As ruas de Belo Horizonte estão cada dia mais ocupadas pela arte de rua, mas junto das cores muitas discussões podem invadir as esquinas.
Por Alice Venini
É fácil andar pela cidade e encontrar algum desenho, seja um bolinho ou um rosto, um mural político ou cheio de cores, eles estão por todas esquinas. Para entender melhor sobre a cena da arte de rua e a percepção dos moradores de Belo Horizonte sobre o assunto, a reportagem realizou entrevistas com artistas de rua e uma pesquisa anônima com cerca de 50 pessoas de diferentes idades e regiões da cidade.
“Enfeitam e é um espaço de arte e protesto”, “Acho que eles trazem um respiro para a paisagem monótona dos prédios.”, “Dá mais vida ao mundo preto e branco”. Essas foram algumas das frases ditas durante a pesquisa e embora o graffiti venha ocupando cada vez mais os muros e prédios da cidade, a discussão sobre o assunto e sua valorização ainda envolve polêmicas, preconceitos, desigualdades e divergências. Comumente visto em grandes prédios da área central, em viadutos e outros espaços urbanos, o graffiti preenche e colore a paisagem de Belo Horizonte. Alguns personagens do graffiti belo-horizontino já conquistaram a sociedade e se tornaram referência no assunto.
Maria Raquel, conhecida em BH como Raquel Bolinho é uma das graffiteiras que encantou a população e ultrapassou os limites dos muros e prédios. A artista, que é formada em Letras pela UFMG e em Artes Visuais na Escola de Design da UEMG, espalha pela cidade seu característico bolinho cheio de cores, sendo em prédios públicos ou lojas, o famoso “Bolinho” se tornou um verdadeiro personagem de Belo Horizonte. Sempre com bom humor, a arte feita por Raquel interage com o dia a dia belorizontino, participa de trends em redes sociais e se posiciona diante a diversas situações cotidianas. Atualmente é possível encontrar um bolinho por quase todos os cantos da cidade, colorindo desde as ruas até exposições, roupas, copos e já virou até tatuagem.
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Além dela, diversos outros artistas têm contribuído para “dar vida” às ruas da capital mineira. A artista de rua Tainá Lima, conhecida como Criola, mostra através da sua arte a força e a beleza da mulher negra utilizando de figuras representativas e cores que remetem à cultura africana. Criola é um nome importante dentro da cena do graffiti em BH e sua marca é justamente a força e a representatividade do seu trabalho, contribuindo para a luta contra o racismo e a desigualdade de gênero. Em 2018, Criola pintou um dos seus principais murais, como parte de uma das ações durante o festival Circuito Urbano de Arte (CURA) o mural intitulado como “Híbrida Astral – Guardiã Brasileira”, trazendo para a Rua São Paulo, no centro da capital, uma homenagem para as mulheres, os povos originários brasileiros e sua conexão com a natureza e a espiritualidade.
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Um processo de fortalecimento
O Circuito Urbano de Arte (CURA) é um festival criado em 2017 que tem impulsionado a arte urbana na cidade de Belo Horizonte, tornando-se um dos maiores festivais de arte pública da América Latina. O festival contribuiu para colorir outras cidades além de BH, como Manaus, capital do Amazonas e cada edição do circuito é pensada para contribuir de forma positiva para a ocupação das ruas da cidade dialogando com o ambiente, as pessoas que ali vivem e a cultura local. O festival, vai além da produção de murais e trabalha para que a arte urbana seja vista e valorizada através de debates, feiras de arte, festas e outros tipos de ações junto à comunidade. Apesar de ser uma iniciativa não-governamental, o evento acontece com apoio da prefeitura e vem crescendo em tamanho, patrocínio e visibilidade. No ano de 2024 a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), empresa de economia mista com participação do governo estadual de Minas Gerais, foi uma das grandes patrocinadoras do projeto que aos poucos vem desenhando e colorindo o centro da cidade. O aumento do apoio e do incentivo feito por empresas e por órgãos públicos contribui para que a arte urbana seja bem quista pela sociedade e é um reflexo de diversas ações como o CURA.
