Apesar dos apagamentos e padronizações enfrentadas pelas necrópoles pós-modernas, o Bonfim, primeiro cemitério de Belo Horizonte, continua sendo um importante local para registros históricos e antropológicos da nossa sociedade ao longo das décadas

Por Regyane Bittencourt e Pedro Oliveira

Desde a pré-história, há evidências arqueológicas de práticas e rituais fúnebres, indicando a preocupação com a finitude da vida. Essa inquietação pode ser expressa por meio dos cuidados e rituais com os nossos mortos. Os ritos variam conforme as religiões e crenças, como a queima do barco que leva o corpo do falecido rumo a Valhalla, palácio com 540 quartos para onde os guerreiros vão viver com Odin, o principal deus das crenças neopagãs germânicas. Há, também, a prática de “beber o defunto”, que consiste em tomar cachaça durante a noite do velório para relembrar “causos” relacionados àquele que se vai, que ainda ocorre nas famílias mais apegadas a essa tradição, principalmente no interior do Brasil. Entre as diversas formas de lidar com a morte, há uma prática fúnebre específica que nos interessa: os epitáfios.  

Entrada principal do Cemitério do Bonfim | Fonte: Marcelina das Graças de Almeida, 2021

Os epitáfios são frases escritas geralmente em placas de mármore ou metal, colocadas sobre túmulos e mausoléus nos cemitérios, com o objetivo de homenagear e/ou elogiar os mortos ali sepultados. O nome dessa prática possui a origem semântica do grego, formada pelo prefixo epi, que designa posição superior, e o radical tafos, que significa túmulo, tipo de construção que costuma estar localizada em cemitérios. Contudo, há uma necrópole em especial que essa reportagem aborda: o Cemitério do Bonfim, primeiro cemitério municipal da capital mineira. 

Antes dessa reportagem, nenhum dos repórteres havia adentrado esse território belo-horizontino, e a nossa primeira visita a esse marco da cidade ocorreu em uma manhã de sábado, de modo despretensioso, como quando respondemos ao vendedor de uma loja “estamos dando só uma olhadinha”. Mas, estando lá, é difícil não ficar impressionado de alguma maneira, seja com a arte tumular, as histórias, as práticas fúnebres ou com tudo isso – e o nosso caso acabou sendo a última opção.

Antes da entrada da edificação, há uma praça circular com uma rotatória. A fachada, construída em formato de arco, é pintada na cor verde e possui uma janela de cada lado em formato de cruz. No topo, outra cruz se apresenta, e, em suas laterais, duas esculturas de piras – vasos em que arde um fogo simbólico – compõem a entrada que divide o lado dos vivos e o lado dos mortos. Há uma inscrição em latim dizendo “Moritvris mortvis”, que pode ser traduzida como “dos que vão morrer, aos mortos”. 

Logo após chegarmos, um ônibus parou no local e um guia acompanhou  os dezenas de turistas na visita ao cemitério. Ao percorrer as quadras do Bonfim, encontramos mais funcionários do que pessoas visitando túmulos. Flores e outros tipos de oferendas também não eram tão frequentes, exceto em lápides famosas como a da Irmã Benigna. Isso ocorreu em abril, e talvez em novembro, no Dia de Finados, ou em datas como dia das mães ou dos pais a situação seja diferente. Observando esse cenário, o questionamento que surgiu foi: como o Bonfim mantém as práticas “tradicionais” de homenagear os mortos nos dias de hoje? Na sociedade contemporânea, altamente tecnológica e digital, ainda há espaço para essas práticas?

A necrópole do Bonfim

No final do século XIX, os sepultamentos em igrejas, um costume de longa data na história brasileira (e, principalmente, mineira), ainda eram recorrentes no Brasil. Mas, nesse período, essa prática foi caindo em desuso, pois, ao longo do tempo, passou a ser considerada ultrapassada e anti-higiênica devido à laicização da cultura e à disseminação do discurso médico. 

Uma característica marcante das igrejas coloniais de Minas Gerais era que elas reuniam os fiéis ao seu redor, em torno não só de questões espirituais como também do cotidiano. No que viria a ser Belo Horizonte, era na Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem que se realizavam os registros da compra e venda de terras, hipotecas e pagamentos de dívidas. Era o local de celebrações da Semana Santa, das procissões, da Queima de Judas, da Quaresma, dos batizados, casamentos… e também da morte. 

Os moradores do Arraial do Curral Del Rei ainda eram enterrados na Matriz quando a construção da capital começou, mas a situação era precária. O historiador Abílio Barreto conta que “a terra cansada já não consumia bem os corpos, de sorte que, quando se abria qualquer sepultura para sepultamento, encontravam-se restos humanos putrefatos, mal decompostos”.

