Mineirão teve sua identidade adaptada no processo de arenização
Por Julia Almeida e Gabrielle Thaís*
Com sua reforma em 2010, motivada pela adaptação ao padrão FIFA (Federação Internacional de Futebol) para receber jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014, o Estádio Governador Magalhães Pinto, conhecido por Mineirão, passou por uma série de transformações. As exigências da entidade futebolística consistiam na adaptação das dimensões do campo, assentos individuais com largura mínima definida em toda estrutura de arquibancada, capacidade de público do estádio, entre outras regras estabelecidas para segurança e conforto dos torcedores.
Em junho de 2010, o Gigante da Pampulha recebeu cerca de 50 mil pessoas para o show do Skank, banda de rock belo-horizontina, em um evento que marcou, de fato, o fechamento dos portões do estádio para a obra. A reinauguração ocorreu depois de quase três anos, em fevereiro de 2013, em um clássico entre Atlético e Cruzeiro, com torcida dividida, quando a Raposa levou a melhor por 2×1.
O novo Mineirão passou a ser administrado pela Concessionária Minas Arena, empresa vencedora da licitação da reforma feita pelo Governo de Minas Gerais. A Parceria Público Privada (PPP) tem vencimento apenas em 2037.
Jaderson Santos, torcedor do Atlético de 39 anos, frequentou o Mineirão antes e após a reforma e reconheceu as melhorias na estrutura. “Para mim, a torcida mais perto do campo, e consequentemente mais perto dos jogadores, com mais emoção, e os banheiros e bebedouros, foram as principais melhorias”.
Além de reformado, o estádio também foi reformulado. Não se tratou apenas da alteração arquitetônica ou melhoria de alguns espaços para atender as demandas da FIFA, mas na alteração das dinâmicas de uso, permanência e valor simbólico do espaço.
A arenização de um Gigante
A reformulação do Mineirão pode ser chamada de “arenização”. O conceito se refere ao processo de transformar estádios de futebol em arenas multiuso. Esse modelo, já consagrado na Europa, possibilitou ao Gigante da Pampulha receber, além do futebol, demais eventos de grande porte com maior frequência. Mas para além disso, percebe-se que a modernização pode ter impactado na cultura torcedora consolidada ao longo da existência do estádio.
“Falar do Mineirão antigo é falar do torcedor raiz. era uma coisa maravilhosa ir para o estádio de ônibus, subir a Abrahão Caram, ver aquele povão alegre e feliz, era a melhor coisa que tinha. E dentro do estádio aquela multidão. Torcedor de verdade, todo mundo se abraçando, uma alegria danada.”, comenta Jaderson.
Para o jornalista e pesquisador do futebol, Irlan Simões, a arenização está na contramão da cultura popular do futebol brasileiro. “A nova arquitetura dos estádios aposta nesse princípio do controle dos corpos, condicionando a circulação dos frequentadores e reduzindo seu comportamento à passividade, distanciando-os do tradicional protagonismo festivo das massas ruidosas”, argumenta em seu livro “Clientes versus Rebeldes – Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno”.
Após a reforma, a capacidade do estádio diminuiu. O que já chegou a comportar cerca de 130 mil torcedores quando inaugurado na década de 1960, agora tem capacidade para um público máximo de 61.927 desde reinaugurado em 2013. E em consequência das expectativas diante do ideal de modernidade implantado no espaço, o valor do ingresso aumentou consideravelmente.
A “Geral”, espaço com capacidade aproximada para 20 mil pessoas, que não possuía cadeiras e tinha ingressos com preços populares, foi substituída por arquibancadas com assentos individuais, por exigência da FIFA, e acabou sendo extinta. O setor, o mais festivo do Mineirão, era conhecido por receber tradicionalmente as torcidas organizadas.
Jaderson comenta que era uma alegria extraordinária assistir ao jogo da Geral. “Ali juntava quem não tinha dinheiro pra ir na arquibancada e pagava R$2,00, R$3,00 pra ir na geral. Mas também tinha a classe média alta que gostava de ir ali. O pobre e o rico, lado a lado, vibrando e torcendo pelo time. A hora que saía gol era aquela alegria. Quem foi de geral, não esquece jamais.”
