No ritmo do Calma Clima, BH ganha movimento.

Numa terça-feira à noite, eu me vi na Praça da Estação, debaixo de chuva, cercada por um grupo animado de corredores se esticando, se alongando, dando pequenos trotinhos e gritos animados porque a corrida estava para começar. O relógio marcava 20h30, e tudo que eu conseguia pensar era: “Meu Deus, o que estou fazendo aqui? Não sou corredora, vim sozinha e nunca participei de uma corrida de rua” — para ser sincera, minha única experiência com corrida na rua se limita àquela pressa meio desesperada para pegar o último ônibus. Mas estava ali por um motivo: entender como o grupo Calma Clima transforma a prática de corrida em um ato de ocupação do espaço público — E claro, queimar umas calorias extras.

Antes mesmo de começarmos, já percebi que tinha algo especial no ar. Não era só a ansiedade pelo percurso de 6 km ou o leve desespero de quem, como eu, não tem o hábito de correr. Era a vibração do lugar, como se aquele pedaço da cidade tivesse ganhado vida própria. As pessoas riam, se aqueciam, trocavam palavras de incentivo e, de alguma forma, aquela energia coletiva parecia contagiar a cidade, como se a Praça da Estação tivesse sido construída para aquele momento. Por um segundo, pareceu que a estátua de Bruzzo Spinosa, no centro da praça, também estava se alongando com os corredores.

Início da corrida, Praça da Estação – BH | Foto por Joyce Rosa

Não era só sobre estar ali para suar a camisa, mas para fazer parte de algo maior – um movimento que misturava saúde, alegria, conexão e a simples, mas poderosa, ideia de transformar as ruas em um espaço de troca e pertencimento. A Praça da Estação, naquele momento, era mais do que concreto e história. Era um verdadeiro palco vibrante de um show que estava prestes a começar.

Km 1 : Uma nova perspectiva da cidade

O grupo partiu em ritmo moderado, e eu, já prevendo o desastre cardiovascular, assumi meu lugar estratégico na retaguarda — ou, como eles preferem chamar, “a galera do fundão”. “CLIMA!” É o grito de largada e, aos poucos, a Praça da Estação ia ficando para trás, enquanto corredores gritavam entre eles: “Lembrou de ligar o Strava?”, conversavam e riam como se estivessem numa mesa de bar e não prestes a enfrentar 6 km pelas ruas de Belo Horizonte. Mariana Castro, 30 anos, advogada, disse algo que ficou na minha cabeça: “A gente passa por lugares que eu nunca teria notado no dia a dia. É uma maneira de me conectar com a cidade.”

E ela estava certa. Não era apenas correr. Era redescobrir Belo Horizonte. Passar por ruas que eu só tinha visto de dentro do carro e observar detalhes que nunca tinha notado — a arquitetura de um prédio, a iluminação precária de uma rua, o brilho discreto de um grafite embaixo de um viaduto e, principalmente, quanta desigualdade cabe no espaço de 6 km do centro de Belo Horizonte. Isso é especialmente relevante em um contexto de crescimento da prática de esportes na cidade. De acordo com dados da Secretaria de Esportes de Belo Horizonte, o número de pessoas que praticam atividades físicas nas ruas da cidade tem aumentado significativamente nos últimos anos, com destaque para a corrida de rua. Esse tipo de esporte tem sido promovido em iniciativas públicas e privadas, que incentivam a ocupação dos espaços urbanos.

Esse sentimento de pertencimento ao espaço público é algo que o artigo “Corrida de rua e vínculos com a cidade” de Cláudio Coelho aborda. No entanto, o texto também alerta para os desafios que permeiam essa ocupação. Segundo Coelho, embora as corridas promovam sociabilidade e um novo olhar para os espaços urbanos, elas estão frequentemente inseridas em uma lógica de consumo espetacularizado que reforça desigualdades sociais e limita o potencial transformador dessas práticas.

