Por Bruno Henrique Nogueira e Lucas Silvério de Oliveira
O estádio de futebol é conhecido por ser um ambiente predominantemente masculino, sempre ocupado pelas grandes torcidas para apreciar um esporte representado majoritariamente por homens. Entretanto, diante das conquistas feministas esse ambiente tem mudado. As mulheres estão cada vez mais presentes nos ambientes esportivos e têm sido sempre vistas nos estádios de futebol.
Segundo a página esportiva Cassio Zirpoli, que tem como base a estimativa do IBGE sobre a população feminina do Brasil e a pesquisa de torcida O Globo/Ipec, ambas de 2022, existem 108,7 milhões de mulheres no Brasil. Destas, 67,9 milhões são torcedoras de clubes de futebol.
Aproximando mais ainda de quantas torcedoras femininas cada time tem, a página ainda aponta que, por exemplo, no Clube de Regatas do Flamengo existem 21,74 milhões de torcedoras, sendo que o clube possui cerca de 42 milhões de torcedores.
Nos times mineiros não é diferente. As torcedoras do Cruzeiro representam 2,82 milhões dos 6,61 milhões do time. E no Atlético as mulheres somam 1,73 milhão dos 4,47 totais.
É comum, hoje em dia, encontrar essas mulheres torcedoras nos estádios de futebol, mas essas experiências não são as mesmas do que para os homens. Ir ao estádio pode estar cercado de diversas situações adversas para elas.
Em uma ocorrência retratada pelo G1, durante uma partida de futebol no Mineirão, no dia 11 de junho de 2022, uma torcedora foi vítima de importunação sexual durante a partida em que assistia com o namorado nas arquibancadas. A mulher foi tocada três vezes pelo abusador, mesmo pedindo para que ele parasse e seu companheiro chegou a ser agredido pelo homem. Ela ainda disse que teve muitas dificuldades de fazer a denúncia, pois tanto os policiais do estádio quanto da delegacia não prestaram a devida atenção e até a questionaram.
Um relato das experiências
A torcedora do Cruzeiro, Camila Ferreira, de 24 anos, e a torcedora do Atlético, Brenda Matos, de 22 anos, relataram suas experiências no estádio de futebol e trouxeram uma ideia de como é passar por ela:
P: Você se lembra da primeira vez em um jogo de futebol? Qual foi sua experiência?
Camila: Eu não lembro da primeira vez exata, mas eu tenho o histórico muito próximo com esportes, principalmente o futebol, graças à minha mãe. Ela conta que na final da Libertadores de 97, ela estava grávida quase me ganhando – eu sou do final do ano de dezembro – e tava lá na arquibancada vendo a final.
Minha memória não é das melhores, mas eu sempre tive presença nos jogos desde criança. Apesar de que não foram muitas vezes, sempre foi uma questão de acesso financeiro.
Somos eu, minha mãe e meu pai cruzeirenses e o ingresso do Cruzeiro sempre foi mais caro. Eu me recordo de valores do Mineirão antigo, da arquibancada custando R$35 por pessoa. E na época isso era um valor caro, considerando três pessoas indo, consumo e transporte, mesmo que eu morasse de certa forma próximo ao estádio.
Brenda: A primeira vez que fui ao estádio ainda era criança, acompanhada do meu pai – que me despertou o gosto pelo futebol. Lembro-me que a experiência foi incrível, e que amei sentir a energia da torcida, ver os jogadores de perto.
P: Qual é a sua melhor memória em um jogo de futebol?
Camila: Eu tenho duas memórias marcantes:
Em um jogo, se eu não me engano, em 2009, entre Cruzeiro e Corinthians, Ronaldo ainda jogava no Corinthians, e eu estava com meus pais tentando entrar no jogo que já estava acontecendo. E a gente tava na bilheteria lá de fora do Mineirão antigo, quando rolou um pênalti, e o Fábio defendeu o pênalti do Ronaldo. Aí a gente comemorou bastante e depois acabou não conseguindo entrar, porque a cavalaria dispersou os torcedores por causa de uma briga entre Corintianos e Cruzeirenses.
Uma outra memória é de um jogo da Libertadores de 2018. Que foi a primeira experiência de ir ao campo sem meus pais. Fui com um colega de trabalho na época e foi uma experiência muito doida, porque o Mineirão estava lotado. Eu assisti o jogo da escada, foi inclusive no setor roxo, e foi a primeira vez que eu fui no setor mais caro.
Brenda: As minhas boas memórias relacionadas às idas em jogos de futebol estão pautadas na possibilidade de vibrar em tempo real, vendo tudo acontecer tão perto de mim.
P: Você costuma frequentar os setores mais populares, onde estão as torcidas organizadas, ou os setores mais ‘elitizados’? Acredita que a experiência enquanto mulher é diferente nesses dois espaços do estádio?