Além de projetos desse tipo, outra ação muito importante para a valorização do graffiti foi a lei sancionada pelo Presidente Lula em outubro de 2024 que reconhece o graffiti, a charge, a caricatura e o cartum como manifestações da cultura brasileira. Tal reconhecimento garante ao graffiti a livre manifestação e estabelece que o poder público deverá proteger e incentivar o movimento artístico. Durante a cerimônia de aprovação da lei, a Senadora Teresa Leitão do PT-Pernambuco, relatora do projeto, defendeu sua aprovação. “Primeiramente, há o fortalecimento da identidade cultural brasileira ao reconhecer oficialmente expressões que são profundamente enraizadas no cotidiano das cidades e nas práticas culturais populares. E oferecem novas oportunidades para artistas, promovendo a inclusão social e o desenvolvimento econômico em comunidades marginalizadas. O reconhecimento legal também pode contribuir para o combate ao preconceito e a criminalização dessas expressões, particularmente o graffiti que muitas vezes é, erroneamente, associado a vandalismo.”
Graffiti ou pixação?
O graffiti, por ser um tipo de arte que não se delimita a estilos, locais e não exige uma tela propriamente dita, se mescla com a pixação dentro do seu conceito, tanto para os artistas quanto para a sociedade civil e as autoridades. A ocupação das ruas pelos pixadores acontece de formas muito diversas. Seja o pixo feito pelas torcidas organizadas, manifestações políticas, declarações de amor ou apenas para marcar seu nome pela cidade. Xerel que iniciou em meados de 1996, lembra que nem mesmo os materiais utilizados eram os mesmos de hoje em dia “A gente desenhava e escrevia com o que dava, misturava alguns materiais de construção, tinta… Não é como é hoje em que já existe a latinha de tinta própria para isso.”. Além disso, naquela época, em muitos casos a pixação não carregava nenhum objetivo definido. “Para mim, quando comecei, eu buscava lugares abandonados. Escolhiamos lugares destruídos e abandonados, não tinha essa ideia de ‘Ah vou vandalizar’ era mais por diversão, por essa vontade de ter o reconhecimento dentro do seu anonimato. A gente só colocava o nosso nome mesmo naquele lugar que achávamos que ia criar uma estética que a gente gostava.” explica.
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Definir o que é uma pixação e o que é um graffiti depende muito de quem fala e qual sua percepção sobre o assunto, para alguns são inseparáveis e praticamente sinônimos, para outros graffiti é arte e a pixação é vandalismo e ainda tem aqueles que olham para os dois tipos de expressão como vandalismo ou até “poluição visual”. A discussão acerca do graffiti e do pixo é histórica e até hoje não é totalmente clara para as pessoas, sejam elas do meio ou não. Em meio a tantas divergências sobre a legalidade e a ética por trás do movimento de arte de rua surgiu o “Grapixo”, inicialmente em São Paulo, mas que também se popularizou em Belo Horizonte através do artista conhecido como Goma. O grapixo é uma mistura entre o graffiti e o pixo e pode ser usado como uma forma de proteção contra possíveis problemas com a justiça. Segundo o livro “Viaduto Santa Tereza” do escritor João Perdigão, “Ao executar o grapixo, se for abordado por um policial, o pichador pode se identificar como grafiteiro, livrando-se do xadrez. […] Se o propósito da obra é arte ou vandalismo, quem julga é o policial que fez a abordagem.”
