Vendedores relatam os impactos da reforma para a Copa na rotina e dinâmicas do espaço, da relação com a torcida aos embates com a atual concessionária do estádio
Por Gabriela Sousa, João Pedro Ribeiro e João Pedro Salles*
O duelo entre Cruzeiro x Fluminense, ocorrido no dia 19 de junho de 2024, marcou o 500º jogo sediado no Estádio Governador Magalhães Pinto – mais conhecido como Mineirão – após a sua reforma destinada a receber a Copa do Mundo de 2014. Apesar de carregar o mesmo nome, estar no mesmo lugar e receber as partidas dos mesmos times, muitas pessoas não enxergam no “Gigante da Pampulha” de hoje o mesmo estádio que conheceram antes de 2010, ano em que as obras começaram.
Inaugurado em 1965, o Mineirão foi planejado para ser o coração do futebol mineiro, o que de fato aconteceu: o estádio testemunhou as grandes conquistas nacionais e internacionais das duas principais equipes do estado – Atlético e Cruzeiro -, além de ter recebido a partida entre seleções mais lembrada de todas a história, o fatídico 7×1 entre Alemanha e Brasil na Copa do Mundo de 2014. Mesmo tendo sido palco de todos esses momentos que se misturam no imaginário do esporte, imprensa, torcedores e profissionais de eventos reconhecem diferenças tamanhas que, nominalmente, dividem as épocas do “Novo” e “Antigo” Mineirão.
Apesar de todos os pontos de vista serem válidos por dizerem algo sobre alguma experiência futebolística, uma percepção de um componente fundamental para o funcionamento do estádio geralmente é deixada de lado: a dos seus trabalhadores independentes. Vendedores de bebidas, comidas, artigos esportivos e até mesmo cambistas são personagens que compõem um universo tradicional de Minas Gerais – que torcedor de Belo Horizonte nunca saboreou um “Tropeirão” enquanto esperava ansiosamente para ver seu time do coração entrar em campo?
Onze anos e 500 partidas depois, estes comerciantes criaram uma visão consolidada de como o Mineirão se transformou, social e espacialmente. Durante o intervalo da partida entre Cruzeiro e Fluminense, realizada no último dia 19 de junho, vendedoras e vendedoras relataram como eles percebem as mudanças que passaram diante de seus olhos, como o uso da esplanada, a adoção do estádio como sede para diversos shows e a ida dos jogos do Atlético Mineiro para o bairro Califórnia.
Personagens desse processo de transição, Maria da Conceição Pascoal (64), Tim Corino (56), Eliza Sabino (58) e Alexandre Santos Lopes (46), todos com mais de dez anos de experiência de trabalho antes da reforma no Gigante, ajudam a traçar os paralelos entre o antigo e o novo Mineirão a partir de suas próprias experiências, contando os detalhes de uma rotina que apresenta um caráter ainda incerto.
A transferência entre gestões
Apesar de terem acontecido no mesmo estádio, as partidas Atlético 0 x 1 Ceará e Cruzeiro 2×1 Atlético, respectivamente em junho de 2010 e fevereiro de 2013, demarcaram diferenças significativas em todos os âmbitos. No administrativo, aquela foi a última sob uma gestão pública do Mineirão, quando a Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (ADEMG) era sua principal responsável. Três anos depois, a autarquia foi extinta para dar lugar a uma Parceria Público-Privada (PPP) entre o Governo de Minas e um grupo de empreiteiras formado pela Construcap, Egesa e HAP. O contrato assinado em 2011, que garantiu um financiamento no valor de R$400 milhões com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), deu vida à Minas Arena.
Do ponto de vista arquitetônico, o estádio ganhou uma cara nova: montou-se uma moderna membrana de proteção contra fatores climáticos, o gramado foi rebaixado, foi construída uma esplanada de 200.000 m², separando os fluxos de espectadores e de credenciados, e muito mais. Essas mudanças vieram num momento em que todo o Brasil mobilizou esforços para atender ao “Padrão FIFA” – exigido para atender à Copa do Mundo de 2014, sugerindo uma estrutura nos moldes europeus que buscasse a “modernização” do esporte brasileiro.
