O Duelo de MCs do viaduto Santa Tereza influencia positivamente na vivência artística de representantes das variadas vertentes do hip hop
Por Lara Moreno
Reduzir a cultura do hip hop somente ao freestyle, é invisibilizar as outras categorias artísticas dessa expressão artística. A cultura de rua vai muito além do rap com MCs e DJs, valoriza também outras manifestações, como a dança, mais especificamente o break, a arte gráfica, com os grafites e teve adição mais recente, como quinto pilar, o conhecimento. Através de seus eventos, o movimento hip hop promove inclusão social de jovens e compartilha essa cultura com a sociedade de forma divertida, democrática e como símbolo de resistência.
Pensando nisso, a cada 15 dias aos domingos, o viaduto Santa Tereza é palco para o Duelo de MCs, um evento organizado pelo grupo “Família de Rua”. Com origem em 2007, o Duelo de MCs é um dos eventos de maior relevância social e cultural de Belo Horizonte e é realizado com a finalidade de proporcionar um espaço aberto para que artistas em ascensão no ramo se apresentem, se conheçam e, sobretudo, desenvolvam seu trabalho. Foi de lá que artistas como FBC, Douglas Din e Clara Lima surgiram e se tornaram conhecidos nacionalmente.
A MC belorizontina Liah conta que acredita que o espaço do Duelo de MCs no viaduto é acolhedor para apresentação não só da sua arte, mas a de outros artistas também.
“É um evento feito pela população periférica, para a população periférica. E além de tudo, é uma celebração de todas as vertentes da arte do hip hop. Tem espaço pra todo mundo se conhecer, fazer contatos, se divertir, assistir os shows e as batalhas. É o lugar onde eu cresci e me entendi como artista, e mais ainda, como pessoa.”
E este é um diferencial dessa batalha em comparação com as outras espalhadas pelo país, segundo a artista do Família de Rua e apresentadora dos Duelos de MCs, Colombiana. Ela diz que considera aquele não é só o espaço mais acolhedor da cidade, como do Brasil para essas artes, pois a maior parte das batalhas só dá abertura ao duelo de rimas e na mobilização do Viaduto, todos os elementos se articulam simultaneamente.
Como funciona?
Como o evento dos duelos é aberto e plural, se torna benéfico e influente no trabalho de divulgação das variadas manifestações artísticas características do movimento do hip hop, e se alia também aos trabalhos de fotografia, produção de vídeo e artes acrobáticas. Para os MCs que desejam se apresentar, o processo é o seguinte: assim que chegam ao local, já pagam um valor simbólico pela inscrição para participar e ficam à mercê do sorteio e do chaveamento para saber contra quem será o duelo. Como se fosse um “mata-mata”, as competições começam, com tempo delimitado para cada um se apresentar com um round de ataque e um de defesa cada. Com apoio da apresentadora, Colombiana, dos jurados e do público, os mcs são julgados quanto à qualidade da rima e a medida que se livram das eliminações, se aproximam da final. Os finalistas garantem vaga para duelar no evento seguinte e o grande vencedor sai premiado com o montante acumulado com o valor das inscrições. Isso sem contar que existem os eventos classificatórios para o Duelo de MCs Nacional, com variadas etapas seletivas.
Pensando na dinâmica de outros artistas, já ocorre de forma diferente. O fotógrafo Cadu Passos conta que é contatado e contratado por integrantes do grupo Família de Rua para realizar as coberturas, seja sozinho ou acompanhado. A história de Pâmela Bernardo já se difere um pouco, uma vez que conta que sua trajetória foi grandemente influenciada pelo irmão Pablo Bernardo, que atuou nas coberturas por muitos anos, desde 2012. Inicialmente, em 2016 ela fazia os vídeos das batalhas do Duelo de forma colaborativa com ele, mas não teve grande visibilidade em seu trabalho com essa mídia. Com o passar dos anos, ao explorar também a fotografia, passou a ter um retorno de público muito grande, sobretudo nas redes sociais, e em 2023, se tornou a fotógrafa oficial dos Duelos: “Aprendi muito fazendo os vídeos das batalhas, e agora vem outro aprendizado que é a fotografia. O Duelo é muito dinâmico mas ao mesmo tempo é uma situação que se repete, que são as batalhas, então é um desafio que me propõe a inovar meu olhar a cada edição.”
