Dossiê: Outro Olhar
Uma crônica sobre uma palavra estranha que o Shopping Oiapoque inteiro, menos a autora, parece conhecer.
Por Mariana Alencar
De todos os deveres universitários que me foram passados, procurar uma boa história para contar a partir de uma visita ao centro da cidade foi uma das tarefas mais difíceis. Não porque o centro não tenha boas histórias – pois tem, e muitas. E esse grande número de “histórias-boas-pra-contar” é que tornou tudo difícil. Como escolher apenas uma? Como deixar de lado tantas e tantas situações peculiares que só se vive no centro da capital?
Em busca de uma história que se encaixasse perfeitamente para o trabalho, fui até o Shopping Oiapoque, um aglomerado de lojas populares de produtos importados, localizado no “baixo-centro” de Belo Horizonte. Era sábado de manhã, algumas lojas ainda estavam fechadas, outras tinham acabado de abrir.
Existem dois fatos interessantes sobre o Oiapoque, ou Shopping Oi, como alguns gostam de chamar. O primeiro é a sua localização. Nas proximidades da rodoviária e do Shopping Oi, ocorrem, corriqueiramente, pequenos furtos. Essa má fama da região faz com que o Oiapoque não seja muito frequentado por pessoas abonadas. Quando precisa ir até o Oiapoque – comprar algum eletroeletrônico mais barato ou um presente para aquele sobrinho do interior, mas sem gastar muito -, a classe média belorizontina parece armar um esquema para não ser assaltada. Não pode ir de carro, o dinheiro tem que ser contado e deve, no caso das mulheres, ficar escondido junto do cartão de crédito e do celular dentro do sutiã. No caso dos homens, tudo que é de “valor” fica bem escondido no fundo do bolso da calça, aquela mais velhinha, que não revela a atual situação financeira de quem a veste.
A segunda característica peculiar do estabelecimento é a grande quantidade de asiáticos que têm lojas ou trabalham no shopping. Alguns já estão na cidade há anos, outros, a maioria, chegaram há pouco tempo no Brasil. Conversando com um e outro, descobri que todos vieram para cá em busca de melhores condições de vida. São chineses e coreanos que estavam desempregados e que buscam, no Brasil, sustentar a família que ficou no país de origem.
Voltando à minha jornada para encontrar uma-boa-história-para-contar, cheguei cedo ao Oiapoque, levei um caderninho, uma caneta, celular, identidade e o cartão de crédito caso quisesse comprar alguma coisa. Isso tudo numa pequena bolsa para não chamar muita atenção. Chegando lá, comecei a passear pelas lojas, enquanto observava as pessoas e escutava conversas. No tempo em que permaneci no shopping, olhei capinhas para meu celular, DVDs, brinquedos, fantasias, tênis, óculos de sol, bolsas, enfim, tudo que é vendido local. Já cansada, entrei em uma pequena loja de acessórios femininos, em frente a uma loja de jogos de videogame. Fiquei apreciando os objetos, até encontrar um colar que estava querendo. Olhei o preço: R$ 10. Decidi que levaria, e fui pagar.
No balcão da pequena loja, havia uma moça segurando um par de pequenos brincos. A atendente era chinesa. A jovem perguntou para a lojista asiática:
– Moça, aceita cartão?
A atendente, sem olhar para os olhos da cliente, respondeu automaticamente:
-Dosnocicosí.
Sem entender nada, a moça perguntou mais uma vez, pausadamente:
-Eu quero levar esse par de brincos aqui, posso pagar no cartão? Vocês aceitam cartão de débito?
Novamente, a chinesa, de cabeça baixa, respondeu automaticamente:
-Dosnocicosí.
Vendo o que estava acontecendo, resolvi me meter na conversa e ajudar a moça dos brincos que já aparentava estar sem paciência. Me dirigi, então, à chinesa e perguntei:
– Olá, tudo bem? Vocês aceitam cartão? A gente não está entendo o que você está dizendo. Tem outra pessoa com quem podemos conversar?
A chinesa então, pela primeira vez, levantou a cabeça, e olhando para a outra moça e para mim, respondeu em voz alta:
-Já dice! Dos no cico sí!
A moça dos brincos então desistiu de fazer a compra, largou os brincos no balcão e foi embora resmungando algo como “não dá para entender nada do que eles falam”. Permaneci na loja e, ao pagar o colar, dei meu cartão para a chinesa dizendo que iria pagá-lo no débito. Ela passou meu cartão na máquina e pude, então, efetuar a compra sem problemas.
Ao sair da loja, fiquei pensando no que tinha acontecido. A moça dos brincos não conseguiu comprá-los, pois “dosnocicosí”. Já eu, com meu colar de R$ 10, efetuei a compra no cartão sem nenhum problema. Como um mantra, comecei a repetir as palavras da chinesa na minha cabeça: “dosnocicosí”, “dosnocicosí”, “dos no cico si”, “dos no, cico sí”. De tanto repetir, entendi o que tinha acontecido na loja.
Voltei para casa frustrada por não ter conseguido selecionar uma história-boa-para-contar, pois no Oi, vi um pouco de tudo: madames com medo de serem roubadas, briga entre proprietários de lojas, namorado comprando presente para namorada, gente do interior comprando máquina digital e tantas outras situações. Contudo, estava satisfeita por ter um colar novo e por ter aprendido que comprar no cartão no Oiapoque é “dosnocicosí”.