Dossiê: Transporte

Conversamos com Fred e José, funcionários do transporte público de BH, para entender melhor o que acontece na relação entre motorista de ônibus e cobrador.

 

A A brisa leve do Parque das Mangabeiras ajudava a refrescar o calor daquela manhã de domingo. Ainda eram nove e quinze e o sol não estava alto, mas depois de dirigir por uma hora com o motor do ônibus cada vez mais quente ao seu lado, José Nazaret Gomes apreciava o alívio. O barulho da água de um pequeno riacho batendo nas pedras também dava um descanso aos ouvidos, tão acostumados às buzinas dos motoristas impacientes.

Seu colega, o cobrador Fred, brincava com a própria imagem nos espelhos do Parque, mas José preferia observar as árvores e, mais afastado, fumar seu cigarro. O cigarro era a única presença constante tanto nos intervalos do domingo quanto durante a semana.

Uma pequena cabine em frente ao parque deveria ser um banheiro, mas não tem sistema de abastecimento de água. “Não faça xixi aqui” é o que está escrito sobre sua pintura azul. O forte cheiro que exala da cabine indica que normalmente não há tempo suficiente para chegar ao banheiro mais próximo, em uma delegacia da região. Em um dia útil, José, motorista da linha 4111, gasta quase duas horas para ir do bairro Dom Cabral, região noroeste de Belo Horizonte, até o bairro Anchieta, na zona sul da cidade. Por isso, o intervalo entre uma viagem e outra acaba sendo perdido.

 

01 - rotina pesada FOTO Ingred Souza

 

O corre-corre

 

A correria do motorista José Nazaret Gomes começa já na chegada à garagem, quando precisa conferir as condições do ônibus que vai dirigir naquele dia. A conferência deve ser precisa, mas como o ponto abre só cinco minutos antes da primeira viagem, José acaba tendo que sair de casa mais cedo. Afinal de contas, é no contracheque recebido ao final do mês que ele sente a diferença de qualquer atraso ou estrago no veículo.

Nos finais de semana, José gasta a metade do tempo para fazer o mesmo percurso. A diferença se deve ao trânsito da cidade que, segundo ele, está pior a cada dia. José frequentemente escuta reclamações de passageiros que, por passarem muito tempo esperando no ponto de ônibus, acreditam que os atrasos são, na verdade, culpa dos motoristas, que ficam no ponto final jogando baralho ou tirando um cochilo. José já não se estressa. Nem com o trânsito, nem com os passageiros. “Hoje em dia eu coloquei na cabeça que não compensa estressar. Você estressa com o passageiro, ele vai embora e você fica ali o dia todo. O trânsito parou, eu parei também e na hora que chegar, é isso mesmo”, conta.

 

Amigos de longa data

O perfil tranquilo de José contrasta com a agitação do cobrador Frederico Seixas, o Fred, que sempre encontra uma forma de interagir com os passageiros. Principalmente com as moças, as quais ele tenta convencer a assumir o posto de sua nora. Ele ainda não teve sucesso nessa empreitada. No entanto, a cada nova viagem, junta muitas histórias para contar. Houve uma vez em que uma passageira entrou no carro e pediu seu celular emprestado. Diante da resposta negativa de Fred, a senhora reclamou e disse que não iria pagar a passagem. O cobrador, então, afirmou que ela estava agindo de má fé e essa foi a gota d’água para a discussão. Em outra ocasião, um motoqueiro avançou o sinal e por pouco o ônibus não o atingiu. Ele parou a moto e ficou mexendo em uma bolsa, fingindo estar armado. “Vem os dois, vem os dois”, provocava o motoqueiro. Fred, que se irrita fácil, já foi logo pulando a roleta. O cobrador estava a ponto de descer do ônibus, quando José, que sempre tenta amenizar a situação, o impediu. “Nazaret significa salvador, sabia?”.

