Acompanhamos uma manhã de distribuição de livros Hare Krishna no centro de BH. Confira também imagens do Ratha Yatra, maior festival de cultura indiana na cidade.
Marcamos de nos encontrar com Benjamin Ishvara em frente ao Shopping Cidade, na Rua Rio de Janeiro, nas primeiras horas da manhã. Pela rua movimentada, passou uma moça com dois copos de refrigerante equilibrando um copo imenso de açaí, como as secretárias de filmes americanos carregando cafés. Um senhor desceu a rampa de acesso ao shopping com destreza em uma cadeira de rodas elétrica e uma senhora nos perguntou se sabíamos como chegar à Rua dos Caetés (não conseguimos ajudar). A variedade cotidiana do centro da cidade. Quando Benjamin chegou, desculpou-se pelos minutos de atraso – aproveitara a Black Friday para passar na loja da Adidas, justificou-se, mostrando a sacola azul.
Além da sacola da Adidas, ele carregava nas costas uma mochila com os livros sobre a cultura Hare Krishna que distribui durante a semana pelo centro de Belo Horizonte. São volumes desde a “bíblia” Hare Krishna, o Bhagavad Gítá a livros finos sobre karma e vegetarianismo. A palavra “distribuição” é importante, já que Benjamin não encara o trabalho como “venda”.
Fomos até a praça de alimentação do shopping para conversarmos. Seria uma visão mais curiosa se Benjamin estivesse vestido como esperávamos inicialmente, com o hábito leve e laranja que o senso comum evoca quando o assunto é Hare Krishna. Esse tipo de traje é apenas para os monges, ele explicou. Foi uma roupa que o próprio Benjamin usou durante três anos, quando experimentou a vida monástica. Hoje, faz a distribuição dos livros em roupas mais informais: uma bermuda clara, camisa branca com discretos motivos indianos costurados e um chinelo em que se vê a bandeira do Brasil. Ao redor do pescoço, um colar de coco disputava espaço com uma correntinha de metal.
Também chama a atenção o par de tatuagens nos pulsos do rapaz de 28 anos. Em sânscrito, tatuou Krishna Mohini. Este é o nome da filha de cinco anos de Benjamin, que vive com a esposa dele em São Paulo. É também como se chama a parceira espiritual de Krishna. Durante a conversa, surgiram vários termos assim, que achamos impossíveis de soletrar a princípio, mas com os quais Benjamin está familiarizado desde a infância.
Ele foi criado em uma comunidade Hare Krishna em Lima, no Peru, onde também recebeu educação acadêmica e espiritual até metade da adolescência. Foi a primeira geração da família a receber uma criação assim. Seus próprios pais só aderiram à crença depois dos 30 anos. Na época, experimentavam o vegetarianismo, mas só essa prática não bastava para a realização espiritual dos dois.
O equivalente ao Ensino Médio brasileiro Benjamin cursou em um colégio comum. Nesta fase, ele provou um pouco da vida de um adolescente qualquer. Até fumou maconha algumas poucas vezes, nos contou, sem pestanejar. Falando desse momento da vida, Benjamin não recorreu a uma divisão entre “o mundo lá fora” e o “mundo Hare Krishna”. São o mesmo mundo, segundo ele. Hare Krishna é uma forma de enxergá-lo e amenizar o sofrimento da vida na Terra. Uma sabedoria que atende desde às pessoas mais carentes a bilionários como Alfred Ford, o dono da fábrica de carros e notório doador para causas relacionadas ao Hare Krishna.
Depois do colégio, ele passou um semestre em uma faculdade de Engenharia de Sistemas, mas não foi nesse tipo de formação que enxergou a realização pessoal. É nas viagens pelo mundo como missionário Hare Krishna que ele tem se encontrado. Já fez parada em cidades de toda a América do Sul para distribuir livros. Naquelas onde existe um templo, ele recebe moradia. Onde não há, sua casa pode ser desde um hotel confortável aos campings mais humildes à beira de um rio.
A renda com que mantém a família que formou no Brasil, onde está há sete anos, é fruto das aulas de música e espanhol que ele dá – e em breve também de yoga, deseja. A distribuição dos livros ajuda nas constantes viagens. Quem produz os volumes é a Editora BBT, The Bhaktivedanta Book Trust, anunciada no site oficial como a maior editora do mundo de livros sobre Hare Krishna.
