Iniciativa de artista mineiro promove cultura, lazer e oportunidades à população da região do Barreiro na periferia de Belo Horizonte 

Por Diogo Diniz, Izabella Oliveira, Izabella Caixeta, Melissa Souza e Yasmin Lombardi

Mensagem no muro abaixo do viaduto | Foto: Izabella Oliveira

O que se espera encontrar debaixo de um viaduto? “Carros passando, pessoas em situação de rua, sujeira.” Uma galeria de arte não esteve entre as respostas de uma série de pessoas que abordamos pelo campus, e se assustaram com a nossa proposta, um tanto quanto inusitada, de fazermos um passeio por um viaduto.

Muitos adjetivos podem ser usados para descrever uma galeria de arte nesse local. Estranha, incrível e inovadora são alguns deles. Diversos belo-horizontinos nem sequer conhecem ou ouviram falar do Viaduto das Artes, um espaço cultural localizado na Avenida Olinto Meireles, número 45, sob o Viaduto Engenheiro Andrade Pinto, na região do Barreiro.

São cerca de mil metros quadrados, divididos entre ateliê, biblioteca, sala de oficinas, quadra de beach tennis e uma galeria profissional e climatizada, que já recebeu grandes exposições, inclusive réplicas de obras do escultor francês Rodin. No espaço acontecem os mais variados eventos, como oficinas, cursos, palestras, shows e apresentações teatrais para a comunidade.

Mais do que ligar um ponto a outro da cidade, o Viaduto das Artes liga a comunidade do Barreiro à cultura, ao esporte e à arte de uma maneira singular. E se alguém te convidasse para um passeio embaixo desse viaduto, você iria?

Quadros e placa expostos no Viaduto das Artes | Foto: Izabella Oliveira

Como tudo começou 

Belo Horizonte conta com cerca de 30 viadutos espalhados pelas principais avenidas. O Viaduto das Artes, porém, ultrapassou sua finalidade e conseguiu abrir portas para novas possibilidades. Além de se tornar um espaço cultural de formação e permanência, ele mudou a perspectiva e a rotina dos moradores da região do Barreiro.

A história começa com Leandro Gabriel, autor da ideia. Ele conta que desde novo é morador da região, carente de ambientes culturais, e que uma de suas entradas se dá pela via, especialmente para quem vem do centro de Belo Horizonte ou de Contagem.

O idealizador do projeto, Leandro Gabriel, ao lado de Daniel Moreira | Foto: Dasartes

A inspiração para a revitalização desse espaço veio de um projeto anterior feito pelo artista no Parque das Águas, outra região do Barreiro. Ele conta que o parque estava abandonado e que tomou iniciativas para revitalizá-lo. Para sua surpresa, depois de tudo feito, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) o convidou a se retirar.

Em 2006, quando teve que deixar o Parque das Águas, a PBH ofereceu outros locais para serem ocupados. O viaduto era uma das opções, embora os funcionários do órgão imaginassem que ele não teria interesse em ocupá-lo. Diferentemente do que esperavam, Leandro gostou da ideia. “Se a gente conseguisse mudar a realidade debaixo de um viaduto, a gente poderia mudar qualquer realidade, de qualquer lugar”, explicou o criador do projeto. O objetivo era mostrar que a arte poderia transformar não só os lugares, mas também as pessoas.

Leandro diz ter sido complicado no começo, porque ninguém acreditava que a ocupação do local poderia ter sucesso. Além disso, muitos pensavam que, por ele estar interessado logo em um viaduto, ou ele teria dinheiro, ou estaria ganhando dinheiro com isso.

Uma vez mais, quando as pessoas passaram a entender o que havia ali e compreender toda a sua potencialidade, a prefeitura tentou tirá-los, assim como aconteceu no Parque das Águas. Para tentar se proteger dessas mudanças políticas, artistas iniciaram um movimento para alterar a lei de ocupação de áreas sob viadutos, que, até 2012, não era permitida.

Assim, a Lei nº 10443/2012, de 28 de março de 2012, que diz sobre a política municipal de aproveitamento das áreas sob viadutos, estabeleceu como diretriz a utilização desses territórios para a prática de atividades esportivas, culturais e de lazer. E em 2016, o Decreto 16234/2016, concedeu à Associação Viaduto das Artes o uso da construção pelo prazo de 10 anos.

Além dessa boa notícia, outros ventos sopraram a favor deles. Enquanto ocupavam o lugar, foi construído outro viaduto ao lado, o que colaborou para ampliarem o espaço.

O antes e o depois 

Antes de ser ocupado pela população em situação de vulnerabilidade, o local abaixo do Viaduto era um sacolão, que foi desativado. Isso explica, inclusive, as condições elétricas e de encanamento aproveitadas para a posterior construção da galeria.

Após a desativação, houve a aglomeração de pessoas em situação de rua no local, que se tornou uma cracolândia. A criminalidade aumentou e pequenos furtos começaram a surgir, problemas com os quais quem passava por lá tinha que lidar.