Porém, justamente porque as igrejas tinham essa ligação tão grande com a vida cotidiana da população, a construção de cemitérios fora do âmbito religioso foi adiada o máximo possível em Minas Gerais. Este adiamento refletiu-se no Arraial de Belo Horizonte no final do século XIX, quando a Comissão Construtora, liderada por Aarão Reis, foi incumbida de construir a nova capital mineira. Uma das primeiras medidas tomadas pela comissão foi proibir novos sepultamentos no pátio da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem. 

Abordando a precariedade dos enterramentos realizados no local, o engenheiro Fábio Nunes Leal descreve, em relatório para a Comissão, a antiga igreja: “Na frente fica-lhe um cemitério, fechando um pequeno adro, de 10 metros em quadrado, cuja terra empapassada de óleo humano e entremeada de ossos está acusando a excessiva quantidade de cadáveres que tem recebido, em desmarcada proporção com sua capacidade”.

A partir disso, a ordem era clara: os novos enterros deveriam ocorrer em um cemitério provisório, preparado especialmente para esse fim. O cemitério provisório foi estabelecido pela Comissão Construtora da Nova Capital nos terrenos que hoje ficam nos fundos do Orfanato Santo Antônio, no encontro das atuais Ruas dos Tamoios e São Paulo. Entre seu período de funcionamento, de meados de 1894 até agosto de 1897, foram realizados ali 285 sepultamentos. 

No entanto, um cemitério oficial já estava previsto no regulamento que norteou a construção de Belo Horizonte. O Cemitério do Bonfim, classificado como oitocentista romântico – estilo típico do século XIX – e influenciado pelo Cemitério do Père-Lachaise, em Paris, surge antes do bairro do Bonfim e é sua existência que dá sentido e nome a esse bairro, localizado na região Noroeste da cidade. 

Em fevereiro de 1897, morre a jovem Bertha Adele Teresa de Jaegher, poucos dias antes de completar vinte anos. Dr. Joseph de Jaegher, seu pai, era um engenheiro belga e dono de uma empresa que fornecia o material de ferro usado na construção dos prédios belo-horizontinos. Ele, que veio para Belo Horizonte durante o processo de construção da capital mineira, também trouxe sua família.

Bertha deveria ser enterrada no cemitério provisório, pois o terreno do Bonfim ainda estava sendo preparado, e a região da Lagoinha, onde foi construído, era frequentemente inundada pelo rio próximo ao local. Porém, Dr. Joseph pediu que ela fosse sepultada no cemitério definitivo, mesmo que ele ainda não estivesse pronto. Assim, no dia 8 de fevereiro de 1897, a jovem se tornou a primeira pessoa a ser enterrada no novo cemitério, dez meses antes da inauguração oficial da capital.

A sepultura de Bertha, localizada na quadra 5, destaca-se por estar em uma posição diferente das demais, possivelmente devido a um erro do funcionário responsável pelo sepultamento, que não consultou a 3ª Divisão da Comissão Construtora sobre a orientação correta das sepulturas. Hoje, a sepultura é cercada por um gradil de ferro, com um cipreste ao centro, que oferece sombra ao túmulo. Uma cruz de madeira exibe o nome de Bertha, os anos de seu nascimento (1877) e falecimento (1897), além de uma grinalda metálica desgastada pelo tempo, com inscrições agora ilegíveis.

Túmulo de Bertha | Fonte: Claudio Costa/Revista Encontro

Até 1941, quando foi inaugurado o Cemitério da Saudade, o Bonfim era o único cemitério da capital mineira, e se tornou o local de descanso final para figuras notáveis. Entre os nomes que repousam ali estão o governador Raul Soares, o político Olegário Maciel, o médico e político Silviano Brandão, o governador Milton Campos, a religiosa Irmã Benigna, o sacerdote Padre Eustáquio, a médium Meimei, a Menina Marlene, o jogador de futebol Jair Bala, o prefeito Otacílio Negrão de Lima, a mãe do ex-presidente Juscelino Kubitschek, Júlia Kubitschek, entre muitos outros.

Antes do escrito, a estética  

A arquitetura do Bonfim seguiu o traçado geométrico da cidade, com ruas bem definidas e largas, além de quadras meticulosamente planejadas. Localizado em uma área elevada, afastada do perímetro urbano e delimitada pela Avenida do Contorno, o cemitério foi projetado com quadras específicas para o sepultamento de mulheres, crianças e personalidades. Ao ser construído fora dos limites de Belo Horizonte na época, a intenção da Comissão Construtora da Nova Capital era separar o espaço dos mortos da cidade dos vivos. 

Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte de 1895. | Fonte: Acervo Público Mineiro, 1895

Mapa do Cemitério do Bonfim, com as ruas e pontos principais, acessos, sanitários, necrotério entre outros. | Fonte: Maurício Byla, 2017

Em mais de 100 anos de existência, a necrópole acompanhou as transformações estéticas, sociais e culturais da sociedade, desde sua inauguração até os dias atuais. Até a década de 1930, havia uma grande variedade de túmulos que utilizavam elementos estilísticos do Art Nouveau, refletindo a forte influência francesa na decoração tumular, importada do Rio de Janeiro, São Paulo e do exterior. A partir dos anos 1940, o uso do bronze tornou-se mais comum e marcou um período de massificação e repetição de alegorias, imagens e símbolos na escultura funerária. 

Atualmente, observa-se que o costume de investir em túmulos grandiosos e mausoléus caiu em desuso, sendo substituído, na maioria das vezes, por simples lápides com o nome do falecido e, ocasionalmente, uma cruz no topo. Embora o Bonfim possua em torno de 18 mil jazigos, a administração do cemitério informou que todos eles já foram perpetuados, ou seja, a concessão de uso foi dada a uma determinada pessoa. Também não existem novos jazigos sendo construídos, e nem há previsão disso acontecer. 

Marcelina das Graças de Almeida, historiadora, professora da Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e idealizadora do projeto “Visitas Guiadas ao Cemitério do Bonfim”, conta que os cemitérios físicos estão passando por mudanças significativas. “Cemitérios como o do Bonfim você não vai encontrar mais. O que existe hoje, quando se fala na construção de um cemitério, são os cemitérios parque”, explica. 

Segundo Marcelina, esse modo de organização dos novos cemitérios possui um padrão, e não é possível construir sepulturas e túmulos abertos. “As lápides são padronizadas, por uma questão econômica e para evitar que transformem o local em um ‘parquinho’. Se deixar, as pessoas vão querer ir lá fazer um túmulo, colocar flores, anjinhos… Isso é natural. Então, a tendência dos cemitérios-parque de tornar tudo igual também impede que as pessoas façam suas manifestações específicas em relação à morte”, diz a pesquisadora, que também faz parte da Abec (Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais). 

Em Belo Horizonte, temos como exemplo desses locais o Bosque da Esperança, localizado na zona Norte, o Parque da Colina, na região Oeste, e o Cemitério da Paz, que fica na região Noroeste da cidade. Dos três, apenas o Cemitério da Paz é público, atualmente administrado pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).

A escrita da saudade e seus modos

Se os cemitérios estão sofrendo uma mudança na forma de se organizar espacialmente, as “odes de pesar” também passam por uma transformação. De acordo com a pesquisadora, os escritos fúnebres podem ser entendidos e lidos como a “escrita da saudade”. “É uma escrita que não é pro morto, porque o morto não vai ler. São textos que estão ali nas lápides para que outras pessoas leiam”, destaca.

Em sua tese de doutorado, “Morte, Cultura, Memória – Múltiplas Interseções: uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados nas cidades do Porto e Belo Horizonte”, Marcelina expõe alguns modelos de epitáfios mais comuns no Cemitério do Bonfim. 

1) Padronizados e Eternos: os epitáfios padronizados, como “Descanse em paz” ou “Em memória de”, são os mais comuns. Frases curtas e concisas expressam a dor da perda e o respeito pelo falecido, perpetuando sua lembrança de forma simples e direta. 

2) Elogios em Pedra: em contrapartida, os epitáfios elogiosos enaltecem o falecido, celebrando suas virtudes, conquistas e qualidades. Frases como “Fulano, você era tudo de bom” ou “Foi um pai zeloso” imortalizam as características mais queridas da pessoa amada. 

3) Lições de Vida: alguns epitáfios transcendem a lembrança, transformando-se em ensinamentos para os que restam. Através de frases como “Faça isso, não faça aquilo, acredite nisso, acredite naquilo”, o falecido compartilha sua sabedoria e experiências. 

4) Sentimentais: os epitáfios sentimentais expressam a dor da perda de forma profunda e pessoal. Frases como “Saudades eternas do seu marido” ou “Partiu cedo demais” revelam a imensidão da saudade que os vivos carregam.

5) Poesia heroica: em alguns casos, os epitáfios se elevam à poesia, e utilizam versos e figuras de linguagem para criar homenagens comoventes e memoráveis. Por meio de metáforas, rimas e imagens vívidas, esses textos capturam a essência do falecido.

