Dossiê: Transporte

Em um dia de congestionamento em BH, conversamos com passageiros de um ônibus para saber como eles passam o tempo enquanto o trânsito está parado.

 

São sete da noite e o ônibus Circular 02B sai da região de Santa Efigênia rumo ao centro da cidade. Dos céus cai uma chuva fina e o trânsito já está lento logo no começo da Avenida Brasil. Os belo-horizontinos já sabem: uma gota d’água derramada na Praça Sete significa longas filas de carros e muitas horas a mais no caminho de volta para casa. Entre os poucos passageiros que ocupam o circular nessa noite chuvosa, uma mulher decide não se preocupar com o engarrafamento lá fora. Ao celular, compartilhava a vida não só com a interlocutora do outro lado da linha, mas também com todos os passageiros da viagem.

– Tia! Oi Tia. A senhora sabe que eu estou saindo lá de casa, né?! Sim, vou sair sim, tia. Eu e papai não estamos dando certo não. Outro dia a Tininha deixou as roupas na máquina por uma semana… Quando eu fui dizer a ela que aquilo não podia acontecer, o papai tomou as dores e disse que eu tava implicando com ela. Difícil, tia. Vou arrumar um barraco pra mim.

A conversa durou cerca da quarenta minutos, até o desembarque na Praça Sete. Desde a Avenida Churchill até a Avenida João Pinheiro, próximo à Faculdade de Direito, pôde-se entender quase tudo sobre a vida da mulher que falava ao telefone – sua infância sofrida; os problemas com a mãe; a casa dividida entre pai, madrasta, irmã e filhos; o namorado; o trabalho no salão de beleza e o sonho de comprar uma moto. Aquela passageira transformou seu tempo no ônibus em conversa e em desabafo. E os passageiros que ouviam a conversa, especialmente dois jovens que mostravam muita atenção na história, transformaram o tempo do trajeto em tempo de escuta.

Essa transformação do tempo “inerte” da duração de um deslocamento em tempo “útil” é uma questão que se impõe a todos os usuários do transporte público urbano. Com as recentes obras de reformulação do fluxo de veículos em Belo Horizonte, como o BRT, que ocupa trechos de importantes vias de acesso de capital, e o crescimento do mercado de venda de automóveis pessoais, o trânsito se intensifica e amplia-se o tempo gasto pelo usuário no transporte coletivo, especialmente nos ônibus.

E o que faz o belo-horizontino para superar o obstáculo das longas e demoradas jornadas pela cidade? Falar ao telefone, ouvir conversas alheias, pensar na vida, observar a cidade que corre diante das janelas. Essas são algumas das muitas formas como as pessoas usam o tempo enquanto se deslocam entre um destino e outro. Casos inusitados não faltam. Miguel Portela, usuário de ônibus e metrô em viagens diárias pelo trecho Barreiro-Centro, já viu até operários almoçando dentro do coletivo: “Chegaram com várias marmitas, sentaram no chão, abriram um refrigerante e comeram e beberam durante o trajeto”. O próprio Miguel usa o tempo do trajeto para ler ou para observar a cidade, com especial atenção para o contraste social no espaço público e o caos do trânsito. “A paisagem do trajeto 3050 é mais bonita, mas contrasta com as favelas que encontro no caminho, mas não me incomoda sobremaneira e sim abre espaço à reflexão”, sintetiza Miguel.

Em linhas que fazem trajetos curtos e nos horários em que o trânsito flui melhor é comum que as pessoas fixem o olhar no que há além das janelas. É possível que estejam perdidas entre a paisagem urbana e os próprios pensamentos. Já os trajetos que levam de um bairro a outro passando pelo centro, quando a viagem é mais longa, contam com passageiros envolvidos em tarefas que exigem maior concentração, como a dedicação a apostilas ou à literatura. A idade também interfere: a maior parte dos adolescentes e universitários está vidrada no celular; os mais velhos comumente leem jornais ou olham a cidade. Não é possível estabelecer regras para o uso do tempo dentro do ônibus, mas é perceptível que todos os passageiros estão tentando aproveitá-lo de alguma maneira.

