Ao final do mês de prevenção do suicídio, a Transite visitou a casa onde voluntários se revezam para atender quem busca ajuda para superar a depressão
Abaixo está a versão em áudio desta reportagem, comentada pelos repórteres:
O relógio marca três horas da tarde de uma quinta-feira de setembro – amarelo, no caso, por se tratar da cor do mês de conscientização sobre a prevenção do suicídio. Chegamos à casa de muros verdes em uma esquina movimentada da rua Desembargador Barcelos, no bairro Nova Suíça, região oeste de Belo Horizonte. Há um cartaz na fachada e outro na varanda de entrada que indicam: é ali o local onde funciona o Centro de Valorização da Vida (CVV) de BH, instituição de trabalho voluntário que oferece atendimento gratuito para pessoas que pretendem cometer suicídio ou com quadros de depressão e solidão. Segundo o Ministério da Saúde (Datasus), o Brasil registra mais de 10 mil casos de suicídio por ano.
Quem nos recebe é Ordália Soares, senhora de cabelos curtos e grisalhos, camisa amarela da campanha de setembro. Ela nos convida a um sofá com forro de renda até que chega outra voluntária, Soraia Paiva, com batom recém-retocado, fita amarela presa à blusa, e se senta ao lado de Ordália. Ligamos o gravador, e começamos a conversa.
A casa do Centro de Valorização da Vida no bairro Nova Suíça, em Belo Horizonte.
O telefone toca, toca e toca uma vez mais
Uma das primeiras informações que as duas mulheres nos passam é uma negação: não podemos saber suas profissões. Isso porque é política do centro que os voluntários não se identifiquem para além do nome. As 42 pessoas que trabalham no CVV não precisam ser profissionais de saúde, não revelam suas ocupações, onde moram e, segundo Ordália, sob nenhuma hipótese, conversam lá sobre preferências religiosas ou partidárias. “A profissional fica lá fora, a mãe, a avó ficam lá fora”, diz a senhora.
A rotina dos voluntários no CVV é a seguinte: quatro horas e meia em um dia por semana, durante as quais atendem telefonemas feitos para o 141 e também pessoas que, por ventura, procurem o centro. Há reuniões mensais de treinamento. Além disso, são os próprios voluntários que administram a casa, atendem a imprensa e doam para o projeto – fora os eventos que organizam para conseguirem mais recursos.
Segundo Ordália, até agosto de 2016, apenas esse centro, único CVV de Belo Horizonte, realizou, 63 atendimentos presenciais. Eles acontecem em uma sala, próxima à entrada, de paredes azuladas, como boa parte do interior da casa. Já pelo telefone 141, foram 8842 ligações, mais de 80% dessas vindas de pessoas que retornaram após uma primeira ligação. Durante os quase 60 minutos que ficamos no CVV, o telefone tocou ao menos cinco vezes, atendido por dois outros voluntários que se revezavam nos cômodos mais ao fundo da casa.
Ordália, voluntária do CVV há 20 anos, em uma das salas de atendimento por telefone da casa
Voluntárias para a escuta
O suicídio esteve presente em episódios da história de Ordália antes mesmo de entrar no CVV. “Eu morava na fazenda quando vi anunciando que havia inaugurado um trabalho de prevenção ao suicídio em São Paulo. Depois eu vim morar em Belo Horizonte. Nesse intervalo, perdi várias pessoas, amigas, parentes, pessoas muito próximas com o suicídio”, conta. Segundo ela informa, para cada suicídio, até 12 pessoas são afetadas indiretamente. “Eu fiquei entre essas 12”, relembra.
Após se mudar para BH, há 20 anos, Ordália se inscreveu para o CVV. “Estava ouvindo o rádio, de manhã, e eles estavam anunciando que estava começando um curso para seleção de voluntários. Eu liguei e aí comecei”. Para entrar, ela precisou passar por um curso de capacitação, etapa que permanece obrigatória para qualquer novo voluntário até hoje. O curso é oferecido nas sedes do CVV, pela própria equipe da organização, e ensina a filosofia do CVV e os métodos de atendimento. Para participar, só é preciso ter mais de 18 anos.
Já Soraia, que está no CVV há menos tempo, cinco anos, não mencionou ter passado por nenhum caso de suicídio próximo, ainda assim afirma que o voluntariado mudou a sua vida. “Ajudar faz bem. O CVV muda as pessoas pra melhor. O trabalho é bonito e a causa é nobre. Você acaba se envolvendo e se apaixonando pelo trabalho”, reflete.
Soraia, voluntária do CVV há cinco anos, na sala de atendimento presencial da casa
Quem atende ao outro lado da linha
Não acompanhamos nenhuma ligação, em respeito ao trabalho dos voluntários e também a quem liga. De acordo com Ordália e Soraia, as chamadas podem durar de 20 minutos a horas, segundo a necessidade da pessoa. As voluntárias dizem que não há como traçar um perfil de quem mais telefona, pois além de perguntar, somente o primeiro nome, toda informação que for dita é confidencial e não é registrada.
As ligações ocorrem durante todo o dia e não há concentração em nenhum horário. O que acontece, segundo Soraia, é um aumento em datas comemorativas como o Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados, Natal e fim de ano. Atualmente, o CVV de Belo Horizonte atende das 7h às 23h, todos os dias da semana, e o objetivo imediato é encontrar voluntários para o plantão da madrugada, de forma que o telefone funcione 24 horas.
“Mas não é bate-papo, é escuta”, ressalta Ordália, que afirma que o papel do voluntário é mais ouvir que falar. “A gente acredita que, à medida que a pessoa vai falando, ela vai raciocinando sobre o que falou e vai chegando ao que é importante para ela. A pessoa dá conta dos problemas dela”, explica Soraia. “É uma satisfação muito grande quando você vê que a pessoa mudou o objetivo dela, se estava com vontade de se matar, desabafa, resolve e fica tranquila”, acrescenta Ordália. Segundo as voluntárias, todos que ligam são atendidos, mesmo se tratando de uma criança.
As voluntárias e o CVV comemoram a criação do setembro amarelo. Segundo elas, apesar do tabu, quanto mais se fala em suicídio e depressão, na mídia e na conversa cotidiana, mais é possível divulgar o tratamento e a prevenção. “À medida que se fala e as pessoas sabem de iniciativas como o CVV, [isso] faz as pessoas pensarem que tem jeito”, diz Soraia.
O CVV de Belo Horizonte atende todos os dias, das 7h às 23h, no número 141 e presencialmente.
O CVV existe desde 1962 e atualmente são mais de 70 centros no país. Em Belo Horizonte, o centro começou a operar há 39 anos. O centro aceita doações e inscrição de voluntários. O contato pode ser feito pelo telefone 141, pelo (31) 3334-4111 ou através do site www.cvv.org.br
Atendimento
Para quem necessita atendimento, o contato deve ser feito no telefone 141, no centro localizado à R. Desembargador Barcelos 1286, no bairro Nova Suíça, ou pelo chat no site do projeto www.cvv.org.br.