A boa relação entre motorista e cobrador é fundamental para o dia a dia. Além da amizade criada entre ambos, se auxiliam nas questões do trabalho, como nos momentos em que o ponto cego atrapalha que José veja se há algum veículo se aproximando pela direita. Eles, que já trabalharam juntos por três anos, com uma mudança de horários na linha foram separados e agora só se encontram nos finais de semana.

A rotina faz parecer que trabalhar aos fins de semana seja mais vantajoso, mas não é bem assim. José conta que esses dias demandam muito mais atenção ao dirigir que os outros por causa do aumento de motoristas inexperientes nas vias da cidade. A chance de acontecer algum acidente com qualquer descuido é bem maior. Além disso, as folgas aos sábados ou domingos fazem muita diferença para o motorista. Afinal de contas, ele gosta mesmo é de ficar em casa descansando com a família.

 

Marcas do tempo

 

“O que tem de melhor nessa profissão do transporte coletivo é estar em casa todos os dias junto com a família”. E foi exatamente por isso que José decidiu se tornar motorista de ônibus. O mineiro lá do norte, que quando criança tinha certeza da vocação para vaqueiro, ainda era menino quando veio para Belo Horizonte com um novo sonho: conhecer o Brasil todo. Começou a trabalhar como caminhoneiro para viajar por aí, mas logo se casou, teve uma filha e mudou de planos. Desde então, já passou por muitas linhas diferentes. E por muitos apertos.

 

02 - José e Fred FOTO Ingred Souza

 

Quem olhar de relance talvez não perceba a cicatriz na orelha de José, e muito menos imagine a origem dela. Durante uma viagem noturna da linha 8401 (Cachoeirinha – São José), três homens esperaram o último passageiro descer para anunciar um assalto. José e o cobrador afirmaram que não havia dinheiro, mas a sensação gelada do cano da arma em sua testa mostrou que o assaltante não estava disposto a ir embora tão fácil. O motorista reagiu e partiu para cima do homem armado, caindo para fora do ônibus. Enquanto eles lutavam, outro assaltante também começou a espancá-lo. Um deles mordeu sua orelha, deixando a marca que ele carrega até hoje. Quando conseguiu se desvencilhar e voltar para o ônibus a fim de ir em busca de ajuda, José ainda viu o bandido disparar a arma duas vezes em sua direção. “Eu não sei, acho que foi a mão de Deus, ou não tinha bala, porque não saiu tiro”.

José admite que há inúmeros problemas na profissão, mas não concorda que seja a pior, como indica pesquisa recente, na qual motoristas de ônibus lideram o ranking das 10 piores profissões. A pior parte, para ele, é a incerteza de horários. “Acho que eu não dou sorte é com o noturno”, brinca ao lembrar que, além dos assaltos, teve seu ônibus jogado de um penhasco enquanto ele saía andando sem olhar pra trás (e sem saber se uma bala viria em sua direção).

Mesmo passando por esse tipo de situação, José nunca pensou em desistir de ser motorista. Com um sorriso estampado no rosto e um simpático “bom dia” a todos que embarcam, tenta tornar mais leve o caminho que ele e tantos outros percorrem todos os dias.

Anna Cláudia Pinheiro

O que mais me impressionou durante os trajetos que acompanhamos foi o modo como muitas pessoas tratavam o motorista e o trocador. Às vezes, parecia que os profissionais eram apenas mais uma peça do ônibus, pela qual eles passavam direto, sem dar sequer bom dia. Se soubessem das histórias que ouvimos durante as entrevistas, talvez o tratamento fosse outro. 

Ingred Souza

Como não nasci em Belo Horizonte, fazer reportagens que traçam o perfil dessa cidade é sempre desafiador. A construção dessa, em especial, me proporcionou fazer constatações interessantes e conhecer novos trajetos.

Natália Ferraz

Talvez os 68 km em que estive dentro do ônibus – trajeto percorrido em duas viagens do 4111 Dom Cabral/Anchieta – não tenham sido suficientes para que eu consiga saber realmente como é ser motorista de ônibus, mas mudaram completamente a minha percepção sobre o dia a dia desses profissionais.