A falta de espaços adequados e de políticas específicas para pessoas LGBTQIAPN+ nas unidades prisionais é um dos desafios enfrentados no sistema penitenciário brasileiro. Promover a conscientização e a implementação de medidas que assegurem o acolhimento e a proteção dos direitos motiva pesquisas acadêmicas e projetos assistenciais.
Por Bruna Batista, Dairine Moreira, Pedro Oliveira, e Vinicius Micheletto*
O Presídio de Bicas I, em Minas Gerais, possui uma ala específica para pessoas LGBTQIAPN+ desde sua inauguração, em 2009, sendo pioneiro nessa iniciativa. Em 2021, tornou-se a primeira unidade de referência exclusiva para esse público. A pesquisadora Vanessa Sander, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conduziu, em sua tese de doutorado, um estudo antropológico sobre os circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais.
Intitulado “Pavilhão das sereias: uma etnografia dos circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais”, o trabalho dedica-se a observar a “Ala Rosa” de uma prisão masculina na região metropolitana de Belo Horizonte, além de descrever e discutir as normativas de Estado, os discursos sobre violência sexual, territórios de prostituição e tecnologias de gênero, bem como o movimento LGBTQIAPN+.
A pesquisadora conta que o interesse pela temática surgiu durante a graduação, quando participou do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG) como bolsista de Iniciação Científica (IC), mas passou por uma série de etapas. Segundo ela, “o Estado não possuía dados sobre a população trans e travesti de Belo Horizonte, e o próprio Núcleo, em parceria com movimentos sociais, desenvolveu uma ampla coleta de dados através de um questionário para traçar o perfil socioeconômico”. Com essa experiência na IC, Vanessa se aproximou dos circuitos de prostituição de pessoas trans e travestis e realizou sua pesquisa de mestrado acerca da prostituição de rua, com foco nas relações entre pessoas trans e em suas relações com esse trabalho.
“A partir disso, eu comecei a ver que a prisão era um espaço muito comum na trajetória dessas pessoas. Eu chegava e perguntava ‘cadê a fulana?’ e a resposta era ‘rodou’, ‘tá presa’, ‘tá respondendo em Bicas’. Eu vi o tanto que a prisão era um negócio muito frequente e fiquei intrigada e incomodada com isso. É então que surge o meu projeto de doutorado, com o objetivo de tentar entender esse circuito de criminalização, de encarceramento que estava presente ali, principalmente com as travestis trabalhadoras sexuais.”, explica Vanessa.
De acordo com a pesquisadora, sua experiência como visitante de uma prisão foi bastante diferente. Ela aponta que as instituições prisionais não são transparentes e que o acesso é complicado, visto a ausência de regras claras para a entrada de pesquisadores. Durante a realização do estudo, a prisão enfrentava uma crise, o que geralmente resultava em restrições ainda maiores de acesso.
Segundo Vanessa, “alguns pesquisadores conseguiram acesso por meio da pastoral do cárcere, uma instituição religiosa, mas optei por não seguir esse caminho”. Ela tentou abordar o canal formal, mas não obteve resposta. Mais tarde, o diretor da prisão estava buscando voluntários para realizar trabalhos devido à situação difícil, foi quando ela se juntou a uma travesti como voluntária e conseguiu realizar algumas entrevistas. Ela enfatizou que sua afiliação a uma universidade não foi relevante para seu acesso à prisão.
Ao analisar o dia a dia do pavilhão LGBTQIAPN+, a antropóloga pôde descrever, sob uma perspectiva científica, as dificuldades de diálogo entre as políticas estatais e sua implementação prática, em meio a uma constante crise, superlotação e disputa por diferentes representações de gênero e de sexualidade no gerenciamento de travestis e transexuais em cumprimento de penas.
Transpasse
Para além de pesquisas com as de Vanessa, a UFMG possui alguns projetos que atuam na luta pelos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, como é o caso do Transpasse e do próprio Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG), que teve grande influência na trajetória da autora. Criado em 2019, o Transpasse, juntamente com a Divisão de Assistência Jurídica e o NUH, desempenha um papel fundamental nas demandas relacionadas ao encarceramento e à criminalização de pessoas trans e travestis.
Atualmente um dos objetivos principais é buscar meios de romper os ciclos de violações que acarretam na criminalização de pessoas trans e travestis. Busca-se inseri-las de fato nas redes de serviços socioassistenciais e de saúde, para que possam ter acesso a direitos básicos como emissão gratuita da segunda via de um documento, aquisição de determinado medicamento ou tratamento, inscrição em cursos profissionalizantes, realização do cadastro único e verificação da possibilidade de receber benefícios como o Bolsa Família.
O público do Transpasse é a população trans e travesti de BH em situação de extrema vulnerabilidade social. E os atendimentos são voltados aos grupos sociais alvo de um sistema penal racista, seletivo e transfóbico. O Transpasse presta plantão de atendimento todas as sextas-feiras, das 12h às 14h, na Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, que fica na Rua Guajajaras, nº 300, Centro de BH.
As pesquisas acadêmicas e projetos assistenciais que buscam compreender e melhorar a vivência de pessoas LGBTQIAPN+ em presídios refletem a necessidade de conscientização e de implementação de medidas que garantam a proteção e o respeito aos direitos dessas pessoas privadas de liberdade.
O estudo realizado por Vanessa Sander destacou as dificuldades enfrentadas no diálogo entre as políticas estatais e sua efetiva aplicação, em um contexto de crise, superlotação e desafios na gestão de travestis e transexuais em cumprimento de pena. Além disso, iniciativas como o Transpasse desempenham um papel crucial na defesa dos direitos e no apoio às pessoas trans e travestis, buscando romper os ciclos de violações e promovendo o acesso a serviços socioassistenciais e de saúde. Essas ações são fundamentais para enfrentar um sistema penal que muitas vezes é marcado por discriminação e exclusão.
*Reportagem produzida no “Laboratório de Comunicação: Jornalismo sobre Ciência e Decolonialidade”, coordenado por Antonio Fausto Jr., Jornalista e doutorando do PPGCOM/UFMG