O limite entre a ocupação do espaço pelos estudantes e a conservação do patrimônio público cria um impasse para a realização de festas em um dos prédios da UFMG.

Por: Eduarda Mara e Maria Eduarda Dias

Na manhã seguinte, o cenário é outro. Os corredores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) estão silenciosos, exceto pelo barulho das vassouras raspando latas vazias de bebidas alcoólicas deixadas no local e pelos baldes de água jogados no chão. O cheiro de bebida ainda permeia o ar enquanto os funcionários de limpeza percorrem a entrada do prédio recolhendo os restos de uma noite agitada. Horas antes, o mesmo espaço vibrava. Música alta, estudantes dançando e ocupando o espaço de um dos prédios que, há décadas, é símbolo de efervescência cultural, política e, atualmente, alvo de tensões. Afinal, até que ponto essas festas representam, de fato, a ocupação do espaço pelos estudantes? Qual o limite entre o uso coletivo e a preservação do patrimônio público?

Localizada no Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Fafich é um dos espaços mais emblemáticos da universidade. Isso porque é marcado por forte presença estudantil, debates políticos e forte vida cultural. Com o passar dos anos, as festas nesse prédio se consolidaram como expressão de resistência e ocupação do espaço universitário. Contudo, com o crescimento desses eventos, também aumentou a preocupação com os impactos no prédio e no convívio com outras atividades acadêmicas. Assim, o que na perspectiva de algumas pessoas é uma universidade viva, para outras é depredação do patrimônio.

 

As festas universitárias como prática histórica e cultural

As festas realizadas na universidade não são uma preocupação nova para a administração, como a “Na tora”, uma das maiores comemorações que acontece no campus Pampulha. Segundo o Boletim interno 1320, publicado em 2001, está proibida a realização de festas de grande porte nas unidades acadêmicas e administrativas da universidade. A resolução, respaldada pelo então reitor Francisco César de Sá Barreto, estabelecia que somente entidades representativas, como o Diretório Central dos Estudantes (DCE), o Diretório Acadêmico (DA) e os sindicatos, poderiam realizar essas comemorações, mas era necessário solicitar autorização com antecedência, sabendo que está proibida a venda de bebidas destiladas e embalagens de vidro e que devem se atentar para a segurança, limpeza e a infraestrutura. 

Sendo este boletim um documento de circulação interna e sem muito peso jurídico, o reitor Clélio Campolina Diniz precisou tornar as normas sobre as festas dentro do campus algo mais burocrático. Por isso, em 2013, estabelece a PORTARIA Nº 153, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2013, que surgiu justamente a partir dessa preocupação com a segurança dos participantes, o impacto sonoro nas atividades acadêmicas e a preservação do patrimônio público.

Apesar da clareza dessas regras, a prática segue outro caminho. A Fafich continua sendo palco de festas e encontros informais, uma vez que, para muitos estudantes, ocupar esse espaço é parte da vivência universitária. Para além dessa perspectiva, as festas neste local fazem parte de uma cultura construída há décadas. 

“Eu acho que as coisas passam do limite quando começa a atrapalhar as aulas. Como estudava no noturno, lembro que quase toda quinta-feira tinha festa e às vezes o som atrapalhava muito”, afirma Bruna Diana, uma ex-estudante da Fafich. Para ela, é necessário refletir até que ponto as festas deixam de ser comemorações tradicionais e viram depredação do patrimônio.“ Entendo que é algo tradicional, que não tem como parar, mas acho que precisa ser refletido até que ponto o que está sendo feito lá é de uma forma saudável, porque a gente está falando de um patrimônio que é de todo mundo”, completa.

Ocupação legítima X Preservação do espaço

Mas a permanência também impõe limites. O prédio da Fafich, que foi transferido para o campus Pampulha em 1990, não foi projetado para grandes eventos. Por isso, as maiores festas normalmente acontecem na Arena da Fafich, já que dentro do prédio as comemorações acabam mais cedo com a retirada dos alunos no horário de fechamento, às 23h. Além disso, os resíduos deixados após as festas e o ruído excessivo são os sinais de depredação do patrimônio público — e de um dilema antigo. 