Mesmo diante de certos avanços, a transformação ganhou contornos dicotômicos no âmbito comercial. A estrutura adotada favoreceu diferentes práticas de lazer e garantiu que diversas empresas pudessem vender seus produtos no estádio através de parcerias e de lojas estabelecidas na esplanada. Em paralelo, os trabalhadores independentes sentem uma definitiva diminuição da sua participação no estádio, tanto para arrecadar seu sustento quanto para usufruir dele.
As dinâmicas de acesso ao estádio também sofreram alterações que influenciam no modo de interação das pessoas com o Gigante. Segundo Maria da Conceição Pascoal, que trabalha com venda de alimentos na região em dias de jogos há 30 anos, a falta de acesso às dependências internas do complexo dificulta as vendas e precariza as condições de trabalho dos vendedores. “Antigamente a gente tinha toda a liberdade de ir lá para dentro. Dirceu Pereira deixava a gente assistir o jogo (…)Na hora que terminava o primeiro tempo, vínhamos para cá [lado de fora do estádio] trabalhar. Era bom demais.” , afirma Maria da Conceição, de 64 anos.
Jornalista, radialista, empresário e político, Dirceu Pereira de Araújo foi também diretor operacional e chefe de gabinete da extinta Administração de Estádios de Minas Gerais (ADEMG), gestora do Mineirão desde sua inauguração até 2012, quando a Minas Arena venceu a concessão do estádio. A concessionária entende o Mineirão enquanto um espaço multiuso, adequado tanto para jogos quanto para eventos de lazer. A partir das modificações realizadas para alcançar tal identidade mais orientada para o lucro, os hábitos de consumo e frequência no estádio dos torcedores foram expostos ao caráter volátil da renovação, adaptando-se à nova realidade oferecida.
Entre os anos de 1993 e 2011, período em que esteve à frente da ADEMG, “seu Pereira” se tornou o rosto do estádio para alguns desses trabalhadores. Ele simboliza uma época pré-reforma em que eles podiam usufruir ativamente dos espaços do estádio com segurança e autonomia. As transformações espaciais ocorridas representaram uma ruptura da integração dessas pessoas com o Mineirão, caracterizando um momento em que elas tiveram que passar a trabalhar do lado de fora dos portões do estádio.
Outra diferença notada pelos entrevistados com relação aos “tempos de Dirceu Pereira” é quanto a agenda de eventos. Alexandre Santos Lopes, 46, vendedor de churrasco e bebidas, relata como a “prioridade da Minas Arena são os shows, e não mais os jogos”. Para além da desocupação, a demanda também se tornou um problema, já que a queda da realização de eventos esportivos (impactada também pela ida do Atlético Mineiro à Arena MRV desde agosto de 2023) faz com que essas pessoas tenham que trabalhar em eventos musicais para manter a renda.
Apesar da incidência de shows e festivais, os trabalhadores relatam como este público é bem distinto do futebolístico, sendo habituado a consumir dentro das dependências do evento e não do lado de fora. Hoje, eles têm que lidar com um público bem menos atrativo, dado que as transformações espaciais impactaram também as práticas torcedoras, rareando o costume de se consumir fora do Mineirão – também conhecido como pré-jogo.
A diretora da Secretaria Municipal de Fiscalização na regional Pampulha, Rovena Nacif Porto, em entrevista para a reportagem, admitiu que em um contexto de segurança pública, o ideal é que os ambulantes fiquem dentro do Mineirão. “Com o público lá fora, a gente não consegue ter o compromisso da vigilância sanitária de que aquele alimento é correto, que a bebida está higienizada. Então tem uma questão de saúde pública séria.”, afirmou.
