Entre baratas, Jorge Amado e podcasts: histórias, perrengues e aventuras de estudantes da UFMG que passam muito tempo no transporte público.  

Por Alessandra Soares 

5102 no seu ponto inicial, na Escola de Belas Artes (foto: Alessandra Soares)  

São 06h30 de uma fria e nublada manhã de segunda-feira. Descendo a rua que sai na avenida principal da cidade, meu trajeto diário, de longe vejo ele passando, vazio, milagrosamente no horário certo. De imediato, penso: estou atrasada, perdi o ônibus de seis e meia… e vazio ainda por cima… agora, ao invés de chegar 8h, chegarei 8h20! São situações como essa que me fazem pensar na importância que um ônibus pode assumir na vida das pessoas, principalmente, quando você passa grande parte do seu dia dentro de um.  

Como moradora de Lagoa Santa, cidade da região metropolitana de BH, tenho, infelizmente, propriedade para falar do assunto. Gasto, em média, de quatro a seis horas por dia só com deslocamento de casa para a faculdade, que fica no campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). São muitas horas dentro do ônibus, e eu não sou a única nessa peleja. Quando você pega o mesmo ônibus, no mesmo horário, todos os dias, você acaba conhecendo as pessoas (que também são as mesmas). Você faz amizades, conversa, escuta histórias sobre o fim de semana, reclama da linha sucateada, sabe até qual motorista corre mais que o outro… é comum ouvir diálogos que evidenciam essa intimidade inesperada: 

— Bom dia, tá boa moça? E sua irmã?  

— Ei, bom dia! Ela dormiu mais que a cama hoje, vai no ônibus de sete horas… 

— Ela que é esperta, porque esse motorista aí é uma moleza…   

No clássico poema épico Odisseia, atribuído a Homero, acompanhamos a trajetória de Odisseu e seus companheiros na volta para seu reino, em Ítaca, na Grécia. A volta para casa demorou mais de 10 anos, já que o herói da guerra de Tróia precisou enfrentar diversos contratempos e desafios até regressar ao seu lar. É possível dizer que muitos passageiros do transporte público se sentem como Odisseu e seus marinheiros: em uma longa jornada tentando voltar para casa, todos os dias após o trabalho. Mas no lugar de aventuras heróicas envolvendo ciclopes, monstros e sereias, enfrentamos trânsito parado, linha sucateada, motoristas e passageiros raivosos.  

Passar tantas horas no ônibus, diariamente, pode ser cansativo e estressante, mas há pessoas que conseguem tirar proveito disso. Conversei sobre o assunto com dois estudantes da UFMG, para entender melhor essa realidade que compartilhamos, de quem é praticamente casado com o próprio ônibus (já que passamos tanto tempo com ele).  

Um otimista, uma barata e Capitães de Areia no 6350 

Marcelo Junio Silva, de 22 anos, estuda Cinema de Animação e faz estágio também no campus Pampulha. Morador do Barreiro, região sudoeste de Belo Horizonte, utiliza a linha 6350 para ir de um lugar ao outro, gastando de cinco a seis horas por dia no trajeto. Marcelo destaca que isso interfere muito em sua vida, já que precisa se planejar com muita antecedência para ir a alguns lugares. “Não tem como eu marcar de estar na Pampulha às 08h00, porque senão eu simplesmente não chego”, explica.  

Assim como Marcelo, eu também faço estágio dentro do campus, o que ajuda muito, mas compartilhamos a mesma preocupação: como lidar com essa logística no futuro? A grande maioria das vagas de emprego são na região central de BH, e é muito difícil se libertar do transporte público (vou me mudar para mais perto ou comprar um carro?). Sem contar que essa logística, com certeza, interfere muito na nossa produtividade nas aulas e no estágio. Marcelo destaca que o transporte público é sim muito útil, já que nos permite ir a quase todos os lugares, mas fazer baldeação e ficar tanto tempo no ônibus todos os dias é muito cansativo.Na verdade, para ele, morar em uma região mais periférica é o mais difícil.  

Uma consulta no Google Mapas e no aplicativo de trânsito Moovit mostra que a linha 6350 gasta em torno de 1h30 do ponto inicial (Estação Barreiro) até o final (Estação Vilarinho), isso quando não tem engarrafamento, algo muito difícil no anel rodoviário. Dá para assistir o novo Divertida Mente ou escutar um dos maiores álbuns do Pink Floyd (The Dark Side of the Moon) duas vezes seguidas e ainda sobram seis minutos. É muito tempo dentro de um ônibus. 