Km 2: A rua é nois! 

Quando passamos por um grupo de moradores de rua, um deles gritou: “Corre, desanima não!” Outro, mais espirituoso, brincou: “É arrastão, pessoal, corre!” Os corredores riram e continuaram, alguns acenando de volta. Aquilo me fez pensar em algo que Isabela Torres, 27 anos, arquiteta, disse: “Eu jamais passaria a pé debaixo daquele viaduto e acenaria pro mendigo, mas com o Calma Clima isso é possível. Quando você menos percebe, está conhecendo partezinhas de BH e ocupando a cidade MESMO.”

Essas transições abruptas são como um tapa na cara. De um lado, o centro modernizado, com seus bares e restaurantes cheios de vida; do outro, bairros onde a infraestrutura parece esquecida. Para muitos moradores, caminhar ou correr pelas ruas não é lazer, mas uma necessidade enfrentada com medo e desconforto. Cláudio Coelho ressalta como esses contrastes evidenciam a desigualdade na ocupação do espaço urbano, questionando o quanto essas iniciativas esportivas realmente contribuem para a democratização do uso das ruas.

Ao longo do percurso, as interações continuaram. Um motorista de ônibus buzinou em apoio. Pessoas nos bares gritaram: “Corre que eu bebo!” e “O pós-corrida é aqui, vem!” Era como se, por alguns minutos, a cidade parasse para observar e interagir com essa “banda” de corredores, como disse Ricardo Lemos, 30 anos, personal, descreveu isso de forma perfeita: “Sabe aquela música em que todos param pra ver a banda passar? É como se o Calma Clima fosse a banda passando pela cidade, e o motorista para para buzinar, o policial lembra de sorrir, o mendigo levanta para acenar…”

Km 3: Quando a cidade se mostra

Na metade do percurso, as ruas começaram a revelar contrastes marcantes. Passamos por uma avenida cheia de prédios modernos, com calçadas largas e bem cuidadas, apenas para entrar, poucos minutos depois, em uma rua estreita, cheia de lixo acumulado e com um cheiro que, sinceramente, não era de eucalipto. “Respira fundo! Quer dizer… melhor não!” alguém brincou, arrancando risadas nervosas.

Essas transições abruptas são como um tapa na cara. De um lado, o centro modernizado, com seus bares e restaurantes cheios de vida; do outro, bairros onde a infraestrutura parece esquecida. É impossível ignorar o contraste. E, por mais que o grupo trouxesse uma energia positiva, ficou claro que a cidade nem sempre convida à ocupação. Para muitos moradores, caminhar ou correr pelas ruas não é lazer, mas uma necessidade enfrentada com medo e desconforto.

“É complicado,” disse Isabela Torres, em uma das entrevistas “A gente ocupa as ruas por escolha, mas tem gente que ocupa porque não tem outra opção.”

 

Corredores do Calma Clima durante o percurso | Foto por Joyce Rosa

KM 4: A cidade que une, separa

Já estávamos no quarto quilômetro e, enquanto o grupo avançava com energia contagiante, eu comecei a reparar em um detalhe impossível de ignorar: o chão. Ou melhor, a falta de chão. Buracos, calçadas irregulares e um trecho que mais parecia a versão mineira de uma trilha de obstáculos. Uma colega de corrida brincou ao me ver tropeçar algumas vezes seguidas: “Aqui é tipo crossfit!” E eu ri, mas confesso que cada tropeço era um lembrete cruel de como o espaço urbano não é pensado para o pedestre. 

O contraste da iluminação ao longo do percurso logo se destacou. Em alguns trechos, a falta de luz deixava a sensação de que a cidade ainda estava distante de ser totalmente acessível e acolhedora. Porém, o mais interessante foi perceber como, mesmo diante desses desafios urbanos, o grupo continuava avançando, como se a corrida fosse também uma forma de ocupar e reimaginar esses espaços. Ao atravessar essas áreas, a cidade se transformava, deixando claro que a corrida não era só um exercício físico, mas uma forma de reivindicar o direito de viver a cidade em toda a sua complexidade.