Camila: Eu sempre frequentei os setores mais populares no Mineirão antigo. Na verdade, nunca cheguei a ir na geral do Mineirão antigo, porque meus pais tinham medo. Era um desejo inclusive ir na geral, mas sempre fui de arquibancada e sempre no setor que agora no Mineirão novo são os mais baratos, que são o amarelo e o laranja, os dois atrás do gol.
Mas tive experiências pontuais em outros setores, o roxo e o vermelho. No vermelho inclusive foi recentemente, e é discrepante a diferença de tratamento e das pessoas que frequentam lá: em sua maioria pessoas brancas.
Por isso, eu prefiro ir nos setores mais baratos. Eu gosto de estar próxima da torcida organizada, porque eu gosto de cantar, de escutar as músicas e às vezes que eu fui nesses setores considerados da ‘elite’, a galera fica sentada, e eu prefiro ficar em pé assistindo o jogo e cantando o tempo todo.
Brenda: Já fui em ambos, e por incrível que pareça, a experiência feminina nos setores mais populares chega a ser melhor, pois acredito que as pessoas estão ali mais focadas no jogo, em torcer. No entanto, nós mulheres nunca estamos livres do assédio, e ele ocorre em qualquer lugar.
P: Você tem costume de ir ao estádio sozinha (ou já foi alguma vez)? Ou prefere ir em grupos?
Camila: Eu nunca fui ao estádio sozinha, sempre estive com outras pessoas, mas eu tenho essa experiência de ter ido com os meus pais e recentemente começar a ir com amigos. Isso foi uma mudança significativa, porque eu consegui ter o meu sócio e ir aos jogos que eu quero e estar do lado de pessoas que eu gosto, que têm os mesmos ideais que os meus.
Brenda: Nunca fui e não tenho pretensão. Prefiro ir em grupos, e sempre acompanhada de homens (como meu pai, meu namorado). Infelizmente nós mulheres só nos sentimos seguras assim, pois somente homens são respeitados por homens.
P: Na sua opinião, o estádio tem sido um ambiente acolhedor para as mulheres?
Camila: Não é um ambiente acolhedor de forma alguma.
Como eu falei eu sempre frequentei o estádio com os meus pais, mas muito mais indo só eu e minha mãe e sempre foi aquela coisa de chegar na hora do jogo, sentar e ficar no espaço, e sair assim que acabar para evitar confusões e situações constrangedoras e violentas. Recentemente eu tenho ressignificado esse lugar de ocupar um estádio de futebol, de ir com os amigos, sozinha, de ir com o transporte público coletivo.
Acaba que o momento que eu estou sozinha é quando eu estou no transporte público e tem sido até tranquilo, porque no horário que o jogo acaba são pessoas da torcida né, mesmo que sua maioria seja homem.
Mas é um espaço que tem muito menos banheiros femininos, que são mais distantes. Tem sempre situações de ser assediada. Inclusive no último jogo que fui eu estava parada segurando um copo de cerveja mexendo no celular, voltando para encontrar com o restante dos meus amigos e um cara pegou a cerveja da minha mão e saiu andando, mas eu fui atrás dele e peguei minha cerveja de volta.
Brenda: Não é um ambiente muito acolhedor, lá, frequentemente somos sexualizadas.
P: Você se sente bem-vinda no meio da torcida?
Camila: De certa forma sim, porque eu tento não ligar muito para situações que acontecem ao meu redor por eu ser mulher, mas como eu falei, eu gosto de ficar em pé para assistir o jogo, gritar, cantar, comentar o jogo e tem sempre olhares por eu estar ocupando esse lugar de forma ativa.
Já teve uma situação, quando eu estava no setor roxo, eu era basicamente uma das poucas pessoas que estavam cantando naquele setor e um cara achou que podia virar para mim falar: ‘nossa, mas você conhece as músicas mesmo’. Não é um ambiente acolhedor, mas eu ocupo esse lugar e me sinto bem-vinda de certa forma.
Brenda: Depende muito. Já me senti bem-vinda, mas há sempre duas perspectivas entre os homens torcedores: Os que veem como afronta uma mulher que gosta de futebol, e os que sexualizam a nossa presença, colocando-nos como “sonho de consumo” por gostar de futebol.
P: Acredita que o clube para o qual você torce tem trabalhado para incluir mais as torcedoras no meio?
Camila: Acho que não o suficiente, apesar de que o número de mulheres no campo aumentou bastante.
Eu vi também algumas ações no sentido de divulgar mais o futebol feminino e recentemente teve um jogo que no mesmo dia era o feminino e o masculino. Então teve um pacote para você comprar e ir nos dois jogos, só que o jogo feminino era no horário que a maioria das pessoas estão trabalhando, então não é de fato uma inclusão, né?