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Afinal, existe uma verdadeira separação entre graffiti e pixação? Segundo a legislação brasileira, pixar ou por qualquer meio degradar uma edificação ou monumento urbano pode levar a pena de detenção de 03 meses a 01 ano, e multa, enquanto o graffiti não é criminalizado e pode, em muitos casos, ser incentivado pelas autoridades. Porém, se a visão entre a diferença entre graffiti e pixação ainda é um tema turvo para sociedade, como é possível realizar tal juízo? Para o escritor, pesquisador e arte educador João Perdigão essa discussão ainda vai longe. “O graffiti é um conceito da cultura hip hop difundido a partir dos anos 1970 no metrô de NY, e o pixo, uma parada da periferia brasileira, difundida a partir dos anos 1980, ambos, em sua gênese, são uma cultura vandalística.” explica. O escritor ainda completa que o graffiti acabou sendo ressignificado como uma arte “fofa, respeitável e instagramável”, enquanto o pixo foi apropriado pela cena hipster e é mais apreciada por pessoas que entendem sobre arte urbana. Porém, mesmo que os conceitos e a valorização de cada forma artística aparentemente se movimentam em direções contrárias, em alguns momentos esse distanciamento ainda pode ser questionado. “Ao mesmo tempo que isso acontece, já teve fonte no estilo do pixo até em camisa da seleção brasileira. Então, não sei como realizar tal juízo diante a tantas questões diferentes…” informa Perdigão.
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Uma arte que “tá na moda”
A aceitação do graffiti geralmente está ligada ao seu valor estético e principalmente se foi autorizado previamente pelo poder público ou privado. Para o artista de rua Davi DMS, a popularização do graffiti nos dias de hoje vai além da ocupação dos muros e prédios, está dentro de uma mudança maior. “Eu acho que foi um estilo de vida que se popularizou, aconteceu de uma forma que os brandings publicitários começaram a ver essa oportunidade e foram aderindo a ideia. Até porque a Street Art tá na rua, então é um prato que todo mundo come. Você tá passando e já vai vendo, então ela influencia muita gente”, conta.
Através desse movimento de lucro em relação ao lifestyle street, alguns problemas começam a ser discutidos. Para alguns artistas do meio street, o ato de se pintar na rua só é válido como graffiti se feito de forma natural e ilegal, pois a partir do momento que se torna um movimento legal, com autorização, perde sua essência e se torna apenas um objeto decorativo.“Esse movimento nos faz ver que o graffiti de protesto está perdendo sua força e está tendo mais o graffiti arte que é Street Art. O graffiti protesto não é tão vendável.” relata Davi.
Em função da maior valorização do graffiti, o incentivo realizado pela prefeitura e algumas empresas acabam sendo direcionados a outras regiões da cidade, ressignificando as ideias iniciais da arte de rua e os deslocando da periferia. Além disso, a manutenção das artes também é um ponto importante para a população: “Acho que a manutenção deles é baixa. Tirando os da região central, muitos já estão até descaracterizados de tanto tempo que foram feitos, deixando um aspecto muito feio.” indicou uma das pessoas que participaram da pesquisa. A concentração de murais nas áreas centrais de Belo Horizonte não é à toa e em muitos dos casos faz parte de um projeto de ocupação e recuperação do baixo centro da cidade, que por muitos anos andou esquecido. Esse projeto acontece junto a diversas mudanças e demandas em relação a lazer, turismo, economia e segurança. Como dito por Davi, o graffiti foi incorporado a diversas estratégias de marketing e ganhou esse valor comercial de grande alcance, por isso utilizar desse tipo de arte nesse processo de recuperação está muito presente. Além de “enfeitar” o horizonte, o fato de se ter um graffiti em um local de grande visibilidade demonstra uma ideia de valorização da cultura periférica e se torna, em alguns casos, um novo cartão postal e ponto turístico que se mescla em meio aos edifícios históricos da cidade. Essa ideia de valorização é boa para o mercado e para a prefeitura, pois se insere dentro das estratégias de marketing para limpeza de imagem ou aproximação com o público, mas em contrapartida reforça um possível esvaziamento da ideia de graffiti.
