Membras da comunidade acadêmica relatam receio de assédio; mesmo sem norma formal, empresa de serviços orienta que mulheres não trabalhem na madrugada
Por Ana Carolina Vasconcelos e Daniel Santos

“O maior medo é de assédio”. A frase é de uma trabalhadora terceirizada do turno noturno de uma das cantinas localizadas nos prédios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Normalmente, ela, que prefere não se identificar por receio de represálias, sai do campus Pampulha da UFMG por volta das 21h30 e o motivo do sentimento de insegurança é a falta de iluminação adequada no trajeto percorrido até a portaria da instituição.
“É tudo muito escuro. Em alguns pontos até tem iluminação, mas, em boa parte do tempo, é difícil até de enxergar o chão. O pior é que nesse horário o caminho ainda não é muito movimentado”, relata.
O tema é frequentemente abordado especialmente pelas estudantes da universidade, que já há alguns anos denunciam a precariedade da iluminação do campus e os impactos desse contexto. Porém, além das discentes, outras mulheres compõem a comunidade acadêmica e, assim como elas, reclamam da falta de segurança decorrente da baixa quantidade de pontos de luz espalhados e em funcionamento na UFMG.
“E a gente não pode reclamar, né? Tem muitas pessoas que queriam ter um emprego e não têm. Mas seria muito melhor se a gente pudesse se sentir mais seguras”, defende a trabalhadora terceirizada.
O tempo que ela gasta para percorrer andando o caminho entre a unidade acadêmica onde trabalha e o portão principal da instituição, que fica de frente para a avenida Antônio Carlos, é de cerca de 20 minutos. Mesmo sem conseguir calcular exatamente, em termos numéricos, o período em que caminha com baixa iluminação, ela destaca pontos do trajeto que chamam a atenção.
“Até mesmo na rua principal da universidade [avenida Reitor Mendes Pimentel] é ruim a iluminação. Tem outros lugares também, como o morro que você desce da Faculdade de Educação até a Unidade Municipal de Educação Infantil. É muito escuro mesmo”, completa.
Uma outra trabalhadora terceirizada, que atua durante o período diurno na portaria de um dos prédios do campus e que também prefere não se identificar, ao ser perguntada pela reportagem se sentiria insegurança em desempenhar suas funções no turno noturno, é enfática ao responder que sim.
“Me sentiria sim. Algumas partes são muito escuras. Acho, inclusive, que nas portarias as mulheres não trabalham à noite. Eu mesma só trabalho até às 19h”, comentou.
Ao ser questionada sobre os motivos do receio, ela reforçou o medo da outra trabalhadora. “Tudo, né? Mas acho que assédio é o medo de qualquer mulher.”
‘Começou-se a tomar mais cuidado’
Os trabalhadores e as trabalhadoras terceirizadas que atuam nas portarias dos prédios da UFMG são vinculadas à Village Serviços, que oferece trabalhos de portaria, recepção, zeladoria, limpeza e apoio administrativo.
Diante do relato de que, durante a noite, não há mulheres desempenhando papel de segurança nas unidades acadêmicas, a reportagem entrou em contato com a empresa para saber se há algum motivo específico.
Segundo Roberto Fernandes de Andrade, representante da empresa, não existe uma norma formal entre a Village Serviços e a universidade que impeça as trabalhadoras vinculadas à terceirizada de desempenharem suas funções à noite. Mas ele explica que há um “acordo tácito” de que mulheres não devem trabalhar no turno noturno, justamente pela questão da segurança.
“Devido a alguns fatos passados sobre mulheres sumirem no campus, já houveram também algumas fatalidades, a universidade nos pede para não colocar nenhuma mulher na portaria trabalhando à noite. Todas elas trabalham diuturnamente, porque depois das 23h, os prédios fecham e elas ficariam sozinhas”, explica.
Andrade afirma que as mulheres não ficam sozinhas dentro dos prédios na madrugada: “Seria inadequado. No noturno, são 100% homens nas portarias, não há nenhuma mulher que trabalhe, que presta serviço, pelo menos nas portarias, por questão de segurança pessoal delas. Logo quando a gente assumiu o contrato, a universidade reforçou esse pedido”.