Em relação ao trabalho de artes gráficas no Viaduto Santa Tereza, o grafiteiro Tubarão, de Fortaleza, conta um pouco sobre sua experiência no duelo como um artista de outro estado e região. Convidado pelo Família de Rua para pintar no duelo, compartilhou sua sensação de honra por estar no “maior palco do hip hop nacional da atualidade” produzindo um dos alguns murais que deixou espalhados pela cidade de Belo Horizonte. Para ele, o que proporcionou a oportunidade foram os contatos que já tinha feito previamente em festivais e pela própria internet, mas a possibilidade de reencontrar velhos amigos e conhecer novas pessoas também foi uma experiência de grande valor enquanto participante do evento.
Nesta visão quanto a participação do evento ir além do desenvolvimento profissional, e envolver também o pensamento de ser um momento de descontração e socialização, muitos dos artistas participantes aproveitam para se divertir no processo. É o caso das meninas que fazem recorrentemente as apresentações de circo nos duelos, mesmo que não seja uma arte característica da cultura hip hop. Bia, professora de circo da empresa Butterfly, conta que a participação dela e de sua equipe, formada por um total de 4 meninas, se deu a partir de idas espontâneas que se transformaram em momentos de treino. Atualmente, frequentam o espaço para além de treinarem, terem contato com as pessoas e aproveitarem a música. Conseguem trabalhar em cima do público de forma tranquila, pois não incomodam ninguém embaixo do viaduto e ninguém as incomoda na parte de cima. Sobretudo pela recorrência com que vão aos duelos, o público as respeita e faz com que se sintam seguras por não mexerem nos equipamentos que elas usam para se pendurar.
Em uma perspectiva menos voltada para o desenvolvimento profissional, o break também se mostra presente no ambiente nos duelos. Em momentos de pausa entre as rodadas de apresentação dos mcs, rodas espontâneas se formam entre o público e a galera se sente à vontade para performar passos de dança. Muitos que se apresentam já demonstram ter um conhecimento e prática prévios dos movimentos, mas os iniciantes também têm o espaço garantido para se divertir performando esse tipo de arte.
A influência do material audiovisual
Com a presença do público, que naturalmente faz fotografias e vídeos amadores para compartilhar nas redes sociais, aliado ao trabalho profissional de fotógrafos, o nome do Duelo acaba se espalhando. Hoje, a página do Instagram do Família de Rua (@familia_de_rua) conta com mais de 113 mil seguidores de todo o país e é um grande portfólio do trabalho do movimento e dos artistas que participam das edições.
O MC Hynoto, participante das batalhas no viaduto e em outras partes da cidade percebe a importância dos registros para o crescimento no ramo. Ele diz: “Ao gravar um vídeo de uma batalha de rima rolando, além de divulgar o ‘trampo’ dos MC’s, de quem tá organizando, o nome da batalha, divulga o ‘trampo’ de quem tá gravando também, registrando. E ao fundo, será que não tem um grafite, alguma intervenção durante os duelos?! Dá pra fazer esse mesclado, é uma divulgação múltipla de trabalhos. Quanto mais registro você tiver, mais dá pra movimentar suas redes sociais, mais contatos você pode adquirir e promover também”.
Tubarão já conta que sobretudo por ser de Fortaleza e assim estar à margem do eixo Sudeste/ Sul, onde acontecem os grandes eventos do hip hop nacional, o convite para participar do evento em Belo Horizonte repercute de forma a engrandecer sua trajetória pessoal. Comenta que sentiu o impacto da pandemia de covid-19 na divulgação de seu trabalho, mas que crê que sua participação no duelo servirá para enaltecer o processo de aumento de sua rede. Demonstra, portanto, a grande influência das imagens e postagens que divulgam sua presença no espaço para maior reconhecimento pelo público e pelos seguidores.
Os fotógrafos entrevistados corroboram que esta forma de intervenção é muito benéfica para que eles consigam outros trabalhos também. Sob perspectiva mais poética, produzir os registros faz com que tenham “contato direto com o povo interagindo com o espaço urbano em momentos de catarse” e os desdobramentos disso alcançam dimensões muito grandes. A transformação de uma imagem captada durante o Duelo de MCs em flyers, capas de single, recortes, vídeos curtos e afins proporcionam o alcance de novos lugares, tanto pelos fotógrafos, como pelos outros artistas. Assim, são uma forma de desdobramento da produção deles em outras formas de arte que auxiliam diretamente na “divulgação e difusão do que acontece no Duelo”.
É importante frisar que não ocorre apenas essa divulgação e reutilização dos materiais, como também o que é produzido durante os eventos enriquece o portfólio dos participantes e serve como “cartão de visitas”, como comenta Colombiana. Para ela, a produção audiovisual se mostra uma necessidade sobretudo devido à carência do acesso ao conhecimento por grande parte das pessoas que participam, pois muitos não têm acesso a cursos de informática básicos para aprender a mexer no power point e assim construir seu próprio currículo artístico, por exemplo. Desta maneira, as fotos e vídeos comprovam não só a participação e presença dos artistas no Duelo, como também atestam suas habilidades sobre a arte que se propõem a fazer.
As transmissões online dividem opiniões
A discussão levantada pela apresentadora dos duelos sobre a divulgação em massa pela internet ser uma forma de contornar a privatização da televisão, mostra como a diversão garantida pelos eventos pode ser propagada para além de limitações como fronteiras e horários de trabalho, por exemplo. Comenta que o crescimento do hip hop no Brasil se dá muito pelo conhecimento repassado, pelo reconhecimento da habilidade dos artistas por terceiros e pela adesão da ideia do movimento. Em tom cômico, fala sobre a recepção dessa arte pelas pessoas, que se sentem envoltas por uma “magia” ao se surpreenderem com a velocidade com a qual os mcs pensam e respondem às rimas.
Pâmela concorda que as transmissões ao vivo fazem aqueles que gostariam de estar presentes, mas por alguma razão não puderam comparecer, sentirem um “gostinho” de como é o Duelo, mas por outro lado, Cadu levanta uma outra questão. Ele afirma: “a internet é terra de ninguém, ne. Ao mesmo tempo que é a ferramenta de informação mais potente que já existiu (perdendo apenas para a fofoca), abre as portas do inferno para críticas pesadas que podem acabar com carreiras promissoras. Transmissões ao vivo são boas amostras disso com os comentários em tempo real.”
Os dois fotógrafos divergem de opinião também quando se trata do que exatamente é registrado. Por um lado, Pâmela frisa que a transmissão geralmente é das batalhas e das apresentações musicais, mas Cadu já põe em voga que apesar disso, tudo que interage com o território será registrado, incluindo as diversas formas de arte.
A artista de circo, por sua vez, já afirma que não acompanha as transmissões ao vivo para saber se contemplam seu trabalho também, mas comenta que se diverte com eventuais comentários que surgem. Alguns que chamaram sua atenção foram “tem mulher voando” e ”olha, uma loira pendurada no varal”.
Hip hop como salvador de vidas, impulsionador de carreiras e mobilizador de conexões
Uma festividade divertida, cultural e plural como o movimento hip hop do Viaduto Santa Tereza, com os Duelos de MCs a cada 15 dias, é um grande exemplo de como a arte pode ter diversos desdobramentos. Apesar de compartilharem vivências no espaço, as percepções individuais e contextos formacionais impactam diretamente na forma como os diversos artistas percebem a influência do hip hop em suas vidas.
Há aqueles que voltam o pensamento majoritariamente ao crescimento e desenvolvimento profissional no ramo, com maior foco nas formas de utilização de imagem, impulsionamento de redes e aumento nas visualizações. Aliado a isso, a oportunidade se apresenta de forma benéfica para a conexão entre indivíduos que podem se edificar, com a construção de contatos, portfólio e até mesmo momentos de descontração.
Para outros, o hip hop se mostra como alternativa não só profissional, mas também como estilo de vida que proporciona oportunidades para reinserção social e desvio do crime, a oportunidade de “salvar nossas vidas”. A capacitação para atuação artística no meio é uma forma de se sentir abraçado por uma parcela da sociedade composta por um grupo de pessoas que não abre espaço para preconceitos e falas machistas, racistas e homofóbicas. É o sentimento de inclusão e aceitação que alguns não haviam experimentado antes.
Mas, acima de tudo, como fator comum em todos os relatos ouvidos, o amor pela cultura prevalece. “Todo mundo que ‘tá’ lá [nos duelos do Viaduto Santa Tereza] tem um brilho a mais. Tanto o público que ‘tá’ assistindo, quanto a galera da produção, quanto quem ‘tá’ no palco. E esse ‘algo a mais’ é o denominador comum, é a vontade de fazer algo grande, vontade de viver, de falar, de ouvir e ser ouvido. (…) O viaduto, mais do que palco do duelo, é palco de tudo isso”, diz Liah.