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Sendo ligado a motivos meramente de mercado ou não, a visão das pessoas sobre o graffiti vem sendo transformada. De acordo com a pesquisa realizada, das pessoas consultadas, 67% gostam muito dos graffitis espalhados pela cidade, mas ainda existem aqueles que se dividem ou não gostam de fato. A pesquisa foi respondida de forma anônima e revelou algumas falas interessantes sobre o assunto. “Acho que dá um aspecto sujo à cidade, entendo que é uma forma de arte, mas em todo lugar fica muita informação. Poluição visual” foi o relato de uma pessoa da região Oeste de Belo Horizonte, que possui entre 51 e 60 anos. Por outro lado, outra pessoa da mesma faixa etária e região informou que “São as vozes de indivíduos que lutam para se expressarem usando no lugar de armas e falas de ódio, as armas das cores, dos traços, dos sprays, usando a arte como voz e mudando preconceitos e tentando gerar consciência a uma sociedade adormecida na falta de pensamentos e reflexões.” Embora seja possível existir diversas opiniões sobre o assunto, alguns padrões foram possíveis de identificar na pesquisa feita, em sua grande maioria, as pessoas que não gostam tanto do graffiti ou são neutras sobre o assunto estão entre os 41 anos e os 60 anos, enquanto os que se posicionam a favor dos graffitis nas ruas de BH têm entre 19 anos e 40 anos. Apesar do preconceito com o graffiti ainda existir é possível identificar que nos últimos 10 anos a aceitação, e até a admiração, por tais intervenções urbanas vêm crescendo entre a população belorizontina e os moradores vêm sentindo tal mudança.
Esse movimento não é apenas percebido pelos moradores de BH, mas também pelos artistas urbanos, para Davi DMS essa mudança vem acontecendo a muito tempo. “Foram várias coisas que trouxeram o graffiti para que ele hoje seja um pouco mais reconhecido. Depende muito se você for fazer o graffiti mesmo, o real. Aquele graffiti que eu não pergunto para o dono do muro se ele quer eu faço. Então o graffiti tá mais perto da pixação do que do de todo o resto, de moralismo, mas a gente acaba usando essa nomenclatura para tudo, no fim é arte de rua. Eu acho que a Street Art está de fato mais reconhecida, enquanto o graffiti sempre vai ser mais underground.”
E agora?
Partindo do ponto em que o graffiti é considerado como manifestação artística e o governo e a população entendem seus benefícios para a cidade, mesmo que dentro de algumas controvérsias, se faz necessário entender os meios para que seja possível com que os artistas ocupem a cidade. O graffiti, assim como outros tipos de arte, demanda materiais, conhecimentos, tempo e dedicação, por isso o fortalecimento do movimento artístico se dá a partir do incentivo público e privado, seja financeiro ou social. Uma forma de apoiar e incentivar a produção artística belo-horizontina é através de editais de incentivo feitos pela prefeitura, sendo eles exclusivos para artistas de rua ou podendo ser incluídos através da adaptação das regras para aplicação. Embora a criação de editais para incentivar o graffiti seja por si um avanço dentro das burocracias governamentais, a institucionalização desse tipo de expressão artística pode gerar atritos, pois dessa forma algumas regras serão impostas e como consequência disso pessoas que já se “encaixam” melhor nos padrões e noções de arte estabelecidas serão privilegiadas.
O caminho percorrido pela arte de rua, principalmente o graffiti já teve diversos avanços, mas o preconceito e a desvalorização do artista ainda é algo muito presente na sociedade belo-horizontina. É possível que algumas das questões e controvérsias do assunto nunca sejam esclarecidas, mas apesar disso a prática do graffiti e do pixo estarão presentes e moldarão os horizontes da cidade de Belo Horizonte independente de política ou investimento. O graffiti aos poucos foi se consolidando não só como expressão artística brasileira, como assegura a lei, mas também parte da identidade cultural de Belo Horizonte, se eternizando em muros, pontes, prédios, livros, fotos e na memória de várias gerações.
Conheça mais algumas artes espalhadas por Belo Horizonte:
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*Reportagem produzida na disciplina de “Laboratório de produção de reportagem” sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos.
**Algumas fotos tem Graffitis/Pixações sem indicação de autoria, caso conheça o autor sinta-se livre para informar.