Após o período da Copa do Mundo, foi realizada a tentativa de estabelecer uma feira pública nas ruas do entorno do Mineirão, funcionando como um ponto específico de reunião destas atividades. A iniciativa, no entanto, foi frustrada em função da limitação imposta nos dias de trabalho dos ambulantes. A feira seria realizada apenas uma vez por semana, além da imposição de um preço público por participação no evento. As alternativas apresentadas pela Prefeitura até o momento não agradaram os vendedores que atuam na área e ainda buscam condições mais salubres. Eliza Sabino, que atua nos arredores do estádio há 14 anos, relatou, inclusive, sentir um “afrouxamento” nas ações promovidas pelo município. “Mas eu acho assim, a prefeitura peca em algumas coisas, tipo churrasqueira no meio da rua, sabe? Eu acho que quando tem um tumulto é perigoso, sabe? O pessoal ficar (…) no meio da churrasqueira, que é mais carvão essas coisas, eu acho que eles pecam nesse ponto. Eles são mais… É, fogo antigamente nem deixava (…) na rua é mas deu uma afrouxada boa agora, tá?”, ressaltou Eliza.
O pequeno capital formado pelos trabalhadores independentes possui certo consenso em sentir falta das gestões pré-2013. Eles lucram menos, têm maiores dificuldades de usufruir da estrutura do estádio, têm menos oportunidades e maior concorrência. Tal espaço não foi pensado para incluir estes trabalhadores, que foram “empurrados” para os arredores do local e tiveram as portas fechadas para si.
A desapropriação dos ambulantes
Durante o período de reforma e transferência de gestão, entre 2010 e 2012, os trabalhadores informais estiveram dentre os mais influenciados pelo processo. Eles precisaram deixar seus respectivos postos de trabalho sem nenhuma garantia de que poderiam retornar ou compensação financeira pelo prejuízo.
De acordo com levantamentos realizados para o artigo “Copa do Mundo para Todos”, publicado por Emily de Andrade Costa, Marina Brito Pinheiro e Maíra Villas Boas Vannuchi, “cerca de 130 famílias foram atingidas com o fechamento do Estádio do Mineirão”. As autoras também relataram as dificuldades dos trabalhadores informais em se transferir para espaços de outras regiões da cidade, além da falta de uma “política de compensação”, seja algum tipo de indenização ou oferta de ocupação alternativa. Doze anos após a reforma, questões semelhantes ainda são sentidas pelos vendedores.
Em entrevista, Maria da Conceição reclamou da falta de respeito por parte dos responsáveis pela fiscalização e planejamento logístico da região. Para a equipe de reportagem, a vendedora relatou que entre a organização da Minas Arena, Polícia Militar e agentes da Prefeitura, é difícil saber quem tem maior autoridade. “Hoje pode, amanhã não pode. (…) Quando a gente pediu à prefeitura para colocar o carrinho aqui, teve um estudo. Aqui na Avenida C, na rua Alfredo Camaratte e atrás do Mineirinho são os lugares oficiais. Mas às vezes aqui que é oficial a gente não pode trabalhar. Eles tiram a gente daqui. O pessoal não está respeitando a gente mais não”, desabafou a vendedora de 64 anos.
Mudanças no perfil do público
Tassiana Leal (37), torcedora do Cruzeiro, frequenta o estádio desde antes da reforma e percebe o quanto a “atmosfera” do Gigante se alterou para além da construção da esplanada. Para ela, o antigo Mineirão era um ambiente mais diverso e, consequentemente, mais acalorado. “Era uma atmosfera diferente mesmo, né? Eu percebia que era um ambiente no qual você via todo mundo ali, do rico ao pobre, do branco ao negro. Você sentia todo mundo junto. Não tinha muita separação, era um ambiente com mais calor humano”, enfatiza Tassiana.