  • Acompanhe aqui uma animação com o longo trajeto da linha 6350, da página @linhasdebh, no Instagram 

Se você mora em Belo Horizonte há muito tempo, com certeza já ouviu falar no icônico 6350, que praticamente atravessa a cidade, é famoso, um ícone pop. Pergunto ao Marcelo como é a experiência dele usando a linha, se alguma história vai ficar na memória dele para sempre: “Deus me livre! Eu quero esquecer completamente minha experiência no 6350. Não quero lembrar nunca mais, saindo da UFMG não quero ver esse ônibus na minha frente…”. Mas ele me contou uma história bem inusitada que vai ficar em sua memória. 

— Uma vez eu estava no trânsito indo para a faculdade, isso era por volta de umas 05h30 – 06h00 já… era relativamente tarde, né? Então o ônibus já tava meio cheio, tava agarrado no trânsito e eu tava em pé. E aí eu lembro que nesse momento tinha muita gente tirando um cochilo, e uma moça estava deitada, encostada com a cabeça na janela, aí eu lembro de ter olhado de relance e uma barata estava subindo na janela em direção a boca da moça… Daí eu tive que acordar ela, porque foi uma situação muito complicada. [risos]  

— E o que você costuma fazer durante essas cinco horas que passa só no ônibus? 

— Então, já variou bastante, sabe? Eu lembro que teve uma época que eu desenhei. Teve uma época que eu peguei para ler Jorge Amado, Capitães da Areia. Teve um tempo também que eu passei escutando música. Já vi muita série. Dormir sempre acaba acontecendo, né? Porque como é um batidão muito pesado, essa coisa de pegar ônibus e estudar, trabalhar…  

Eu também já li, escrevi, e hoje escuto música e podcasts no ônibus, afinal, eu passo cinco horas do meu dia só com ele… por isso eu digo que é quase um relacionamento. Quando ele se atrasa… estraga meu dia! Pior ainda é quando ele me dá o bolo e simplesmente não vem. 

E pensando nessa realidade bizarra, tomando o ônibus quase que como uma entidade, pergunto ao Marcelo se ele tem muita raiva de ter que pegar o 6350 ou se a situação é apenas algo que faz parte da vida e tudo bem. Sobre isso, ele apresentou um ponto de vista bem interessante, com o qual eu concordei em boa parte. Para Marcelo, alguns momentos ruins ou muito desconfortáveis são necessários para nos proporcionar momentos bons no futuro. Ele ressalta que não é sua intenção romantizar qualquer tipo de sofrimento, apenas que consegue extrair  coisas boas dessa realidade tão exaustiva, como amizades e histórias para contar. E é claro que o nosso tempo no ônibus representa os momentos ruins da nossa jornada.  

De acordo com dados da BHTrans, só no mês de maio, aproximadamente 104 mil passageiros utilizaram a linha do 6350, e o Marcelo está entre eles. Com o 5102, o próximo personagem dessas sagas, o número de usuários é menor: no mesmo mês, 65 mil pessoas utilizaram a linha, incluindo o Pedro, o outro colega que compartilhou suas experiências comigo. 

Considerações de um busólogo 

Pedro Henrique Gonçalves tem 24 anos, estuda jornalismo na UFMG e faz estágio na rádio Itatiaia, no bairro Estoril. Ele se considera privilegiado por morar na região central de BH e poder utilizar várias linhas para se locomover. O trajeto estágio-faculdade-casa ocupa, em média, três horas do seu dia, sendo a linha 5102 a que ele mais usa. Da casa do Pedro até o campus Pampulha, o 5102 gasta 45 minutos, ou seja, dá para escutar o álbum do Pink Floyd apenas uma vez.  

Quis saber o que ele costuma fazer nessas três horas que passa no ônibus e, diferente de mim e do Marcelo, o Pedro não consegue extrair coisas legais da experiência que vive dentro do ônibus. Ele não tem o hábito de ler livros nem de escutar podcasts, mas costuma prestar atenção no trajeto, para aprender novas possibilidades de usar outras linhas e otimizar seu tempo.  

Faço para ele a mesma pergunta que fiz para o Marcelo: se ele tem alguma história ou fato inusitado sobre o ônibus. Então ele me conta um caso bem peculiar que aconteceu com ele. Sabe aquele incômodo que muitas pessoas sentem ao ocupar as cadeiras amarelas, que são preferenciais, do transporte público? O Pedro, assim como eu, também sente esse incômodo, e foi por isso que ele pulou a roleta do 5102 um dia e levou um esporro do motorista. Acontece que o cartão de passagem dele já tinha sido usado cinco vezes, que é o limite por dia. Ele pediu a uma amiga para pagar a passagem através do aplicativo do BHBUS e ficou esperando na frente do ônibus, no banco amarelo. Mas o aplicativo não funcionava, ele ficou aflito, pulou a roleta e o resto você já sabe. “Eu queria passar logo a roleta. Eu fui, e pulei, o motorista me xingou, falou volta, volta! Eu voltei, eu tive que voltar. Ele não entendeu que eu estava ansioso de ficar lá na frente, eu não gosto, sabe?”. Inclusive, em defesa do Pedro, quem nunca cedeu a um pensamento intrusivo que atire a primeira pedra.  

