Templo do futebol mineiro, o Mineirão dessa década é motivo de grande nostalgia para aqueles que puderam frequentá-lo. Quem entende esse sentimento como ninguém são os cruzeirenses, que viveram seus anos de ouro nessa época

Por Antônio Augusto, Vinicius Duarte e Lucas Carmona*

Um dia que mudou a história do Cruzeiro. 15 de setembro de 1965.  O clube fazia sua primeira partida no Estádio Governador Magalhães Pinto e oficializava sua mudança do Estádio Juscelino Kubitschek, no Barro Preto, para o Gigante da Pampulha. Naquela noite de quarta-feira, coroada com a vitória por 3×1 sobre o Villa Nova, o torcedor cruzeirense tinha uma nova casa. O clube não apenas adotou o estádio, mas também forjou uma conexão duradoura e apaixonada com a torcida celeste e, através do sentimento de pertencimento àquele espaço, foi criada uma verdadeira relação de amor. 

Torcida Cruzeirense na final do estadual de 97 – Reprodução: Hoje em Dia

Ao longo das décadas, o Mineirão foi palco de incontáveis momentos memoráveis, ascensão de ídolos, feitos históricos, vitórias épicas e celebrações de títulos que se tornaram parte integrante da identidade cruzeirense. É nesse cenário grandioso que o coração do torcedor celeste bate mais forte, e onde gerações são unidas para apoiar a Raposa, consolidando o estádio como um templo, um símbolo do clube e do futebol mineiro.

Vendo estrelas

Se nos anos 1980, o time não ajudava em campo, nos anos 1990 a sinergia apaixonante com a torcida, chamada de “Nação Azul”, esteve mais forte do que nunca. Em um período de ouro, o time fez do Mineirão sua fortaleza. Com um desempenho impressionante, o Cruzeiro viveu um período de glórias histórico, vencendo pelo menos 1 título por ano, sendo 1 Libertadores, 2 Supercopas, 2 Copas do Brasil, 1 Recopa, 1 Copa Ouro, 1 Copa Master, 1 Copa Centro-Oeste, 2 Copas dos Campeões e 6 Estaduais.

Com viradas e jogos históricos, algumas dessas conquistas ficaram guardadas com bastante carinho na memória dos torcedores. Na final da Supercopa de 1991, no jogo de ida, o Cruzeiro perdeu de 2×0 para o River Plate, na Argentina. Já na volta, empurrado por uma torcida que acreditou, com mais de 70 mil pagantes, o estádio foi um verdadeiro caldeirão. Os estrelados venceram por 3×0, reverteram o confronto e levantaram o troféu.

A Supercopa do ano seguinte foi ainda mais marcante. Com uma média impressionante de 73 mil pessoas por partida no Gigante da Pampulha, o clube conquistou mais um título, com direito a um 4×0 sobre o Racing, time da Argentina, no 1º jogo da final. 

E no ano de 1997, o ápice. Em junho, na final do campeonato mineiro entre Cruzeiro e Villa Nova, 132.834 espectadores presenciaram a conquista celeste, no maior público da história do Mineirão. Dois meses depois, em agosto, a coroa maior. Diante de 100 mil pessoas, a Raposa conquistava seu bicampeonato da Libertadores em cima do Sporting Cristal, do Peru, por um 1×0, na base do apoio incessante de sua torcida. Durante toda a campanha, foram 6 vitórias e apenas 1 derrota no estádio, fazendo do Mineirão a sua força.

Um cruzeirense nos anos 90

Para quem esteve presente no Mineirão, o sentimento de nostalgia paira sobre sua lembrança. Não somente pelas conquistas de títulos que presenciaram, mas também pelo antigo Mineirão, que nas palavras do Lucas Narciso, vice-presidente da torcida organizada TFC (Torcida Fanáti-Cruz), era um estádio muito diferente do atual, assim como as pessoas que frequentavam o estádio.

Lucas, entrevistado para essa reportagem, viveu toda sua adolescência frequentando o Mineirão e lembra com muito carinho dessa época. Ele exemplifica as mudanças que aconteceram com a cidade de Belo Horizonte e o Mineirão. O deslocamento ao estádio, segundo ele, era muito truculento, devido aos muitos engarrafamentos, principalmente na Avenida Antônio Carlos – que àquela época ainda não havia sido duplicada e não contava com as pistas exclusivas para ônibus – e brigas com os torcedores rivais, principalmente em dias de jogos contra o Atlético Mineiro. Ele também tinha o costume de ouvir a rádio Itatiaia durante o engarrafamento para chegar ao estádio e depois no engarrafamento para sair do estacionamento. Nessa saída era comum que as pessoas ouvissem a narração dos gols da partida. Quando chegava a vez dos gols do Cruzeiro, todos os carros buzinavam em comemoração, mesmo que eles já tivessem presenciado o gol ao vivo.

Durante essa época, as semanas de clássico eram completamente diferentes de outros jogos, nelas a cidade respirava o jogo, desde a segunda-feira até a outra semana. 

“A venda de ingresso já era um evento. “Ah, vai ter Cruzeiro e Atlético domingo”. Pro jogo, cruzeirense comprava no Barro Preto e atleticano comprava na sede de Lourdes (…) Aí já era polícia, já era fila, já era gradil… já era confusão, cavalaria, que na época rolava pra danar. Já era uma loucura pra comprar ingresso. Era um aquecimento pro clássico. “Quantos ingressos a torcida do Cruzeiro vendeu?” Se a torcida do Cruzeiro comprasse 15 mil e a do Atlético 10 mil, pronto, vamos zuar. Já era uma zueira, sacou? Isso na quarta-feira e clássico domingo. A manchete no jornal, era o que ditava as resenhas, já mostrava “Cruzeiro compra mais”, isso já era uma zueira. A semana do clássico já era toda diferente, saca? Coisa que não tem hoje em dia não. (…) Ir pra divisa no estádio, agredir verbalmente os rivais (risos). Espremer a divisa, porque enchia muito o lado do Cruzeiro aí a gente invadia esse espaço vazio.”

Além dos clássicos, alguns jogos, como a final da Libertadores de 97 e as Supercopas de 91 e 92, ficaram bem marcados na mente de Lucas. Um deles é o de maior público da história do Gigante da Pampulha, na final do Mineiro de 1997. 

“Foi um absurdo! Esse jogo tem um fator essencial pra ter acontecido esse público, que foi mulheres e crianças não pagarem. Tanto que deu 70 mil pagantes e 50 mil não pagantes. (…) O que eu lembro muito era da torcida chegando naquele dia no estádio. Tinha muita mãe com filho, fazendo piquenique. (…) De uma hora pra outra, começou a entrar gente de um jeito que se você fosse no banheiro você não voltava pro campo (risos). Nas escadas não dava pra passar. Em cada degrau tinha 5 pessoas.”

Lucas também conta que a dinâmica dentro do Mineirão em si era um pouco diferente da de hoje:

“Antes, não havia tantas divisões de setores como ocorre hoje. Era apenas o setor inferior, que era a geral do Mineirão, onde os ingressos eram a preços bem populares, e o setor superior. Você podia andar por todo o anel que estava.  […] O torcedor que costumava ser mais frequente no estádio, já tinha seu lugar favorito para assistir o jogo e sempre ficava no mesmo ponto da arquibancada. Então se você ia a certo lugar, você via as mesmas pessoas de sempre. […] As torcidas organizadas já ficavam no setor sul, onde é o amarelo hoje. Na época, a Máfia Azul era praticamente a única e era a que embalava o ritmo do estádio. Enquanto hoje em dia, as músicas puxadas pelas TOs tem o estilo de torcer argentino, nos anos 90 estava em alta cantar músicas com ritmo de marchinhas de carnaval.”

Os tempos mudaram e as arquibancadas também 

Muitos torcedores que acompanham o cenário esportivo em BH acreditam que o público frequentador do estádio Mineirão está mais elitizado, o que alterou os rituais dos torcedores. Na infância de Lucas, nos anos 1990, segundo ele, era comum que pessoas fossem ao lugar e ficassem no estacionamento fazendo churrascos próximos aos seus carros com seus amigos, a presença de muitos ambulantes dentro e fora da esplanada vendendo comida e camisas falsificadas. 

Lucas relacionou a sensação atual de estar no estádio por causa de uma média de público menor do que na década de 1990, que, segundo o site Ludopedio, teve média de 18.589 (considerando jogos de Cruzeiro e Atlético no estádio durante o período). Enquanto nos 6 primeiros anos após a reforma para a Copa do Mundo de 2014, a média foi de 25 mil torcedores. Apenas os números não indicam a sensação de estar no estádio, o que depende do modo como as pessoas que frequentavam o local agem – algo que pode nos ajudar a entender o sentimento de Lucas.

“Ir ao Mineirão hoje está muito elitizado. Comparado a década de 90, o valor dos ingressos disparou, principalmente por não ter mais a geral, antes o ingresso na geral era 2/5 reais e depois que virou arena se perdeu esse setor popular. O preço da cerveja, do tropeiro, das comidas, do estacionamento, do transporte, tudo aumentou muito. Então as pessoas das camadas mais populares nem conseguem ir ao estádio mais. 

Não só o público que mudou, mas o modo de torcer no estádio hoje em dia é uma realidade completamente diferente da vivida nos anos 1990.

“Antes não tinham muitas restrições da festa da torcida. Podiam muitos bandeirões, fogos de artifício, sinalizadores, bastões de fumaça, eram menos proibições e punições às organizadas. Hoje em dia, não pode quase nada disso no estádio. A festa perdeu muito. Isso também aconteceu muito devido às punições sobre as organizadas que tem hoje”

Cruzeirenses fazendo festa na final da Libertadores – Reprodução: Debatezeiros

O estádio não apenas mudou seus arredores, mas também de aura, algo que aqueles que viveram o antigo Mineirão podem perceber com certa facilidade, como Lucas. Será que algum dia o Gigante da Pampulha voltará a ser um lugar onde a torcida vai se sentir “em casa”, ou que se aceitará a nova realidade elitista. É muito provável que nenhuma das duas coisas aconteçam. No entanto, algo que talvez seja o principal objetivo a ser alcançado pela categoria de sócio “Time do Povo”, que oferece ingressos para todos os jogos a singelos 10 reais com a menor mensalidade dentre os planos, que o Cruzeiro SAF. Agora administrado por Pedro Lourenço (dono dos Supermercados BH),  uma das grandes premissas da nova gestão é devolver a Raposa à sua torcida, com promessas de aproximar todos os públicos do clube. Criando, por exemplo, essas tentativas de facilitar acesso do público de menor renda ao estádio e que esperamos que não seja a última dessa gestão.


*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismos e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira Souza, sob supervisão de Phellipy Jácome