Tim Corino, que trabalha há mais de 50 anos com vendas de artefatos e acessórios esportivos no entorno do estádio, também sente que o perfil comportamental das pessoas se alterou muito. Ao conversar com a equipe de reportagem, ele ressaltou como a diferença no público afeta diretamente nas vendas e no trato das pessoas com os ambulantes. “Antes [da reforma do estádio] nós vendíamos muito mais, o público era maior e, em sua grande maioria, eram pessoas muito mais humildes. Apesar de hoje elas ainda estarem presentes, antigamente elas vinham muito mais. (…) Hoje em dia, é outro perfil, bem diferente, as pessoas que frequentam são as que têm mais dinheiro. (…) Hoje, elas não param para conversar, falam com a gente correndo, parece que têm medo…”, frisou o ambulante.
O perfil do público que costuma frequentar shows no estádio também altera a rotina de vendas. Eliza Sabino (58), que trabalha como ambulante no Mineirão há cerca de 14 anos, conta: “O perfil é muito diferente, quando o show é de gente mais nova, vende menos. Mas, quando é show de rock, sertanejo, uma galera mais velha, vende mais”, relatou a ambulante de 58 anos.
A diferença no perfil dos vendedores também foi algo presente nos relatos dos ambulantes. Alexandre, que trabalha na venda de alimentos e bebidas há mais de 15 anos nos arredores do estádio, contou de forma empática sobre como enxerga os novos ambulantes: “Antes da reforma era bem melhor (as vendas), após isso o comércio ficou muito fraco. Apareceram mais pessoas, que provavelmente estavam desempregadas. Hoje, por conta disso, temos muito mais vendedores ambulantes, porque as pessoas sobrevivem da forma que dá e essa é a forma que está dando. Então, infelizmente, é assim que começa a cair o mundo pra nós”.
Para Eliza, a prefeitura flexibilizou a fiscalização do comércio de ambulantes após a pandemia de Covid-19, o que aumenta a possibilidade de trabalho para outras pessoas. “Depois da pandemia, a gente teve uma flexibilização por parte da prefeitura, muita gente ficou desempregada, aumentou o custo de vida. Então, eles flexibilizaram (fiscalização) para estar ajudando pai de família. (…) eles tem que ter um jeito de sobreviver né, alguns vem trabalhar até de dia semana aqui”, conta a vendedora de 58 anos.
O que o futuro reserva para essas pessoas?
Principal alvo de críticas pelos ambulantes, a Minas Arena, atual detentora da concessão do estádio, afirmou que é responsabilidade da prefeitura a regulamentação de vendedores ambulantes no entorno do estádio. E que o Mineirão, apenas em 2022, gerou, indiretamente, 7 mil empregos.
A resposta da Concessionária não engloba as reivindicações indicadas pelos vendedores ambulantes que trabalham no entorno do estádio. Esses trabalhadores se situam na sombra entre a capacidade de atuação que a prefeitura possui e os (des)interesses de ocupação que a Minas Arena propõe para o seu modelo de arena multiuso.
O sentimento geral dos ambulantes é de descaso por parte tanto das autoridades e organizações como dos públicos que frequentam o estádio. Um novo processo de credenciamento está sendo discutido no intuito de democratizar o acesso às dependências do estádio e aplicar as reivindicações dos ambulantes, tal como maior vigilância e organização por parte dos responsáveis pela fiscalização. O prazo para cadastramento é aberto anualmente, em data a ser definida pela PBH.
O futebol vive um ápice da comodificação no cenário atual, jogando para escanteio grupos que não participam das grandes remessas de lucro existentes. Ou seja, apenas esperar que “as coisas voltem a ser como eram” pode gerar uma passividade que manteria essas pessoas num eterno estado de imobilidade. Uma arena fundamentalmente “multiuso” estaria disposta a se comprometer com a ocupação de seu espaço de forma democrática, especialmente pelos vendedores ambulantes e público espectador, garantindo um desfrute proveitoso do ambiente para toda a comunidade. A história do Mineirão vai muito além das quatro linhas – ela é genuinamente composta por aqueles que passaram e continuam a passar horas a fio trabalhando em busca de condições dignas e cabíveis de honra.
*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismos e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira Souza, sob supervisão de Phellipy Jácome