6) Religiosos: na maior parte dos casos, há uma padronização que coloca inscrições ou passagens bíblicas completas, como “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo. Salmo 23:4”.

Marcelina ressalta que, conforme a sociedade vai mudando, muda-se também a percepção de como escrever um epitáfio, bem como de que maneira deixar esse texto registrado. “Hoje, é muito difícil você encontrar uma família que queira um texto longo, um texto que exalte as características daquela pessoa. A gente vai encontrar textos que são padrões, como ‘Descanse em paz’, às vezes escrito em latim, ou textos mais melosos, mais afetivos. Alguns são pura poesia, mas esses são mais raros de serem encontrados. De modo geral, o mais comum é encontrar textos mais básicos, mais padronizados. Mas ainda é possível ver ali no Bonfim alguns textos que são interessantes”, diz.

Os epitáfios de amanhã

Muda-se o espaço, mudam-se as práticas fúnebres? Em um modelo de cemitério em que tudo é padronizado, até a escrita da saudade é refém do modus operandi eleito como modelo? Para Marcelina, sim. A tendência, de acordo com ela, é que os epitáfios diminuam, principalmente pelo afastamento que as pessoas têm com a morte hoje em dia. 

A professora também faz uma previsão. “Um fenômeno que a gente vai ver mais frequentemente agora são os lugares de memória e a atualização por meios virtuais. Então, às vezes, você vai encontrar espaços de reverenciação de memória específicos”. Um exemplo disso é o site Inumeráveis, memorial dedicado à história das vítimas de Covid-19 no Brasil. Nele, cada pessoa lembrada possui uma escrita da saudade abaixo do seu nome e da sua idade, para ressaltar que não eram apenas estatísticas, e sim pessoas com familiares, amigos e toda uma vida. E é em contextos como esse que as novas tecnologias surgem como ferramentas para lidarmos com o luto e a saudade de forma mais presente e interativa.

As redes sociais, por exemplo, se transformam em espaços de memória virtual, onde perfis de pessoas que faleceram permanecem ativos, recebendo mensagens de carinho e saudade de amigos e familiares. A função de tornar o perfil um memorial, por exemplo, já está disponível nas redes Instagram e Facebook. Essa reinvenção da maneira como lidamos com a morte demonstra a nossa busca incessante por maneiras de eternizar a memória daqueles que amamos, seja através de palavras escritas em pedra, postagens nas redes sociais ou qualquer outra forma que a criatividade e o amor possam imaginar.

No fim das contas, o que importa é encontrarmos maneiras de honrar a vida daqueles que se foram e de manter viva a chama da sua lembrança em nossos corações. Como diz Marcelina, “falar sobre a morte não significa atraí-la”, significa encará-la com sabedoria e aproveitar ao máximo a dádiva da vida que temos.

Entre as diversas formas de lidar com a morte, os epitáfios se destacam como testemunhos eternos gravados em pedra ou metal. Mais do que simples homenagens, esses textos condensam em poucas palavras a essência de uma vida, eternizando memórias, valores e crenças. Com as novas tecnologias, os espaços de memória e recordação passam por modificações e transmutações, se tornando tão válidas quanto os rituais mais enraizados em nossa sociedade. 

No Cemitério do Bonfim, cada epitáfio é um portal para uma história única, um convite à reflexão sobre a vida, a morte e a nossa própria passagem por este mundo, preservando as histórias e as práticas fúnebres que nos antecedem. 

As visitas guiadas no Bonfim

Desde 2012,  Marcelina das Graças de Almeida, coordena o projeto “Visita Guiada ao Cemitério do Bonfim”. No biênio 2016-18, o projeto levou 780 pessoas à Necrópole do Bonfim. As visitas acontecem em grupo, em datas pré-estabelecidas e têm número limitado de vagas para participantes. A cada mês, a visita abordou um tema cemiterial diferente. 

Segundo a assessoria de comunicação da Fundação de Parques Municipais e Zoobotânica (FPMZB), da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, no momento, o projeto encontra-se em fase de renovação contratual. Para mais informações, acesse o instagram do projeto. O Cemitério do Bonfim fica na Rua Bonfim, 1120, no bairro homônimo, e está aberto para visitação das 7h às 17h durante todos os dias da semana. 

Revisão por Carolina Cerqueira e Rafael Silva – Edição: turma Laboratório de Reportagem


* Reportagem produzida na disciplina “Laboratório de Produção de Reportagem”, sob supervisão de Elton Antunes