Leandro ressalta ter vivenciado alguns dos assaltos, que chegaram inclusive a acontecer na própria galeria, e tentava levar “numa boa”. Mas, posteriormente, os próprios moradores de rua se deslocaram por não se sentirem mais pertencentes ao ambiente. “Aquele lugar que ele queria vir ficar isolado, ficar usando sua droga, queria ficar escondido, acaba não dando mais”, afirma o artista.

O idealizador do projeto conta que o local era inóspito, uma espécie de banheiro a céu aberto, onde não havia como morar. “Eram fezes em cima de fezes. Eles [as pessoas em condição de rua] dormiam em cima. Então só para você ter uma ideia, para poder fazer a limpeza tiveram que jogar um produto que ficou dois dias decantando aqui para que as pessoas pudessem entrar e não houvesse risco de infecção ou de qualquer outra coisa”, relata.

Para a ocupação, a prefeitura realizou um diagnóstico, por meio de assistência social, que colheu os nomes dos indivíduos que dormiam no local, perguntou sobre as famílias deles, questionou se tinham vontade de serem transportados a um abrigo ou voltarem para casa. Alguns tinham mandado de prisão em aberto, por razões como assassinato, e foram presos.

O projeto, entretanto, procura prestar assistência, com auxílio para encontrar as famílias dos indivíduos que querem reconciliar-se com os parentes, ou mesmo integrá-los às ações. A equipe chegou a incluir os moradores remanescentes em iniciativas que desenvolviam juntos, no momento em que estavam mais lúcidos.

Wilson, por exemplo, era um morador de rua e foi contratado para fazer um serviço de pedreiro. Ele passou um tempo morando no andar de cima da galeria, onde ficam as obras de arte e a reserva técnica, conforme conta Daniel Moreira, artista, fotógrafo e coordenador do Viaduto das Artes, parceiro de Leandro.

Wilson é um dos que a equipe tem notícia. Ele conseguiu receber um dinheiro de aposentadoria e de questões trabalhistas, o que o ajudou a comprar uma casinha para morar. Além desse incentivo, o próprio banheiro do ambiente, que possui chuveiro, é aberto ao público e os moradores em situação de rua podem fazer uso quando necessitarem.

O idealizador do Viaduto das Artes afirma que, antes de chegar ao espaço, em 2007, quando escurecia, ninguém mais passava por lá. O medo de transitar por ali era o sentimento da estudante de Educação Física, Acsa Bastos, de 20 anos, ex-moradora do bairro Milionários, na região do Barreiro e que hoje é parte integrante de um dos projetos, como professora de beach tennis. Ela conta que costumava atravessar em grupo, porque “sozinha era meio esquisito”.

Acsa explica que o lugar era pouco frequentado e muito escuro, o que a deixava insegura. “A gente ficava com medo de ter alguma coisa ou de estar acontecendo alguma coisa e a gente passar.”

Jhonatan Moura, 34 anos, também estudante de Educação Física e professor de beach tennis, mora na região desde 2000. Ele acrescenta que o espaço realmente não era visto com bons olhos, que era um lugar de se evitar a transitar por ser perigoso.

Acsa Bastos, à direita, Jhonatan Moura, à esquerda, alunos de Educação Física e professores do projeto, e o professor da UEMG Bruno Costa Teixeira, ao centro | Foto: Yasmin Lombardi

O projeto do qual Acsa e Moura fazem parte oferece aulas do esporte às crianças e aos adolescentes de segunda a sexta-feira. Essa iniciativa é apoiada pelo ViaShopping Barreiro e conta com a participação de estudantes de Educação Física da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), do campus Ibirité, que atuam como professores da modalidade.

Quadra de Beach tennis do Viaduto das Artes | Foto: Yasmin Lombardi

Moura chama atenção para um dos pontos positivos da quadra construída debaixo da ponte. “Até a questão do sol, se fosse uma quadra aberta ali, ficaria difícil para os alunos praticarem às 13h ou às14h”. Ele acrescenta que, talvez, valha refletir se os meninos que participam das aulas já foram à praia, pois aquele pode ser o primeiro contato que tiveram com a areia.

Acsa diz que a quadra instiga a curiosidade das pessoas e que hoje é até mais movimentada. “O pessoal chega aqui ‘ai, eu vi uma quadra lá, acho que vou ir lá no final de semana’, e aí vem aqui conhecer a quadra, o espaço.”

Bruno Costa Teixeira, que atua como professor de Educação Física do campus de Ibirité, da UEMG e também dá aula de beach tennis à comunidade, aponta justamente essa curiosidade como uma das razões para que o público se aproximasse. Ele explica que, quando começaram a implantar o projeto, perceberam que as pessoas passavam pelo entorno, de carro e reduziam a velocidade, olhavam para dentro, queriam saber o que estava acontecendo.

Hoje, no beach tennis, há demanda para criação de turma de adultos e de terceira idade e, aos finais de semana, a quadra é alugada para grupos particulares. O valor arrecadado serve de contribuição para a sustentabilidade financeira do projeto.