Outros públicos para o futebol
Com a arenização ocorreu o abandono de parte dos frequentadores tradicionais do antigo Mineirão, e a chegada de novos públicos torcedores com comportamento contido e posição social elevada – efeitos colaterais da alteração no estilo de torcer, com as restrições e adaptações na estrutura, e do aumento do valor cobrado pelo ingresso.
Para Alessandro Pinheiro Ávila, atleticano de 54 anos, ficou mais difícil o acesso aos jogos com a modernização do estádio: “O Mineirão era o lugar onde eu encontrava meus amigos, parceiros de estádio, que eu só via lá. Eram pessoas que não tem mais condições de pagar o preço do ingresso, absurdo de caro depois da reforma. Eu prefiro mil vezes o Mineirão antigo, era sem frescura”.
Segundo o artigo publicado por Felipe Queiroz e Silvio Ricardo, houve um aumento percentual de quase 200% no valor do ingresso dos jogos, considerando a correção da inflação. “O aumento do preço médio dos ingressos após a reinauguração do Mineirão em 2013 talvez seja o ponto crucial na percepção da elitização do futebol do ponto de vista econômico. Se em 2010 o preço médio era de R$17,10, em 2013 foi para R$52,10”.
Sônia Maria Costa dos Santos, de 45 anos, torcedora do Cruzeiro, comenta que frequentou o antigo Mineirão e ainda comparece ao estádio, por isso consegue perceber a mudança na prática de assistir aos jogos de futebol no local. Para ela, o que era um programa familiar frequente e acessível se tornou um momento de lazer esporádico e caro: “o ingresso era R$10,00 até R$2,00, e toda quarta-feira à noite eu esperava meu pai chegar do trabalho vestida com a camisa do Cruzeiro para gente ir ao Mineirão. Hoje em dia, para levar a família toda a gente gasta R$350,00, chutando baixo”.
Apesar da capacidade de público do estádio ter diminuído e o valor do ingresso aumentado, a média, que antes da obra era de 16 mil pessoas por partida, quase duplicou. Segundo a Secretaria de Estado de Infraestrutura, Mobilidade e Parcerias (SEINFRA), o novo Mineirão recebeu, desde fevereiro de 2013, 12,5 milhões de pessoas até junho de 2024. Uma média de 30 mil pessoas por partida.
O famoso Feijão Tropeiro
Quando a questão é a tradição culinária do Mineirão, o feijão tropeiro, com toda certeza, está no topo da lista. Mesmo após a reforma, o alimento continuou sendo vendido nas lanchonetes do estádio. Mas há quem diga, que o gosto não é mais o mesmo, ou até que “gourmetizaram” o tropeiro, em tom de desaprovação.
Sônia lembra que às vezes saía de casa com a principal motivação de degustar o tropeiro do antigo Mineirão: “Era uma refeição completa, aquele ovão, a couve passadinha.” E comenta da situação do atual: “Hoje a gente abre um tropeiro no Mineirão e a couve está crua, o ovo é feito no microondas”, critica.
Para Jaderson não tem como falar do ambiente do antigo Mineirão e não lembrar do “tropeirão” vendido dentro e ao entorno do estádio: “A gente ia duas, três horas antes do jogo pra ficar tomando uma cerveja, comendo um tropeiro e ficar ali batendo papo, falando das expectativas para o jogo. O principal ponto negativo com a reforma foi o tropeiro, que nunca mais foi igual.”
O senhor Osvaldo Monteiro, de 59 anos, foi funcionário do “Bar 13” de 1980 e 1995 onde, segundo ele, se vendia o considerado melhor tropeiro do estádio. Osvaldo começou a trabalhar no Mineirão aos 16 anos, quando veio de Paineiras (MG) para Belo Horizonte. Ele conta que era apaixonado por futebol e na época, quem trabalhava no estádio tinha acesso livre aos jogos, o que o motivou a procurar um emprego por lá. Nesses 15 anos, aprendeu tudo que sabe da receita que ainda faz sucesso.
Após encerrar seu ciclo no Mineirão, Osvaldo mudou de Estado e só retornou para Belo Horizonte anos depois, em 2019. No mesmo ano visitou o Gigante da Pampulha, provou o novo tropeiro e o desaprovou. “Fui lá (no Mineirão) e vi aquele tropeiro, e parece que me deu na cabeça: esse tropeiro não está com nada, eu vou vender é tropeiro”, conta Osvaldo sobre como surgiu a ideia de retomar a venda do tradicional tropeiro do antigo Mineirão.
Para conseguir dar conta da demanda, o cozinheiro chega em seu estabelecimento no bairro Calafate, região oeste de BH, todos os dias por volta de 6h da manhã e prepara sozinho uma média 12 kg de feijão por dia. Só em seu instagram, @tropeiro.do.mineirao, tem mais de 5 mil seguidores. Osvaldo faz sucesso nas redes sociais e atrai muita gente que busca matar a saudade do prato. “Já veio Nenel, Baixa Gastronomia, Rádio Itatiaia… Agora estou famoso”, conta orgulhoso.
Palco de grandes shows
Além de ser palco de grandes jogos, o Mineirão recebe grandes shows. Em 2023, dezenas de espetáculos de grandes artistas, como Roger Waters, Thiaguinho e Skank, foram realizados no estádio.
A estrutura externa do prédio do Mineirão não teve tantas modificações, já que faz parte do complexo da Pampulha, projetado por Niemeyer – sua fachada é tombada pelo Conselho de Patrimônio Histórico de Belo Horizonte. Já a esplanada foi planejada para ser um espaço de convivência, com lojas, restaurantes e até um museu de futebol. Ela foi estruturada para ser o local em que os torcedores se reúnem e socializam antes das partidas. Porém, grande parte da torcida prefere se concentrar nas ruas ao redor do Mineirão, consumindo comidas e bebidas de vendedores ambulantes.
Em conversa com Isadora Alvarenga Garcia, de 20 anos, a jovem dona de casa comenta que não torce para nenhum time e nunca visitou o Mineirão em partidas de futebol, mas já frequentou mais de 10 shows no estádio. Isadora considera a estrutura do local “muito boa para eventos”. O uso do estádio para eventos é um assunto que gera polêmica e incomoda torcedores e times que jogam no Mineirão.
Em 2023, o Cruzeiro passou quase três meses sem mandar jogos no estádio por conflitos com a Minas Arena. Na ocasião, o conflito entre a agenda de eventos culturais e esportivos foi motivo de dor de cabeça entre as partes, e o clube celeste anunciou que não jogaria no estádio como mandante durante aquele ano.
Em 31 de março, torcidas organizadas do Cruzeiro se reuniram na Praça 7, no centro de Belo Horizonte, em protesto contra a situação envolvendo o Mineirão. Ao som do canto “o Mineirão é nosso”, o intuito dos torcedores era pressionar o Governo de Minas Gerais e a Minas Arena por melhores condições para o clube voltar a jogar no local.
Algumas semanas depois, após intervenção do Estado, a Minas Arena e a Raposa entraram em acordo, assinando contrato até dezembro de 2025. As questões acerca da utilização do Mineirão e por quem se dá esse uso não são permanentes, e, por isso, geram discussões frequentemente.
Em 2024, o novo gestor da Sociedade Anônima de Futebol (SAF) do Cruzeiro, Pedro Lourenço, revelou que o clube não pretende sair do Mineirão, e tem a intenção de adquirir o estádio em um futuro distante. Segundo o empresário, a possibilidade da construção de um estádio próprio da Raposa nos próximos anos está descartada. Pedrinho também afirmou que está trabalhando nas negociações com a Minas Arena para que um contrato melhor seja elaborado após o vencimento do atual.
*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismos e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira Souza, sob supervisão de Phellipy Jácome