Mas o espaço em si é isso, os banheiros são de difícil acesso, tem mais guardas homens, têm poucas mulheres para revistarem mulheres e aí ser uma fila maior e demorar mais tempo. São várias nuances, várias micro agressões.
Brenda: Apesar de algumas campanhas em prol do assunto, não acredito que o trabalho feito seja suficiente. Houveram muitas mudanças ao longo dos anos, mas ainda há um foco muito forte no público masculino.
P: Acha que a atual gestão do mineirão tem feito um bom trabalho para tornar o ambiente seguro e atrativo às mulheres?
Camila: Já respondi um pouco isso, mas o que poderia ser melhorado é o acesso e a disponibilidade de banheiros e de insumos, como papel e sabonete. Ter mais guardas mulheres tanto lá dentro, quanto na revista, para agilizar o processo de entrada.
No futebol como um todo: melhorar o horário dos jogos femininos, ter mais divulgação no Instagram e outras ações voltadas para o futebol feminino.
Brenda: Observo que as redes sociais do estádio têm apresentado publicações voltadas ao assunto e uma tentativa de tornar o Mineirão um ambiente familiar, mas vejo mais esforço por parte das próprias torcedoras, que se colocam diante do “risco” para se posicionar em prol de fazer o que gostam e do que querem.
P: Já sofreu algum caso de misoginia, seja por parte de familiares, amigos e desconhecidos, por estar indo ao estádio? ou por gostar de futebol?
Camila: Estar próxima de pessoas, de homens, quando eu comento sobre futebol, eu não sou na maioria das vezes escutada, sou questionada sobre as informações e das coisas que eu falo referentes ao jogo e à torcida, antes eu me esforçava para poder bater de frente com isso. Tipo, estar sempre à frente dos homens no sentido de pesquisar e acompanhar sobre futebol para poder estar nessas rodinhas falando sobre.
E aí a partir do momento que eu entrei na faculdade, em 2016, eu me afastei bastante dos esportes, principalmente do futebol, porque eu comecei a ter mais acesso às questões sociais de gênero, raça, classe social e eu fui perdendo o brilho com o esporte e o futebol, por ser esse espaço violento e não agregar as minorias sociais. Então eu me afastei bastante, parei de acompanhar, ia em alguns jogos bem pontuais.
Agora este ano que eu voltei a ocupar esse espaço, porque como eu falei, eu pude ter o meu sócio, né? Também encontrei um grupo de amigos que tem o mesmo posicionamento político que o meu, tem um diálogo e ações pautadas em Direitos Humanos, que são coisas essenciais para mim. Então tem feito um pouco mais de sentido estar ocupando esse lugar, que ainda é violento. Apesar de tudo, eu tenho essa minha bolha que eu sinto confortável em estar num espaço violento – a título de curiosidade, é um grupo que tem mais homens.
Brenda: Sim. Eu sempre gostei muito de futebol, joguei futsal durante um tempo e fui muito criticada pelos mais diversos ciclos do meu dia a dia. Era chamada de “maria-macho”, diziam que aquilo não era coisa de mulher.
Um dos casos mais expressivos foi quando o crime de estupro cometido pelo ex-jogador do Atlético, Robinho, veio à tona. Eu, como torcedora do Atlético, mulher e defensora das mais diversas causas femininas, fui ao instagram do time cobrar posicionamento do clube em relação ao ocorrido, e um homem respondeu que eu não deveria “me meter” em um assunto que não me diz respeito e que mulher que se “mete” no meio coisa de homem (dando a entender que eu o fazia, por gostar de futebol) iria sofrer um estupro mais cedo ou mais tarde.
Além disso, sempre escutei a famosa frase: ‘Se gosta tanto de futebol, me lista aí os jogadores do título tal’.
P: Você já se sentiu intimidada/violentada, de qualquer maneira, dentro do estádio?
Camila: Já fui. Eu tenho uma blusa do Cruzeiro que tem meu nome, então já tive situações de ir para o campo com essa blusa e caras começarem a chamar o meu nome e a me parar, teve a situação recente que eu comentei de um cara tirar a cerveja da minha mão.
E eu tenho um comportamento que eu aprendi com a minha mãe de nunca ir para o campo de short. Assim, bem nessa cultura do estupro, de me “resguardar” para não sofrer nada. Mesmo entendendo essa cultura do estupro e as nuances por trás disso, eu ainda prefiro ir de calça e não de short.
Brenda: Já me senti devido ao grande assédio, como as olhadas lascivas e os elogios incômodos.
Os links e as entrevistas funcionaram adequadamente para dar densidade à reportagem. A edição das entrevistas, conforme solicitado anteriormente, atendeu adequadamente a necessidade de evitar repetições e expressões que soavam como “vício” de linguagem.