Por Lucas Henrique Gomes de Oliveira
São 18h15. A biblioteca, que fica no segundo andar, está praticamente vazia, a não ser pelos três funcionários e duas alunas. Uma delas está concentrada em sua leitura, na última mesa da longa fileira que começa à direita da entrada. A outra já está de saída, conversando com um dos bibliotecários. O repórter (que a partir de agora será tratado pelo pronome “eu”) entra, pega uma chave, coloca seus pertences em um dos armários e, ao explicitar aos funcionários que passará algum tempo ali à procura de alguém que vá consultar o acervo de DVD’s, recebe uma resposta pouco animadora do coordenador da Biblioteca.
DANIEL RODRIGUES
Pode ficar. Mas eu acho que não vai vir ninguém. É uma resposta que está dentro das expectativas, considerando a conversa que tive com ele na semana anterior.
FLASHBACK… INT. ESCOLA DE BELAS-ARTES DA UFMG. BIBLIOTECA. SALA DO COORDENADOR. NOITE
A sala é bem pequena. Há livros, caixas, pastas e documentos por toda parte, alguns em uma estante, outros sobre mesas. Apenas uma janela aberta nos lembra a proximidade de uma grande avenida. O coordenador da Biblioteca da EBA, Daniel Rodrigues, é muito gentil e tem muita disposição em me passar informações sobre o acervo de DVD’s. Ele conta que a coleção atual é totalmente composta por doações, mas que os professores da escola podem requisitar a compra de DVD’s para uso nas aulas. Apenas quem tem vínculo com a UFMG pode levar os itens para casa e, segundo ele, a demanda dos alunos é baixa.
DANIEL RODRIGUES
Geralmente eles pegam obras menos comerciais, ou que não encontram na internet. A gente inclusive tinha quatro TV’s aqui, para os alunos que quisessem assistir a algum DVD ou VHS, e agora já diminuímos para duas. Provavelmente esse número vai baixar mais, porque a procura é pequena.
Os números vão ao encontro das observações de Daniel. Entre 2010 e o início de maio de 2022, foram pouco mais de 400 empréstimos de “gravações de vídeo”. Esta categoria inclui também as fitas de VHS, e engloba inúmeros subgrupos (como por exemplo “CINEMA – MINAS GERAIS”) que não necessariamente dizem respeito a filmes (no sentido popular da palavra) em DVD. Mesmo assim, com a ausência de informações específicas sobre DVD’s de filmes, o dado chama a atenção porque 400 é um número de referência muito pequeno para um período de mais de uma década em uma biblioteca dentro de uma das principais universidades do país.
RETORNO… INT. ESCOLA DE BELAS-ARTES DA UFMG. BIBLIOTECA. NOITE
Já passa das 19h. Peguei uma dissertação de mestrado de um conhecido para ler enquanto espero, sentado à frente da sala que guarda o acervo, para ver se alguém se encaminha para a estante que abriga os DVD’s. O único vai-e-vem é do coordenador da Biblioteca, que mexe em um computador dentro da sala. A bem da verdade, o movimento na Biblioteca como um todo é bem pequeno, talvez pela hora. Reparo que a estante onde ficam os DVD’s está bloqueada pela outra que guarda os VHS’ s. Esta última é móvel, e pode ser afastada ou aproximada da primeira a partir de uma espécie de timão que fica nela acoplado e precisa ser girado para movimentá-la pelo trilho para a esquerda, liberando um pequeno corredor em frente às prateleiras de DVD’s. O fato de o corredor estar obstruído é um forte indicativo de que os DVD’s não veem mãos humanas por pelo menos algumas horas. Na estante há de tudo. Desde dezenas de filmes brasileiros a clássicos hollywoodianos ou boxes de filmes do Expressionismo Alemão, passando por animações da Disney e cinema sueco. Mas nem sinal de alguém interessado em levar para casa uma destas obras.
FLASHBACK… INT. CENTRO DE ATIVIDADES DIDÁTICAS 2. 2º ANDAR. TARDE
A afirmação do professor Luiz Nazário (docente do Departamento de Fotografia e Cinema da Escola de Belas-Artes da UFMG há mais de duas décadas) de que ele possui uma midiateca com mais de 10 mil itens em casa ainda ecoa em minha cabeça. É por isso que ele não faz uso do acervo de DVD’s da Biblioteca, que, conforme seu relato, é constituído por doações de professores da própria Escola. Quando questionado se incentiva os alunos a pegarem filmes emprestados, o professor fica surpreso ao saber que uma parte expressiva do corpo discente nem mesmo sabe da existência dessa possibilidade.
LUIZ NAZÁRIO
Na verdade eu nunca recomendei aos alunos porque sempre achei que eles soubessem. Bom, se eu vou a uma biblioteca eu quero saber o que tem nela.
Ele conta que, além de ter um acervo pessoal, prefere os DVD’s por várias questões. Seja pela imagem com maior qualidade e a maior diversidade de títulos quando comparados ao streaming, seja pela confiabilidade das questões técnicas (resolução, duração, etc.) e maior estabilidade em relação às plataformas digitais, onde picos de internet podem comprometer a experiência.
