do ponto da Praça Sete/Instituto Moreira Sales, no Centro de Belo Horizonte. O futuro de Dayane, que provavelmente teve um “i” roubado de seu sobrenome, estava entregue a um número de telefone, escrito logo abaixo da foto. Quem a encontrasse, devia avisar imediatamente.

A concorrência de Dayane é acirrada: outro espaço do ponto é invadido pelo anúncio auspicioso de uma oportunidade de trabalho com alto salário, pouca carga horária e possibilidade de ascensão rápida. Os interessados que procurassem mais informações o quanto antes – as vagas eram poucas. Mais uma publicidade improvisada prometia A CURA! do alcoolismo e do tabagismo. Nenhuma dica a respeito dos métodos de tratamento.

Um painel com previsão da aproximação dos ônibus, novinho em folha, poderia representar risco à tentativa de Dayane de ser ouvida através de seu discurso mudo. Mas as pessoas preferem continuar com o procedimento padrão de quem espera um ônibus. Isto é, se amontoar e esticar o pescoço, quase caindo na rua. Aparentemente a ação é mais eficiente que aguardar informações tão vagas como uma promessa flutuante de que o transporte pode chegar “de 5 a 10 minutos”.

Eficiente seria, aliás, se este tipo de predileção cronometrada envolvesse o reencontro de Dayane Perera com seus entes que a procuram, a cura para o alcoolismo e tabagismo ou a contratação no tal emprego milagroso.

 

A bala e a velha

 

No mesmo ponto, Dayane observa, lacônica, duas jovens que conversam e trocam mensagens em seus telefones. Riem. Cumprimentam com acenos uma amiga que passa dentro de um ônibus. Inocente, uma delas retira uma bala do bolso e, após degluti-la, atira o papel no chão.

Sorrateira, uma voz corta caminho no silêncio do ponto.

“O papel é seu?”, disse uma senhora muito bem agasalhada para uma temperatura relativamente agradável. Nenhuma resposta. “Mocinha, o papel no chão foi você que jogou?”. Surpreendida, a jovem confessa, com um meneio de cabeça. Sim. Os aparelhos smartphones são esquecidos por um momento. Os ônibus – razão de todos estarem ali – também. Todos observam o espetáculo ocasional. “Pode me dar aqui que eu jogo na lixeira pra você”, continua a velhinha em sua militância por uma cidade mais limpa. Corrijo, ao lembrar de sua garra: por uma cidade limpa.

A embalagem transita de mão para mão, numa colaboração meio forçada, meio tímida. Passada a polêmica, a velhinha vira-se para sua vizinha de banco e admite: havia sido muito brusca. “Eu devia ter perguntado se ela se importava em recolher para mim. Não podia ter acusado”, diz. A vizinha concorda: “Da próxima vez você faz assim”.  Agora de causa aperfeiçoada, a velhinha assentiu e preparou-se para a manifestação seguinte em prol da limpeza.

 

Romance

 

A sujeira de uma das maiores avenidas do centro da cidade não parecia incomodar o casal que se apertava num calor íntimo, espremidos entre rochedos e um oceano plácido – dois grandes quadros fotográficos instalados para uma exposição externa nas grades do Parque Municipal. A imagem era bonita e inspirou um discurso efervescente por parte de um dos adolescentes do ponto do Teatro Francisco Nunes.

“Que mulher não vai me querer, meu filho? To-das-as-no-vi-nhas”, berra um deles, aparentemente uma espécie de líder. Usa boné virado para trás, aparelhos odontológicos, bermuda e tênis esportivo. Parece acreditar no que propaga aos demais integrantes do grupo, que ou ouvem atentamente ou não dão a mínima – são duas possíveis explicações para a falta de comentários.

“Aquela lá é a maior galinha”, ele continua, desenfreado. “Não adiciona qualquer um no Facebook, acha que é famosa. Mas eu tenho ela nos amigos”. Um velhinho, sentado num banco próximo, ouve a tudo sem parecer prestar muita atenção. Observa os namorados. Parece triste (e é fácil acrescentar: saudosista). Dos presentes é o mais velho – e exatamente por isso, por ter ganho com a idade uma sensibilidade maior, é o que melhor percebe a intensa juventude da cena toda.

Marcos Fernandes

Estar num ponto de ônibus sem qualquer intenção além de observar o comportamento das pessoas foi uma experiência de entrega. Ao contrário dos outros, eu não precisava ficar atento aos carros que estavam a caminho, então pude ter uma visão interessante de como cada um aproveita seu tempo de espera e se vira na hora de se amontoar para entrar nos veículos.

Paulo Henrique dos Santos

Eu estava na expectativa de chegar à Praça da Estação e encontrar as pessoas amontoadas, reclamando do calor, falando mal de político ou envolvidas em qualquer outra conversa cotidiana. No entanto, para minha surpresa, eu encontrei “cada um na sua”, pessoas que mal se entreolhavam, sem interação. Não foi difícil perceber que a individualidade havia chegado também ao transporte coletivo.