Gilmar Lima, 58 anos, comerciante que atua em um estacionamento nas proximidades, diz que, atualmente, o Viaduto sempre realiza eventos e está muito tranquilo. Ele comenta que o pessoal da Vallourec, empresa que possui unidade instalada na região e que financia alguns dos projetos, deixa o carro no estacionamento e, às vezes, frequenta as celebrações.

Gilmar Lima no estacionamento onde trabalha | Foto: Yasmin Lombardi

Os projetos e a comunidade 

O primeiro grande nome a ocupar a galeria do Viaduto das Artes foi o artista Auguste Rodin (1840-1917), com nove réplicas de esculturas adquiridas no Museu de Rodin e autenticadas pelo Louvre. As obras de Paris chegaram ao Barreiro em 2014.

O histórico de exposições teve nomes do universo artístico, como Berna Reale, Marta Neves, Jade Liz, Daniel Pinho, entre muitos outros, além de abrigar as esculturas do próprio idealizador do projeto, Leandro Gabriel.

Esculturas de Leandro Gabriel na área externa do Viaduto das Artes | Foto: Diogo Diniz

A força motriz do Viaduto está na participação e nas necessidades da comunidade do Barreiro. É a partir de demandas populares que os coordenadores buscam novos projetos e novas atividades para compor o ambiente.

Com um planejamento elaborado, os novos programas são submetidos às Leis Estaduais e Federais, como a Lei Estadual de Incentivo ao Esporte (LEI), Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LEIC), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e Lei Rouanet, a fim de captar os financiamentos necessários a sua execução. De acordo com Leandro, “cada projeto tem uma demanda e uma necessidade de captação”. Empresas podem colaborar como investidoras dos programas, como no caso da Vallourec.

Atualmente, o Viaduto das Artes tem como um dos principais projetos o Bolsa Pampulha, iniciativa conjunta com a Prefeitura de Belo Horizonte, que incentiva artistas da região a produzirem suas obras dentro da galeria para serem expostas ao final do ano. Outro projeto é o Favela Hacklab, um laboratório educativo de invenção com formação especializada em arte e tecnologia, que é uma idealização das empresas Gambiologia e ARebeldia.

Exposição interna do Bolsa Pampulha no Viaduto das Artes | Foto: Diogo Diniz

Já as Bordadeiras da Vila Cemig é uma exposição que reúne a história da região do Barreiro contada por meio do bordado. Outra iniciativa de pesquisa em arte, tecnologia e inovação é o Mostra&Lab, desenvolvido pelo Viaduto das Artes dentro das escolas, em parceria com a empresa Vale S.A. O projeto também desenvolve esportes como basquete, breakdance, skate e recebe constantemente os artistas do bairro no espaço.

Em especial, a quadra de beach tennis, que foi inaugurada esse ano, recebe cerca de 100 alunos diariamente para aulas gratuitas, divididos por idade em duas turmas. A primeira, focada na iniciação do esporte, vai dos 9 aos 12 anos; já a segunda, com uma maior especialização nas técnicas e competições, vai dos 12 aos 16 anos.

A equipe tem a expectativa de formar professores de beach tennis e avançar com os alunos nas competições. O patrocínio da quadra é realizado pelo Viashopping Barreiro com o suporte da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), que impulsiona o projeto através de um programa de extensão para os alunos de Educação Física, do campus Ibirité.

Descentralização da cultura 

Fato é que o esporte, o lazer e a arte produzidos fora das regiões centrais das cidades sofrem um grande preconceito por não ocuparem os espaços tradicionais. Com isso, surge a necessidade de criar e ocupar novas áreas para viabilizar tais práticas em ambientes diversos da cidade, seja no Barreiro, seja em outros bairros periféricos.

Esse movimento recente consegue potencializar minorias que compreendem a arte para além de forma de expressão, mas como resistência e meio de acesso à cidadania. Ou, até mesmo, como uma garantia de sustento.

No Brasil, há uma crescente descentralização relacionada às políticas públicas na área cultural que contribui para que pessoas em vulnerabilidade socioeconômica possam se entender como parte da comunidade. Em Belo Horizonte isso só foi possível por meio de algumas estratégias que viabilizaram o acesso à cultura e ao lazer.

Quando se pensa em espaços culturais na capital mineira, há quem lembre do Circuito Liberdade, que conta com 25 equipamentos públicos sob gestão do estado e de parceiros, como o Palácio da Liberdade, o Espaço do Conhecimento UFMG e o Centro Cultural Banco do Brasil. Embora promova a cultura, o acesso para a população de áreas mais afastadas a esse polo é difícil.

Museus, galerias e centros culturais distribuídos no município de Belo Horizonte.

Para o futuro, Leandro e Daniel esperam prosseguir com os projetos e até mesmo criar novos em outras áreas. Porque não também em outros viadutos, afinal não faltariam opções.

E a ideia que fica é, com tantos viadutos pela cidade, imagina se cada um se tornasse uma galeria de arte, uma área de lazer ou um espaço de promoção da cultura?