A preocupação é ainda mais evidente com a estrutura física da unidade acadêmica, uma vez que já demonstra sinais de desgaste com o passar dos anos. Em salas de aula e laboratórios próximos à Arena, professores relatam dificuldade em manter as atividades acadêmicas durante as festas com suas caixas de som potentes e o ruído de conversas entre os estudantes. “Eu não consegui dar aula, porque toda movimentação acontece no CA”, disse Eduardo Antonio de Jesus, um dos professores do departamento de Comunicação e Coordenador do curso de Relações Públicas. De acordo com ele, as festas começam pela movimentação dos alunos nos Centros Acadêmicos. “Quando eu comecei a dar aula fui lá e pedi para abaixar porque a música estava muito alta, mas não tinha jeito porque o movimento era de festa. Na hora que eu estava saindo o menino falou assim ‘nem sabia que tinha aula aqui à noite’”, finaliza. 

Mas esse desgaste também tem um efeito simbólico e institucional. Existe um impacto relacionado à imagem da universidade, ou seja, ao modo como a universidade é vista pelo público externo e interno. Quando o espaço se deteriora, a percepção de abandono pode se espalhar. Estudantes e funcionários relatam que a poluição dos banheiros, o acúmulo de lixo e a dificuldade de circulação em dias de festa reforçam essa ideia de desordem, que, muitas vezes, compromete a convivência entre os grupos que dividem o prédio. 

Além disso, há uma preocupação com a falta de responsabilização clara após e durante os eventos. Apesar de existirem as normas institucionais que exigem a identificação dos organizadores e o protocolo prévio para o uso dos espaços, na maioria das vezes, não há um responsável facilmente identificável quando acontece alguma intercorrência, como depredações, sujeira excessiva ou até mesmo conflitos entre os estudantes. “Quando alguma coisa dá errado, ninguém sabe quem organizou, quem autorizou ou quem responde responde por isso. E, no final, a conta cai sobre a estrutura da universidade e sobre os trabalhadores que garantem o funcionamento do prédio”, afirma um professor da unidade acadêmica, que não quis se identificar. Para ele, o problema não está nas festas em si, mas sim na forma como elas são realizadas. “A Fafich virou um espaço de experimentação cultural, o que é ótimo, mas isso precisa vir junto com a responsabilidade coletiva”. Esse tipo de crítica perpassa os diferentes setores na unidade e alguns docentes relatam a dificuldade de aplicar até mesmo as medidas corretivas. Isso alimenta uma sensação de impunidade e desorganização, que prejudica a relação entre os setores administrativos, acadêmicos e estudantis. 

 

A dimensão cotidiana e invisibilizada desses eventos

A realização de festas na Fafich não afeta somente a rotina universitária ou a imagem da instituição, mas também possui impactos diretos no trabalho de técnicos e equipes terceirizadas. Esses trabalhadores lidam com as consequências materiais diretas da ocupação do espaço, que, muitas vezes, acontece sem aviso prévio ou planejamento da estrutura de apoio. 

Em conversa informal com a reportagem, um dos porteiros do campus — que preferiu não se identificar — relatou os desafios enfrentados pela equipe de segurança durante as festas universitárias. Segundo ele, os eventos costumam ocorrer sem reforço de equipe, o que sobrecarrega os profissionais responsáveis pelo turno noturno. “Recebemos muitos relatos de furtos, alunos passando mal por conta do excesso de bebida… Às vezes temos que acionar o SAMU, ficamos muito preocupados com a situação e tentando ajudar”, contou. O porteiro também relatou episódios recorrentes de conflitos com estudantes que tentam acessar os prédios após o horário de fechamento. “Alguns, já bastante alcoolizados, insistem em dormir dentro dos CAs. A discussão com a portaria é quase certa nessas noites”, afirmou. Apesar do sigilo em torno da divulgação das festas, ele garante que os funcionários costumam saber com antecedência quando haverá um evento, “pelo movimento atípico e pela preparação no ambiente”. Nesses dias, a diretoria permite o acesso aos prédios apenas até às 20h30, restringindo, a partir de então, a entrada e liberando apenas saídas.