Felipe Franco, estudante de Arquitetura e “heavy-user” de redes sociais em movimento, diz que fica completamente imerso em seu celular durante o seu trajeto de uma hora pela cidade, onde normalmente conversa com sua namorada pela internet. Dessa maneira, Franco diz que já não considera o tempo gasto no ônibus como estressante, e diz: “A permanência é indiferente, esperar chegar é que é fonte de stress”. Sobre os outros passageiros, Franco responde: “normalmente eu nem lembro que eles existem, exceto quando é gente conhecida, que fica conversando comigo, ou quando está lotado e ficam me empurrando”.

 

Reprodução da obra de Simone Moraes -Ana Clara Matta

Reprodução da obra de Simone Moraes – por Ana Clara Matta

 

Outra jovem, Daiana Rodrigues, trabalhadora mirim da Associação Profissionalizante do menor e moradora do Bairro Serra, escuta música com o auxílio do celular sempre que o ônibus é o meio para levá-la até o trabalho ou até o centro. Se há lugar para sentar, o que é raro, ela delicia-se com as vitrines das lojas. Nina Rocha, estudante de Comunicação Social, também utilizava o seu celular para acessar a rede e ouvir música enquanto transitava pela cidade. A estudante abandonou a prática alegando que o consumo de bateria do seu celular era excessivo. Hoje, a garota aproveita seu tempo lendo e observando a rua. Nina afirma: “Ficar horas no trânsito não é exatamente um exercício prazeroso, mas gosto muito de fazer observações sobre o espaço urbano e as pessoas. São momentos também introspectivos, porque não tem muita coisa pra fazer, então você consegue pensar e ter várias ideias durante esse tempo.”

Não é apenas Nina que retira inspiração do tempo gasto no ônibus ou no metrô. A estudante e artista plástica Simone Moraes também aprecia o estado de introspecção que o ônibus lhe proporciona, e desenha e escreve no seu trajeto diário de menos de uma hora de duração. “O movimento do ônibus faz parte do que eu escrevo e do que eu desenho. O movimento para mim é importante – faz parte da minha concentração” diz Simone, e diz que para si o ônibus é um laboratório de pessoas, de movimento. Repara em bolsas, tênis e comportamentos. Escuta conversas. Abre espaço até para experimentos mais ousados, em conformação com as paisagens sonoras do transporte: “Uma vez fui tecendo meu texto a partir das conversas que escutava. Já fiz também a experiência de passar o percurso inteiro de olhos fechados, e imaginar a fonte dos sons, ao invés de ver.

De fato, não há como ignorar que o tempo é um recurso importante para quem vive em uma capital e, nesse aspecto, as distâncias não são apenas da ordem dos quilômetros – são distâncias subjetivas. Quem usa o tempo para ler quer aproximar-se de ideias, de histórias, de conhecimento; quem usa o tempo em conversas pelo celular quer aproximar-se de pessoas; quem usa o tempo para o olhar a rua, quer aproximar-se da cidade ou, talvez, dos próprios pensamentos. As janelas do ônibus não mostram apenas o que se pode ver pela transparência das vidraças, mas abrem outras janelas para a vida.

Ana Clara Matta

O recorte dessa reportagem é extremamente pessoal. Minha observação participante motivou a reportagem, na verdade. Afinal, percorro a cidade normalmente, tomando notas, reparando em tudo, ouvindo música, visitando redes sociais, antes mesmo de me propor a escrever sobre as pessoas que fazem o mesmo – ainda que, muitas vezes, como a reportagem me provou, de maneiras diferentes e com conclusões diversificadas.

Karina Fróes

Essa foi uma apuração feita a quatro mãos e resultou em uma rica experiência acerca dos métodos e protocolos jornalísticos. Foram desafios importantes as tarefas de definir conjuntamente o escopo da reportagem, respeitar o recorte temático, conduzir as entrevistas mantendo-se fiel à proposta da pauta e, especialmente, encontar convergências de estilo de texto. Certo é que as diferenças oportunizaram olhares complementares e provocaram reflexões não só sobre como as pessoas usam seu tempo dentro de um ônibus, mas também sobre o fazer jornalístico.