A história de um orelhão. Em primeira pessoa.
Crônica por Rodrigo Carvalho
Envelhecer, sentir o tempo passando por você e mudanças acontecendo. Todos atravessam essa fase, mesmo que alguns sintam mais, ou em diferentes proporções. Porém, todo mundo sabe que, com o passar do tempo, as memórias se tornam distantes, costumes caem em desuso, companheiros deixam de se ver. Comigo não foi diferente: saber que todos dependiam de mim, todos me buscavam, mas hoje em dia sequer lembram a minha função. Nos meus quase 100 anos de história, acompanhei os movimentos da cidade e as mudanças sociais, que podem ser observadas na moda, nas cores e no jeito de falar das pessoas que conheci na capital. Porém a carinha e o apelido carinhoso “orelhão” são assuntos mais recentes. Há 42 anos, recebi esse jeitão novo que condiz com a minha função – afinal, o formato melhora a acústica e protege o usuário.
É complicado viver num mundo mais ágil, móvel e leve, as pessoas não dependem de um grande e desengonçado orelhão. Tornei-me parte da paisagem urbana, em um complicado redemoinho de idas e vindas de transeuntes. Numa cidade que se move, gira e balança, ter um grande ponto fincado firmemente ao chão parece destoar do cenário cosmopolita e dinâmico de Belo Horizonte. Apesar de tantos anos assentado no mesmo local, por vezes recebi novas roupagens ou maquiagens derivadas de pequenas reformas, mas meu propósito continua sendo o mesmo: trocar créditos por palavras doces ou informações úteis. Esta é a vida de um orelhão, aceitar a ação do tempo, do vento, de vândalos – considerando não só quem depredou, mas também quem negligenciou – e ainda assim dar um alegre sinal de vida quando aproximassem meu gancho de seus ouvidos.
O mundo mudou – ou, melhor dizendo, Belo Horizonte mudou! A capital cuidava e acolhia orelhões, as pessoas tinham que se comunicar a todo o tempo, negócios necessitavam ser fechados, receitas de bolo precisavam ser repassadas e encontros deveriam ser marcados. As mudanças na cidade vieram aos poucos, o uso de telefones móveis foi se difundido, o número de habitantes cresceu e as empresas que de mim cuidavam perceberam que eu era um velho gagá. Virei um objeto que se torna útil em momentos de desespero, um fiel companheiro que estará te esperando na esquina quando o celular falhar ou a bateria acabar. Ah! Para minha sorte, essas baterias vivem deixando as pessoas na mão!
Não limitado a essa história caquética, busco no coração tempos gloriosos quando a minha função na sociedade era bem demarcada, e muitas pessoas se emocionavam ao reconhecer a voz de alguém importante vinda do outro lado da linha. De mim, todos dependiam, sendo que muitos se orgulhavam da minha presença e proximidade, pois significava o “ganha pão” de pequenos comerciantes, o namoro às escondidas de jovens casais apaixonados ou até mesmo a única maneira de entrar em contato com a família distante. Diversas histórias acompanhei, de diferentes realidades participei, mas o mais importante é que sempre estive ao lado de quem buscava auxílio, pois era o meu papel esperar e ser útil quando requisitado.
Já que minhas lembranças estão ganhando valor hoje, vou contar a história de uma garotinha chamada Raila, que na época tinha pouco mais de 13 ou 14 anos, mal tinha largado as bonecas e resolveu namorar. Naquela época as coisas não eram tão fáceis, não existia internet, nem celular, e o telefone da casa costumava ficar bem no meio da sala, onde era fácil para qualquer um alcançar e escutar. O jeito que a jovem garota encontrou para burlar o controle dos pais foi vir a mim, entregar as minhas tão adoradas moedinhas e discar o número da sua paixão. As ligações eram curtas, sem tempo para suspiros e sonhos acordados, pois como ela estava na rua qualquer um poderia ver e questionar o que aquela garota tanto fazia no orelhão. Naquela época, esses pequenos momentos, ou espasmos de felicidade, eram suficientes para Raila, apesar de saber que hoje em dia o único companheiro dela é um pequeno celular, que não carrega nada do meu charme, e vai estragar muito antes de criar a cumplicidade que um dia nós tivemos.
E não só de atos de coragem e rebeldia eu fazia parte. Dentre meus grandes parceiros estavam os comerciantes, que sempre buscavam minha companhia na esperança de que uma garotinha que foi ligar escondido dos pais ao final comprasse um pirulito para disfarçar. Ou, quem sabe, uma pessoa que foi ligar para a família no interior, e ao lembrar do gostinho de café quentinho e bolo de fubá, resolveu comprar nessa mercearia os ingredientes necessários. O que era certo é que eu me tornei um grande vendedor, ou pelo menos um excelente chamarisco para clientes, não sendo necessárias placas enormes em frente às lojas, ou propagandas barulhentas pelas ruas.
É triste não saber o futuro, viver em agonia de um possível fim para o qual estou caminhando. Não fosse por tais tempos de ouro, talvez eu não tivesse alcançado tantos lugares, tantas vozes e pessoas. Ainda bem que os humanos têm uma necessidade tão grande de se comunicar, se expressar e reatar contatos. São destes momentos únicos que eu sobrevivo, deixando um gostinho de dever cumprido.