LUIZ NAZÁRIO
O Martin Scorsese disse que quando os DVD’s chegaram “eles eram novidades muito boas porque permitiam a quem gostava de cinema levar pra casa os filmes”. Tem uma ideia de posse aí: “Eu tenho o filme do Fellini, então eu não preciso esperar pra entrar no streaming, eu posso ver quando eu quiser”, por exemplo. Eu só não sei se os colecionadores vão conseguir manter esse mercado, porque os DVD’s ficaram muito caros, disponíveis em poucas lojas. No começo as pessoas iam muito às locadoras, e os colecionadores eram um mercado paralelo.
RETORNO… INT. ESCOLA DE BELAS-ARTES DA UFMG. BIBLIOTECA. NOITE
São quase 20h, e a situação segue a mesma. Já avancei bastante na leitura que fazia da dissertação, e agora pego a tese de uma professora com a qual faço uma disciplina. Embora não haja ninguém procurando por filmes, pegar um é bastante simples. Se a pessoa não quiser ir à biblioteca de cara, basta acessar o site do Sistema de Bibliotecas da UFMG (Pergamum) e pesquisar o nome do filme, assinalando “Gravação de Vídeo” e “Arquivo de computador” no campo “Tipo de obra”. Entre 2010 e maio de 2022, alunos de graduação, professores e funcionários lideraram a lista de empréstimos na Biblioteca da EBA. Do ano de 2010 a 2016 os empréstimos se mantiveram abaixo dos 21 itens, com apenas 1 em alguns anos. Em 2017 há o registro de um pico, com quase 130. No próximo ano, quase 90. E, em 2019, mais de 150 empréstimos de gravações de vídeos e arquivos de computador.
A série histórica não parece seguir uma lógica muito bem definida, já que só há correspondência entre um ano com grandes empréstimos e um ano com grande volume de material recebido em 2017. Todos os outros anos em que a Biblioteca recebeu muitos filmes foram no início da década, entre 2010 e 2014, justamente anos de baixo número de empréstimos. E aí veio a pandemia, que puxou os empréstimos novamente para a casa de 1 dígito. Isso na Biblioteca da Escola de Belas-Artes, que sedia um curso de Cinema.
FLASHBACK… INT. BIBLIOTECA CENTRAL DA UFMG. TARDE
O acervo de DVD’s de filmes da Biblioteca Central fica em um canto do Espaço de Leitura, no subsolo da entrada. A estante com as obras está situada atrás de duas poltronas, longe dos livros, um novo local após a pandemia. A maior parte dos DVD’s é de filmes brasileiros, e há algumas obras estadunidenses, tudo mais contemporâneo. Enquanto dou uma olhada no acervo, uma menina (aluna?) sentada na poltrona se vira várias vezes e olha, quase como se estivesse se dando conta, naquele momento, da existência da estante. A bibliotecária responsável pelo espaço, Norma Cardoso, me conta basicamente as mesmas informações que recebi na Escola de Belas-Artes. Coincidentemente, ela me diz que o tema de sua pesquisa de mestrado é a adaptação de livros para o cinema. Talvez por isso, Norma se mostra bastante solícita e inclinada a ajudar.
NORMA CARDOSO
Os empréstimos têm caído muito, principalmente após a pandemia. Esse acervo que a gente tem aqui é majoritariamente composto por doações, mas eu acho difícil a gente continuar recebendo mais material daqui pra frente, porque o próprio consumo de DVD’s está entrando em declínio. Há um tempo atrás a gente até fez uma compra de filmes adaptados de livros, pra ter os dois tipos aqui, e fazíamos exibições, mas tivemos que parar por questões de direitos autorais. Agora em relação aos empréstimos, muitos servidores traziam os filhos pra pegar os DVD’s emprestados durante a pandemia, já que o acervo tem muitos filmes infantis.
Não há dados específicos sobre comercialização de DVD’s de filmes no Brasil desde o ano de 2016, quando a ANCINE (Agência Nacional de Cinema) divulgou o último Informe de Mercado com foco em “Vídeo Doméstico”. Naquela ocasião, o número anual de cópias de DVD’s vendidas ficou em 4.227.751. Uma simples conferência nos Informes de 2015 e 2014 confirma uma tendência de queda. Nestes anos os números de cópias de DVD’s comercializadas foram, respectivamente, 7.270.536 e 14.630.532. Uma queda quase pela metade ano a ano. O número de lançamentos também caiu, indo de 575 em 2014 para 392 em 2015, e chegando aos 311 no ano seguinte. E, na falta dos dados dos anos posteriores, não há nada que indique que a situação tenha mudado. Tanto que, a partir de 2020, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) retirou do cálculo do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) os gastos com locação em compra de DVD’s.