Vale mencionar que eu conheço o Pedro há um bom tempo e, entre o nosso grupo de amigos, a gente sempre falava que ele era um busólogo. Se você desconhece o termo, não tem problema, é só clicar aqui para descobrir. Há alguns meses, as pessoas puderam participar de uma trend no X (antigo Twitter) onde foi criado  uma espécie de álbum de figurinhas online numerando os 420 novos ônibus que a prefeitura de BH adquiriu ano passado. As pessoas tiravam fotos dos novos veículos e marcavam o perfil responsável, veja a trend aqui. Então, comentei com ele sobre essa trend, que sei ele participou, e perguntei o que ele achou da brincadeira. 

— Eu achei o número dois! Fui eu que achei o número dois no álbum de figurinhas. E era o 5102 o número dois, só não sei se troca depois. Eu acho muito legal isso, porque, tipo assim, é a visão que a gente tem do transporte público de uma maneira diferente, sabe? Tipo de conseguir brincar com isso, de aliviar um pouco. E ao mesmo tempo está, entre aspas, fazendo a prestação de contas. Existem 420 novos ônibus, de fato, em BH?  

Trend no X sobre os 420 novos ônibus de BH / Pod Ônibus
Trend do X sobre os 420 novos ônibus de BH (perfil do Pod Ônibus) 

Como eu já expliquei, o Pedro é um busólogo, por isso, pergunto como ele descreveria o 5102 se ele fosse uma pessoa, se ele seria descrito como um “querido”. Aos risos, ele o descreve como alguém simples, que por essência agrada, mas tem os seus dias: às vezes é um querido, acolhedor, simples e direto, mas tem dias que é meio estranho e não agrada. E é claro que eu tive que perguntar: você se considera um busólogo, Pedro? 

— Talvez eu me considere, mas a minha paixão é muito mais por ônibus interurbanos do que por ônibus coletivos, de fato. Eu trabalho é com Gontijo, Viação Saritur, sabe… eu não consigo trabalhar com ônibus coletivo. Não é minha praia, mas gosto também. [risos]  

Nem só de perrengue vive o usuário do transporte público  

Finalizando a nossa jornada pelo universo do transporte público, vale mencionar o “Pod Ônibus”, um podcast sobre decepções amorosas, conflitos e histórias para as pessoas escutarem enquanto esperam pelo ônibus ou durante o trajeto. Quem idealizou e criou o podcast foi o Thiago Daniel Pimenta, estudante de Antropologia Social na UFMG. O objetivo do Pod Ônibus, segundo Thiago, é entreter as pessoas que passam muitas horas dentro do transporte público e ressignificar a experiência de andar de ônibus. Um ponto muito legal sobre esse podcast é que ele não tem como intenção tecer críticas sobre o serviço de transporte público de BH, ainda que sejam necessárias, e sim funcionar como um espaço para as pessoas contarem suas decepções amorosas e outras fofocas, conta o estudante de antropologia. 

“Hoje a gente tá imerso no próprio celular, no próprio mundinho, e existiu um tempo em que as pessoas se falavam, criavam laços, contavam histórias, ouviam fofocas… então surgiu também essa ideia de retomar essa parte boa do ônibus, de contar fofoca, de saber da vida dos outros e de conversar com as outras pessoas.”, ressalta Thiago.  

Como eu disse antes, o transporte público é um lugar onde criamos laços, conhecemos as pessoas, suas histórias, fazemos amizades… Existe um lado bom nisso tudo. Há também solidariedade e empatia, como nos casos em que o passageiro dá sinal, o motorista não escuta e os outros passageiros gritam: “vai descer motô!”  

Conversar com meus colegas universitários me fez perceber o quanto é complexa a relação que cada pessoa tem com o seu ônibus. Passamos muito tempo com ele, tem dias que tudo dá certo e tem dias que tudo dá errado, tem gente que já chorou e já sorriu dentro dele, fez amizades, foi humilhado, exaltado… cada linha tem suas peculiaridades, mas uma coisa é certa: o ônibus tem um papel importante na nossa vida e, no final das contas, assim como Odisseu, sempre conseguimos voltar para casa.


* Reportagem produzida na disciplina Laboratório de Produção de Reportagem sob supervisão da professora Dayane do Carmo Barretos