Benjamin adquire os livros a preço de custo na editora, e é também esse o valor que precisa devolver a ela após a distribuição dos volumes. Por isso ele não chama de venda o anúncio que faz nas ruas. Quem para diante da abordagem do peruano – muito delicada, geralmente iniciada com um simples estender de um livro – pode contribuir com o valor que quiser além do preço da impressão do material. Esse dinheiro a mais fica com Benjamin. Há livros cujo valor da produção é bem baixo, menos de cinco reais. Outros, os mais grossos e ilustrados a cores, como o Bhagavad Gítá, saem a pouco mais de vinte.
Benjamin considera o material que distribui muito mais do que literatura, mas uma ajuda espiritual. E não apenas uma ajuda dele para o mundo, mas dele pra si próprio. Ele não passa mais de quatro horas por dia distribuindo os livros, mas nessas poucas horas consegue abordar dezenas, talvez centenas de pessoas. Não são tantas as que realmente param para escutá-lo, observamos durante algum tempo, enquanto o assistíamos trabalhar em frente ao Shopping Cidade, mas as que se dispõem se despedem levando ao menos um sorriso, se não um livro.
Há muitas pessoas que param, ouvem com interesse o que Benjamin tem a dizer, mas desanimam de levar um livro quando descobrem que precisam contribuir ao menos com o preço da impressão. É um grupo diverso o que se detém para conversar com ele: de uma idosa que caminhava sozinha pelo centro carregando uma carteira de crochê (desistiu de levar os livros) a grupos de adolescentes saindo da aula (levaram dois volumes).
Após o fim da distribuição diária dos livros, ele retorna para o lugar que tem sido seu lar em Belo Horizonte, o Centro de Estudos Védicos e Bhakti Yoga Hare Krishna, no bairro Prado. Lá, ele é responsável pelo almoço e dá aulas de música, área em que pretende investir o trabalho daqui para a frente.
Na despedida, ele nos entregou um cartão do templo, o qual nos convidou a visitar sempre que quisermos, especialmente aos domingos, quando há música e dança de celebração no final da tarde, e nos festivais mensais de pizza vegetariana e vegana. Não houve traços de pregação em nenhum dos convites, somente a cortesia alegre com que ele recebe as pessoas com quem conversa e a vida.
Festa nas ruas
Não é apenas solitariamente, na forma da distribuição de livros, que a cultura Hare Krishna ganha as ruas de Belo Horizonte. Desde 2008, a Avenida Afonso Pena assiste a um desfile indiano anualmente. É o Ratha Yatra, festival de cultura indiana que acontece em cidades do mundo inteiro. Na própria Índia, ele costuma reunir cerca de 8 milhões de pessoas.
No desfile, uma carruagem colorida leva imagens de deidades do hinduísmo. Ela segue uma procissão vibrante de música e dança, até desaguar no Parque Municipal para uma tarde de mais festa gratuita. Este ano, o festival aconteceu no dia 22 de agosto. Participamos da festa e registramos de perto a alegria da celebração.
Entenda melhor
ISCKON: Hare Krishna não é bem uma religião. A Consciência Krishna, segundo a Enciclopédia Britânica, já existe desde o século XVI. Mas Hare Krishna em si é um desmembramento ocidental do hinduísmo, especificamente da sabedoria bhakti-yoga, o yoga devocional. O nome oficial do movimento é The International Society for Krishna Consciousness (A Sociedade Internacional para a Consciência Krishna, em tradução livre), também conhecida como ISKCON. Esta sociedade foi fundada em Nova York em 1966. Quem a criou foi A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda, ou Srila Prabhupada, referido pelos membros da ISKCON como Sua Divina Graça. Nascido na Índia em 1896, ele foi orientado por seu mestre em bhakti-yoga para difundir a sabedoria da prática no Ocidente. Já nos Estados Unidos, em 1972 ele criou a The Bhaktivedanta Book Trust, que permanece até hoje como a principal editora de publicações relacionadas ao Hare Krishna e funciona com filiais em todas as partes do mundo.
O nome: O nome remete a um mantra de devoção ao deus hindu Krishna: “Hare Krishna, Hare Krishna/ Krishna Krishna, Hare Hare/ Hare Rama, Hare Rama/ Rama Rama, Hare Hare”. É difícil fazer uma tradução literal das palavras, mas este mantra funciona como uma mensagem enviada à energia de Krishna e pretende enlevar o espírito de quem o entoa.
Influências: São vários os elementos caros à sociedade Hare Krishna que foram incorporados ao imaginário e ao cotidiano ocidental, como a ideia do karma. Na música, a influência dos mantras hindus é ampla. Selecionamos seis músicas de artistas essencialmente pop que flertam com a musicalidade Hare Krishna. Confira:
Em Belo Horizonte, há um templo ISCKON no bairro Prado, rua Ametista, 212. Ele organiza o Ratha Yatra na cidade e promove regularmente diversas atividades abertas ao público.