Enquanto saio da Biblioteca Central e manifesto a vontade de voltar para observar por algum tempo o movimento próximo ao acervo de DVD’s, Norma, assim como Daniel Rodrigues, me alerta que será difícil encontrar alguém levando um exemplar de DVD. Os dados que ela me passa mostram um cenário bem diferente daquele encontrado na EBA. Entre 2015 e 2022, foram 1.653 empréstimos da categoria “Gravação de Vídeo”. Quase a metade do período compreendido nos dados da Biblioteca da Belas-Artes, e cerca de quatro vezes o número de empréstimos. Mesmo assim, nas inúmeras vezes em que fui à Biblioteca Central, tanto em 2022 quanto em 2019, nunca vi ninguém pegando um DVD no acervo. Na contramão desta minha observação, os dados mostram que os empréstimos na Biblioteca Central sempre mantiveram um patamar alto, com pelo menos 100 exemplares levados pra casa todo ano, chegando a inacreditáveis 772 gravações de vídeo emprestadas em 2015. Mesmo na pandemia os empréstimos não acabaram, ainda que 2021 tenha registrado apenas 2. Mas 2022 parece promissor. Nos primeiros quatro meses foram 16 empréstimos.
RETORNO…
INT. ESCOLA DE BELAS-ARTES DA UFMG. BIBLIOTECA. NOITE
São exatamente 20h15. Duas horas e várias leituras depois, o acervo de DVD’s de filmes continua no mesmo estado: intocado. Agradeço aos bibliotecários e saio.
Sabrina Garcia, de 27 anos, é estudante do curso de Jornalismo na UFMG. Ela foi uma das duas únicas pessoas que consegui encontrar que já pegaram DVD’s de filmes em uma biblioteca da Universidade. Mais precisamente na Faculdade de Letras. Ela conta que procurou pela mídia física para uma matéria da professora Ana Lúcia Andrade chamada “Autores e Estilos Cinematográficos”. Isso foi no primeiro semestre de 2019. Por coincidência, uma matéria da EBA que eu também já fiz. O filme que ela pegou foi “O Iluminado”, de 1980, dirigido por Stanley Kubrick, além de um documentário sobre o diretor. Sabrina relata que procurou a obra na Biblioteca tanto pela qualidade que atribui aos filmes em DVD quanto pela ausência do título no streaming, que é a modalidade pela qual ela costuma consumir material audiovisual.
SABRINA GARCIA
Anos atrás eu consumia muito DVD porque tinha o aparelho na casa dos meus pais. Mas agora eles também não veem mais, e os computadores nem têm entrada pra DVD, inclusive o meu. Mas eu tive uma relação muito próxima com os DVD’s na infância e na adolescência. Eu me lembro de ir na locadora, e de disputar com o meu irmão em casa pra ver quem ia assistir ao quê. Uma coisa que os DVD’s têm que eu sinto falta são os extras, com entrevista, bastidores e outras coisas.
Embora essa relação tenha sido muito forte, Sabrina diz que não voltou a pegar DVD’s nas bibliotecas após a pandemia, e fica surpresa e animada quando eu conto da possibilidade de assistir a filmes, inclusive VHS, na TV da Escola de Belas-Artes. Quando questionada se segue indo ao cinema, ela afirma que vai às vezes, dependendo do filme, do preço do ingresso e da disponibilidade.
RETORNO…
EXT. ESCOLA DE BELAS-ARTES DA UFMG. BIBLIOTECA. NOITE
Na saída da Biblioteca da EBA, comecei a me lembrar de quantas vezes já peguei DVD’s não só naquele local, mas também na Biblioteca Central. Obras-primas do cinema, como “Os pássaros”, de Alfred Hitchcock, “2001: uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick, “O silêncio dos inocentes”, de Jonathan Demme, “Matrix”, das irmãs Wachowski, “Roma, cidade aberta”, de Roberto Rossellini, “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, “Morangos silvestres”, de Ingmar Bergman, dentre tantos outros.
Sem muito dinheiro para ir ao cinema ou assinar canais de streaming nos idos de 2019, quando entrei na faculdade, os DVD’s da UFMG eram minha principal forma de acesso a obras canônicas da sétima arte, enquanto descobria meu amor pelo Cinema. Até tinha conexão de internet, mas meu celular não conservava a bateria por muito tempo, e eu ainda não tinha um notebook onde pudesse ver filmes. Agora, cerca de três anos depois, continuo exercitando este hábito, mais como um certo ritual do que por outra razão. Pegar filmes emprestados me permite sentir a obra nas mãos, separar um tempo para assistir ao filme sem interrupção, escapar da efemeridade do digital.
É como ter contato com cápsulas de um tempo distante. Está aí. Tempo. Uma palavra fundamental para compreender o cerne dos empréstimos de DVD’s nas bibliotecas da UFMG. Depois de duas longas horas e ninguém à vista e ao longo de vários dias ou anos até (se for contabilizar minha relação pessoal pregressa com os acervos de filmes das bibliotecas), percebo que aquela sala na Escola de Belas-Artes ou o canto na Biblioteca Central não são apenas espaços separados, estantes próprias para outros suportes midiáticos. São quase mundos de ficção científica, que ensejam dramas, animação, suspense. Um tempo diverso que, por menos habitado que possa ser, sempre estará lá, apenas à espera daquele(a) próximo(a) viajante que vai se aventurar entre prateleiras e mais prateleiras de história(s).