Outro reflexo das festas é sentido pelas equipes de limpeza. Durante a noite, apenas uma funcionária inicia os trabalhos de higienização, mas a parte pesada da limpeza fica para o turno da manhã seguinte. “Como o time já é reduzido, o trabalho acaba sendo pesado”, explicou o porteiro, acrescentando que, em algumas ocasiões, um reforço extra é contratado, mas geralmente chega apenas após o início da faxina. Ainda de acordo com o relato, o cenário era mais intenso antes da pandemia, quando a frequência e o tamanho das festas eram significativamente maiores.

“Sou a favor das festas no campus, sim. Acho que os alunos têm direito de ocupar esse espaço também como lazer”, afirma Olivia Babetto, uma estudante do departamento de Comunicação da Fafich. Para ela é necessário ter um equilíbrio. “Mas, ao mesmo tempo, penso nos funcionários porque quando a bagunça cresce e o ambiente fica arriscado, realmente complica. Entra muita gente de fora e nem sempre dá pra confiar no clima que se forma”.

A pandemia e a redução de eventos

A pandemia também marcou um ponto de virada na realização de eventos dentro da universidade. Com a suspensão das atividades presenciais, houve uma natural desmobilização estudantil e um esvaziamento das festas, reflexo da redução da convivência entre os alunos. Mesmo com o retorno gradual das aulas presenciais, as restrições sanitárias seguiram impactando a frequência desses eventos.

Outro episódio que acirrou a tensão entre docentes e discentes foi a realização do “Na tora”, em 2022, que reuniu mais de 8 mil pessoas no campus. O evento gerou forte repercussão interna e levou à proibição total de festas na universidade, além de motivar a revisão dos termos de uso, que regulamenta o uso dos espaços acadêmicos.

 

Cenário Contemporâneo

As recentes tensões entre a gestão universitária e os estudantes ficaram evidentes com essa revisão da Portaria que regula o uso dos espaços acadêmicos. Apesar das novas regras, as festas seguem ocorrendo com frequência, especialmente na Fafich, onde o debate sobre consumo e venda de bebidas alcoólicas chegou às instâncias superiores. Com a reformulação do termo de concessão das salas, os Centros Acadêmicos passaram a ter mais responsabilidades sobre os eventos, o que foi interpretado por muitos como uma tentativa de restringir a autonomia estudantil.

Em resposta, o Centro Acadêmico de Psicologia (CAPSI) promoveu uma ocupação de dois meses, articulando reuniões com a reitoria, apoio político e mobilização nas redes sociais. O protesto terminou em 16 de dezembro, com mudanças consideradas mínimas, segundo um professor envolvido nas negociações. Ainda assim, o movimento estudantil comemorou a retomada do espaço como uma vitória simbólica.

A venda de bebidas, uma das principais fontes de arrecadação dos Centros Acadêmicos (CAs) e dos DAs, foi um dos pontos centrais da mudança. A discussão ganhou força após um caso de estupro no Instituto de Ciências Exatas (ICEx), que acendeu o alerta sobre a segurança nos campi. Hoje, as festas são divulgadas de forma mais discreta, mas continuam sendo vistas por seus organizadores como espaços de integração e ocupação democrática de prédios que, segundo eles, vêm sendo negligenciados pela administração.

 

Divulgação das festas

Como iniciativa estudantil, as festas universitárias são organizadas pelos próprios alunos, que definem horários, temas e atrações — muitas vezes com colegas DJs que levam seus próprios equipamentos. A divulgação acontece de forma descentralizada e informal, principalmente pelas redes sociais. No Instagram, os perfis divulgam os convites via stories, com duração de 24 horas. Já no WhatsApp, circulam mensagens de visualização única, enviadas dias antes dos eventos. Essa dinâmica, aliada ao boca a boca no campus, garante rápida disseminação das informações tanto entre estudantes quanto entre pessoas de fora da comunidade acadêmica.

Com o aumento do público, especialmente após o episódio do “Na Tora”, a universidade passou a adotar medidas de controle mais rígidas. Em algumas festas, os seguranças exigem a apresentação da carteirinha da UFMG como forma de restringir o acesso e conter aglomerações, tentando garantir a segurança interna dos espaços.

Mas a questão que fica é: será que é possível ocupar e preservar ao mesmo tempo? 

**Reportagem produzida na disciplina de “Laboratório de produção de reportagem” sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos.