Como o aumento da diversidade no ambiente universitário impactou as produções acadêmicas, o cotidiano de alunos e professores e ajudou a dar uma nova cara à universidade
Por Joice Luisa Silva Lopes e Eduarda Barcelos *
Com mais de uma década da sanção da Lei de Cotas, em 2012, as instituições de ensino público superior passaram por uma transformação significativa e seus desdobramentos podem ser vistos para além das universidades. Muito comentada e criticada, a Lei de Cotas mudou a cara das universidades, mas ela, por si só, parece não abranger a complexa rede de necessidades e realidades dos alunos e do ensino no país.
Estudo do setor de Estatística da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que, entre os anos 2019 e 2021, os alunos brancos correspondiam a 50% da quantidade total de estudantes matriculados, enquanto que os alunos pretos correspondiam a cerca de 12% desse total. Apesar da diferença, os números demonstram uma melhoria na presença da população preta e parda na UFMG, o que foi percebido pelo professor do Departamento de Comunicação Social e ex-aluno do curso de Jornalismo da UFMG, Elton Antunes.
“Eu entrei para a universidade como aluno da graduação em 1985. Na minha turma entraram 50 pessoas e eu posso dizer que tinham três pessoas negras. A universidade era uma universidade branca, mesmo na Fafich, que já não tinha o mesmo perfil das outras escolas. A universidade era completamente diferente da que a gente tem hoje.”, relembra Elton. Fafich é a sigla para a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, onde está alocado o curso de Comunicação.
“Eu vi uma mudança significativa na Fafich, particularmente, porque é onde atuo. O número de estudantes e de pessoas negras cresceu. Efetivamente apareceram questões que antes ficavam mais restritas dentro do curso. A gente teve que discutir quem eram esses estudantes que estavam chegando, de onde eles vinham e qual era a trajetória deles.”, acrescenta.
Percursos e produções acadêmicas
Por falar em trajetória e identidade, vale destacar que é impossível discorrer sobre a nova cara que estudantes negros deram à UFMG sem levar em conta a produção acadêmica desses alunos dentro da universidade. Os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), por exemplo, são maneiras de mostrar as apropriações dos conteúdos acadêmicos que os estudantes fizeram ao longo da graduação. Além disso, dizem sobre as preferências, escolhas e interesses dos formandos. São oportunidades de eles demonstrarem seu olhar diante de algum fenômeno.
Para Lucas Henrique, formado em Jornalismo pela UFMG no segundo semestre de 2022, o TCC foi a oportunidade perfeita de oferecer seu olhar e suas reflexões a algo que, para alguns, pode até ser considerado como mero entretenimento, mas que para ele vai além disso: o cinema. O interesse pela sétima arte ditou até mesmo o percurso de disciplinas que o Lucas decidiu seguir durante a graduação.
Passando por disciplinas como Oficina de Narrativas Audiovisuais, Teorias da Imagem, Novas Estéticas do Audiovisual e Cinema e Feminismo, Lucas chegou até o seu TCC. O tema? É claro que envolveriam os telões! Ele escolheu falar sobre o cinema no trabalho “Por um Cinema da Empatia: estratégias narrativas e complexidade de roteiro em ‘Nós’ (2019), de Jordan Peele”. Dentre os diversos debates que ele propôs com o tema, Lucas destaca a questão racial.
“Teve, é claro, a questão da identificação pessoal, por se tratar de um homem negro fazendo filmes com protagonistas negros e um olhar distante daquele hegemonicamente exercido em Hollywood e no cinema ocidental como um todo. Falando da importância social, creio que é fundamental analisar como este cinema, feito por cineastas negros e negras (e de outros grupos com pouca agência nestes lugares de criação artística), é capaz de trazer novas experiências e perspectivas que vão ao encontro de uma grande parcela do público que sempre buscou e lutou por se ver mais nas telas e também conseguem pautar o debate público, trazendo questões da vida social para o cinema e impulsionando uma desnaturalização de temas vistos como parte do dia a dia. O [filme] ‘Nós’ traz, por exemplo, comentários muito sofisticados sobre desigualdade social, e procura gerar no espectador um sentimento de empatia em relação a personagens que seriam a princípio moralmente reprováveis, de modo que possamos perceber a estrutura por trás daquelas figuras e de como seu comportamento vem de um sistema muito maior e mais perverso.”, explica o jornalista.
Essa aproximação entre identificação pessoal e a temática escolhida para o TCC também cabe no contexto de Isabella Lima. Ela e as estudantes Melissa Souza e Izabella Caixeta são alunas do oitavo período de Jornalismo e decidiram fazer um documentário em grupo, que teve como inspiração a vida profissional e afetiva da mãe de Melissa, que atua como trabalhadora doméstica. A trajetória profissional dela fez com as três refletissem sobre os contextos que giram em torno do trabalho doméstico realizado por mulheres pretas no Brasil.
O grupo escolheu relatar e refletir sobre as relações de afeto desenvolvidas entre trabalhadoras domésticas e filhos, os seus próprios e os filhos de seus patrões, assim como retratado no filme “Uma História Americana”, de 1990 e protagonizado por Whoopi Goldberg. Ele também diz sobre a relação de afeto desenvolvida entre empregadas domésticas e os filhos dos patrões, de uma perspectiva racial. Além de incorporar a trajetória de uma das integrantes à produção acadêmica, a temática também reflete os saberes que a universidade proporcionou às alunas. Isabella comenta que conseguiu “ampliar pontos de vistas e perspectivas que até então não tinha levado em consideração. Além de ver através de um viés de pesquisa alguns temas [com] que às vezes eu até mesmo tinha contato”, descreve a estudante.
O recorte feito a partir do contexto das trabalhadoras domésticas no Brasil serve de gancho para discussões sociais, explica Isabella. “A vivência dessas mulheres no mercado de trabalho muitas vezes perpassa por violências de gênero, violência de raça, misoginia, patriarcado. Então são muitas questões que envolvem ser uma trabalhadora doméstica no Brasil na atualidade e para além disso a profissão é muito sub-representada no país, marcada por estereótipos e desvalorizada, não tem seu devido reconhecimento, nem a sua voz.”, completa Isabella.
Ensino pautado pela reflexão social e cultural
A produção acadêmica feita pelos alunos negros da faculdade de Jornalismo carrega consigo diferentes percursos de vida, perspectivas, olhares e dinâmicas. Tudo isso ajuda a reconstruir a identidade da universidade. Inclusive, esse processo permitiu que ocorresse um fenômeno de incorporação e discussão de diferentes saberes.
“Nós temos pessoas pretas no curso e disso a gente tem que tratar porque a universidade, por mais acolhedora que ela tente ser, ainda é um espaço marcado pelas questões raciais e pelo racismo. A questão do racismo ou étnico-raciais passam a fazer parte da nossa pauta no jornalismo. Então como o ensino pode incorporar isso?”, questiona o professor Elton.
Essa incorporação das questões raciais pode ser percebida, por exemplo, nas reflexões trazidas para dentro das disciplinas, como mostra a aluna Isabella Lima. A futura jornalista comenta que ter acesso a novas visões de mundo permite a ela se apropriar melhor desses temas, tanto como pessoa quanto como estudante.
“A minha jornada na graduação perpassa por muitas questões de gênero, questões culturais com as quais me identifico muito e dizem muito sobre minha vivência”, relata Isabella. “Um dos projetos de que mais gostei de ter participado foi o Laboratório de Rádio e Mídias Digitais, com o PH [professor Phellipy Jacome], onde, na época, minha turma foi responsável por construir a décima temporada da Rádio Terceiro Andar. Nessa temporada a gente abordou o tema ‘Corpo e Território’. Discutimos muito sobre questões que estão relacionadas a quais corpos ocupam quais lugares, quais são as limitações que esses corpos encontram em determinados lugares, o que é entendido como território, quais territórios as pessoas conseguem acessar dentro do âmbito da própria universidade, dentro do âmbito da nossa comunidade, do nosso país. A gente entrou em vários tensionamentos, como capacitismo, gordofobia, questões LGBTQIAP+ questões raciais e também de gênero.”, destaca.
Desafios
O estudo realizado pela Prograd mostra que a chegada de novos alunos negros na UFMG se manteve estável de 2019 a 2021. Contudo, cerca de 18% do índice de trancamento parcial e 11% do índice de trancamento total de matrícula são referentes aos alunos pretos e pardos.
Esse último dado coloca em foco uma questão muito mais completa no que diz respeito à Lei de Cotas. O efeito de aumentar a população de estudantes pretos e pardos da universidade é apenas o começo de um longo caminho que deve ser percorrido em busca de diminuir desigualdades historicamente acumuladas. É o que comenta o professor Elton Antunes.
“O racismo é presente também na universidade, às vezes de forma pouco percebida ao comparar com outros espaços, mas também há racismo na universidade. Não só pela presença menor desse contingente da população, mas também pelos tratamentos que são dispensados. A universidade tem que reconhecer o funcionamento dela mesma à noite e de dia. Ele é diferente. E onde a maioria dos estudantes negros estão é no curso noturno. Então a falta de infraestrutura e de condições aparece.”.
Tudo isso mostra que a Lei de Cotas ainda caminha com passos de criança no auge de seus onze anos. Além das políticas de apoio no contexto das ações afirmativas, o papel dos atores da universidade são preponderantes para que os saberes da população negra da UFMG passem a fazer parte da identidade da universidade. Pois, uma coisa é certa, eles estão sim dentro desse ambiente acadêmico. O Lucas e a Isabella são provas disso.
“A cota foi necessária, foi fundamental para a mudança da cara da universidade, mas é só o começo. É preciso assegurar condições não só de entrada, mas também de permanência e de inclusão de novos estudantes negros na UFMG.”, reitera o professor Elton Antunes.
*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação: Jornalismo sobre Ciência e Decolonialidade”, coordenado por Antonio Fausto Jr., Jornalista e doutorando do PPGCOM/UFMG