É nesse ponto que o Calma Clima revela algo curioso: ao mesmo tempo em que a corrida ocupa o espaço público, ela também escancara os problemas da cidade.

 

Corredores do Calma Clima durante o percurso | Foto por Joyce Rosa

KM 5: Um novo olhar

No quinto quilômetro, enquanto eu tentava não desmoronar, comecei a entender melhor o que Bernardo Biagioni, organizador do Calma Clima, compartilha com seus seguidores nas redes sociais. Em uma das postagens no Instagram, ele escreveu: “Correr é uma forma de se reconectar, não só consigo, mas com o espaço que nos cerca. É uma maneira de mostrar que a cidade também é nossa.” Essa reflexão resume perfeitamente o que o grupo busca: não apenas correr pelas ruas, mas ocupar o espaço urbano de forma ativa, reivindicando o direito de transformá-lo em um lugar de vivência, e não apenas de passagem.

Correr, portanto, não é apenas uma prática voltada para a saúde ou estética. Ela se torna uma forma de apropriação da cidade, de reinterpretação dos espaços que, muitas vezes, são vistos como hostis ou inóspitos. Em vez de serem apenas locais de trânsito, as ruas se tornam um campo de possibilidades para lazer e convivência, algo que o Calma Clima tem demonstrado com suas corridas.

No entanto, como aponta o estudo de Coelho, esse potencial de transformação das ruas muitas vezes é ofuscado pela lógica de consumo. As experiências de lazer e bem-estar, em vez de serem acessíveis a todos, acabam sendo mercantilizadas e restritas àqueles que podem pagar por elas. Isso limita a verdadeira democratização do espaço urbano, tornando a experiência de viver a cidade uma prerrogativa de poucos.

Ainda assim, os benefícios da corrida são claros, não apenas para a saúde física, mas também para a saúde mental. De acordo com estudos do Ministério da Saúde, atividades como correr podem reduzir sintomas de ansiedade e depressão, melhorar o sono e aumentar a disposição. Esses resultados são visíveis nos participantes do Calma Clima, que, ao correr, buscam mais do que a melhora física. Eles estão investindo em seu bem-estar emocional e mental, experimentando, na prática, o que significa se reconectar com a cidade e consigo mesmos.

 

Bernardo Biagioni, idealizador do Calma Clima | Foto por Joyce Rosa

Km 6: O último quilômetro e o que fica da cidade

Depois de 6 km – e muito suor – eu terminei a corrida com a sensação de que havia descoberto uma nova Belo Horizonte. De volta à Praça da Estação, eu estava exausta, mas também emocionada, não só pela minha vitória pessoal de ter finalizado o percurso, mas porque entendi que aquilo era muito mais do que uma atividade física. Era uma forma de transformar a cidade.

O estudo de Cláudio Coelho me veio à mente novamente. Ele afirma que práticas como a corrida promovem um sentimento de pertencimento coletivo, mas que para além disso, é necessário questionar como essas práticas podem ir além da esfera do consumo e contribuir para a construção de espaços urbanos mais democráticos e inclusivos.

Por mais que minhas pernas dissessem o contrário, o coração estava leve. O Calma Clima não só me ensinou que a corrida pode ser uma forma de ocupar o espaço público, mesmo que ele apresente tantos problemas, mas também que Belo Horizonte ainda tem muito a oferecer —  e que vale a pena explorá-la.

No fim, a prática de esportes como ocupação do espaço público é, acima de tudo, um ato de reconexão – com o corpo, com as pessoas e com a própria cidade. E se você nunca correu pelas ruas de BH, posso garantir: vale cada passo.

 

Repórter Joyce Rosa | Foto por Joyce Rosa