O representante da Village Serviços, além de destacar mais de uma vez que não se trata de uma norma, mas de um pedido, ainda relatou um caso antigo de desaparecimento e morte de uma trabalhadora no campus Pampulha da UFMG.
“Como já houve no ano passado sumiço de uma servidora e depois encontraram a ossada dela na mata da UFMG há um tempo atrás, começou-se a tomar mais cuidado com servidores, docentes, discentes e também com as terceirizadas. E uma dessas formas foi não deixar as meninas trabalhando sozinhas à noite”, explica.
Este relato refere-se ao caso de Elizabeth de Souza Pinheiro, secretária-geral do Instituto de Ciências Exatas (ICex), que tinha 38 anos quando desapareceu em 1999. Sua ossada foi encontrada na mata da UFMG seis anos depois, em 2005, identificada por um exame de arcada dentária.
Roberto Fernandes de Andrade ainda destaca que, até às 22h, há mulheres vinculadas à empresa trabalhando na universidade. Porém, segundo o relato das trabalhadoras, nesse horário já é possível perceber os impactos da precariedade da iluminação das ruas da UFMG.
Relação entre iluminação e segurança
Ao redor de todo o mundo, estudos e especialistas alertam sobre a necessidade de iluminação adequada nas ruas e equipamentos públicos para ampliar a segurança da população feminina, reduzindo o assédio, mas também os índices de agressões sexuais e assaltos, por exemplo.
Uma pesquisa, intitulada “Meu Ponto Seguro: como melhorar a vida das mulheres que caminham”, realizada pelo Instituto Think Olga, ouviu mais de 400 mulheres, de 25 estados brasileiros e 86 municípios diferentes, com faixa etária entre 10 e 69 anos, e observou dados sobre o tema.
O levantamento indicou que 86% das mulheres têm medo de sair nas ruas. Além disso, ao considerar o trajeto percorrido até pontos de ônibus onde a iluminação é avaliada como inadequada, 55% das respondentes do estudo disseram que se sentem inseguras.
A pesquisa também apontou que, além do medo, a baixa iluminação gera sentimentos de insegurança e constrangimento entre o público femino. Atualmente, o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking mundial de Violência Contra a Mulher das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas (ONU).
A pesquisa Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade, realizada pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, que entrevistou quase 1,2 mil mulheres, identificou que 77% delas acham os espaços públicos mais perigosos para elas do que para os homens. Os dados reforçam que a sensação de insegurança percebida pelas trabalhadoras terceirizadas da UFMG não está isolada.
Uma pesquisa desenvolvida por Victória Loureiro Cardoso e Sílvia de Alencar Rennó, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), demonstrou que é preciso planejar os espaços de forma a favorecer a relação positiva entre as mulheres e os ambientes públicos e, ainda que não seja o único determinante, a iluminação é central.
“O espaço urbano pode tanto favorecer uma relação de medo entre mulheres e cidade, quanto proporcionar-lhes experiências mais positivas. Percebe-se que é necessário planejar as cidades não apenas segundo princípios técnicos e quantitativos, mas também a partir das percepções dos usuários. Apesar de não determinar comportamentos, a iluminação possui grande importância sobre a percepção espacial dos indivíduos e, portanto, sobre a relação e interação entre homem-ambiente”, diz a conclusão do artigo publicado pelos pesquisadores.
A trabalhadora terceirizada da cantina da UFMG finaliza reforçando essa perspectiva. “Meu dia a dia seria muito melhor se, ao voltar para casa, eu não precisasse sentir medo por falta de luz no caminho da universidade.”
O que diz a universidade?
A reportagem procurou a UFMG para comentar sobre o assunto, mas não recebeu respostas até a data de publicação da matéria. O espaço segue aberto para manifestações.
*Por serem trabalhadoras terceirizadas com vínculo ativo com a UFMG, a reportagem optou por respeitar o pedido de manter o anonimato.
**Reportagem produzida na disciplina de “Laboratório de produção de reportagem” sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos.