Conheça a Casa dos Cacos, um pedaço da história de Contagem formado inteiramente por cacos de louça.
Incontáveis, resistem há exatos 41 anos em toda a superfície do que era uma casa de campo, hoje na Rua Ignez Glanzmann. Desde 2001, a chamada Casa dos Cacos, um dos símbolos da história contagense, está vazia, de portas fechadas e com risco de se perder fisicamente, pedaço por pedaço.
A fama acidental
Aos 63 anos, um geólogo aposentado começou a construir uma residência em local afastado da cidade, em uma região de ruas de terra, com poucos moradores, próxima a estação ferroviária de Contagem. Carlos Luiz de Almeida morava com sua esposa e alguns dos filhos em Belo Horizonte, no bairro Carlos Prates, e queria ter um local para reunir toda a família. A construção ficou pronta em setembro de 1973.
Almeida tinha seus próprios planos para decorar a nova obra. Ele já havia feito um mosaico com pedaços de louça nos muros do jardim da esposa e queria testar a técnica para montar todo o banheiro da casa de campo. O trabalho era grande e os cacos eram doados de lojas e trazidos da estação Calafate por trem, até Contagem. “Quando a pessoa não queria dar, eu rezava, aí a louça quebrava e eles me davam os cacos,” disse Almeida em entrevista ao Jornal dos Bairros, em janeiro de 1977. “Levava uma hora para colar uns dez pedaços.”
Assim que o banheiro ficou pronto, ele decidiu montar os outros cômodos. Foram seis meses só para fazer o teto da sala de estar, usando cimento branco e uma vara de pesca para firmar os cacos. Ele também começou a decorar a fachada, a varanda e o quintal da residência. Só em uma parede da área externa, foram coladas 823 xícaras de cafés tradicionais de BH, como o Nice e o Pérola.
A casa começou a chamar atenção da imprensa local e de Belo Horizonte. A constante publicidade do lugar começou a interferir na vida da família, como contou a filha de Carlos, Maria Inês de Almeida, em 1999, para o Núcleo de Memória da Superintendência de Cultura de Contagem:
“A gente ia aos domingos, passar o fim de semana. Aí, foi um repórter, fez uma propaganda na televisão, saiu outra no jornal e foi começando. Não tivemos mais condições de passar os domingos lá porque era visita demais e a gente não tinha liberdade mais de fazer um churrasquinho.”
A partir do final dos anos 70, Carlos de Almeida começou a fazer aparições constantes na televisão nacional. Em 10 de março de 1971, o aposentado participou do Programa do Chacrinha, um de seus ídolos, vestindo um terno de 15kg feito completamente de cacos. Ele também foi entrevistado em 1975 pelo Fantástico da TV Globo e, em 16 de outubro do mesmo ano, foi manchete do jornal norte-americano The Daily Tribune.
A residência em que os Almeida usavam para se reunir no fim de semana havia se tornado a Casa dos Cacos de Louça. O seu criador, agora, era uma figura da mídia. No início dos anos 80, Carlos participou de programas dos maiores canais de TV do país, como o Programa do Silvio Santos, na Tupi e na atração estrangeira Acredite Se Puder (Ripley’s Believe It or Not!, da ABC), exibido na Rede Manchete.
Para o casamento de uma das filhas em Brasília, ele usou o traje de cacos. Os jornais da cidade o procuraram e sua história chegou aos ouvidos da primeira dama Lucy Geisel, esposa do ex-presidente militar Ernesto Geisel. O geólogo voltou para Belo Horizonte com um conjunto de jantar completo do Palácio da Alvorada. Os pratos foram postos na área do quintal, próximos a outra relíquia presidencial: uma réplica da Catedral de Brasília doada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek.
Não era só pela casa de Contagem que Almeida era reconhecido. Segundo sua filha Maria Inês, ele atendia como quiromante na residência da família em Carlos Prates. O aposentado se dedicava aos estudos ocultos, espíritas e da umbanda. Com o avanço da idade e da fama, suas sessões com bola de cristal e leitura de mãos se tornaram mais exclusivas:
“Ele ficou conhecido também como ‘Professor Carlos’, professor de quiromancia. Várias pessoas iam lá. O pessoal de televisão, políticos iam lá tomar parecer com ele, saber o que é que ia acontecer. Isso ele fez por muitos anos e ficou cansado. Escolheu só um dia da semana, na segunda-feira. Só atendida até o meio dia, então, o pessoal ia cedo para ser atendido.”
Em 1987, a Casa dos Cacos, já uma referência da cidade, abrigou um jardim de infância, com cerca de 40 crianças que viviam na região. Elas aprendiam com Carlos a montar os objetos de cacos. O quintal se transformou em um pequeno parque com esculturas de animais e brinquedos de pedaços de louça. Almeida, aos 77 anos, já tinha dificuldades de se locomover até o lugar, devido a uma fratura na perna.
Nesta época, o aposentado também apelava ao governo por um tombamento da casa como patrimônio cultural de Contagem. Carlos de Almeida Lerroy faleceu aos 79 anos, em 4 de dezembro de 1989. A Casa dos Cacos de Louça só foi tombada dois anos depois de sua morte.
O abandono do patrimônio
Contagem é uma cidade dormitório. Foi no início da década de 50 que o desenvolvimento da indústria contagense gerou uma alta de empregos e, consequentemente, atraiu novos moradores. De acordo com o censo do IBGE, em 1970, cerca de 75% da população residente não havia nascido em Contagem. Já no ano 2000, a cidade ainda recebia quase 21% das pessoas que se mudavam de Belo Horizonte. Hoje, o município é o terceiro mais populoso de Minas Gerais.
Quem mora em Contagem, no entanto, tem poucas opções de lazer público e gratuito. A Fundação Municipal de Cultura, criada há apenas dois anos, tenta manter um circuito cultural na região para que a juventude e as famílias contagenses não precisem procurar fora da cidade por opções acessíveis. Mesmo assim, é difícil competir contra o investimento privado dentro da cidade, como o Itaú Power Shopping e outros centros comerciais.
Outra dificuldade é relativa ao uso do patrimônio público do município. O Parque Municipal Gentil Diniz, uma relíquia de 30.000m2 do período colonial, é pouco frequentada para toda sua extensão, inclusive aos fins de semana. Além da Casa dos Cacos, interditada há 13 anos, o tradicional Cine Teatro também foi fechado Defesa Civil, assim que foi assumida a Fundação de Cultura da cidade, em 2012.
A casa de campo de Carlos de Almeida foi escolhida pela Fundação para ser a primeira obra interditada de Contagem a receber revitalização. Até agora, a vistoria feita no local prevê um trabalho longo e caro para que as portas sejam reabertas para a população.
Hoje, a casa sofre de infiltrações, rachaduras e quebra da camada de cimento onde estão grudados os cacos. Os muros externos estão pichados e a porta de entrada está quebrada. Os únicos frequentadores da casa são os animais da vizinhança e os técnicos da empresa responsável pela vistoria na estrutura comprometida da obra.
A Casa dos Cacos de Louça foi comprada pelo município de Contagem em 1993 e, desde a interdição, em 2001, nada efetivo foi feito para a manutenção da casa. O interior da casa, como era nos anos 80, só sobrevive na memória dos adultos contagenses e nas fotografias da época.
O projeto que conta quais são as mudanças que serão necessárias para o fim da interdição já foi entregue para a Prefeitura. Agora, os funcionários da Casa de Cultura Nair Mendes, parte da Fundação que cuida do patrimônio de Contagem, se preparam para o segundo processo, que é a abertura da licitação para revitalizar, de fato, a Casa dos Cacos.
O coordenador de Política de Memória Cultural do grupo, Thiago Alves, espera que o investimento de grandes empresas possam facilitar a reforma. “Não vai sair barato. É uma restauração que nunca foi feita antes. Não existe nenhuma casa feita de cacos no mundo.” Só o relatório da vistoria custou cerca de R$ 120 mil para os cofres públicos.
O plano da Fundação Municipal de Cultura é transformar a casa em um museu, com rampa externa, para que seja acessível para deficientes físicos. Como a parte interna não é habitável, um cômodo anexo ao quintal, que foi construído pela própria Prefeitura, seria utilizado para abrigar banheiros e uma sala administrativa da residência.
Na melhor das hipóteses, a Casa dos Cacos pode ficar pronta em 2016, o que não parece ser o caso. Mesmo se esse prazo não oficial se cumprir, Thiago não tem certeza se a casa ainda receberá tanta atenção do público quanto um dia teve. “A maioria dos habitantes daqui vão para outros lugares procurar cultura”, ele explica. “Não adianta só o governo fazer a parte dele. É a população que faz a identidade de Contagem.”