Esporte universitário da UFMG revela barreiras que nem sempre aparecem nas competições.
Por Caio Domingos e Nayara Calazans

João sempre foi apaixonado por esportes. Cresceu driblando na rua e na quadra, em partidas de vôlei, queimada ou handebol — mas era no futebol que o coração batia mais forte no peito.
Ainda no Ensino Médio, descobriu que a cena clássica de crianças entrando em campo com os jogadores — gesto que virou tradição no futebol — foi idealizada pelo Diretor de Relações Públicas do Atlético Mineiro. A partir daí, o seu futuro estava definido: queria trabalhar justamente ali, nos bastidores das competições.
Alguns anos depois, virou calouro de Relações Públicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas, fora das salas de aula, o esporte passou a parecer cada vez mais distante.
Morador de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, João enfrenta quase duas horas de deslocamento até o campus onde estuda. Quando tenta participar dos treinos das equipes universitárias, o custo pesa: são cerca de R$ 25 só com transporte — e isso sem contar a alimentação.
A história de João não é um caso isolado. É, na verdade, um retrato coletivo, quase sempre fora de foco. Um recorte importante, muitas vezes invizibilizado, na qual as barreiras sociais se erguem entre os estudantes e o esporte dentro da universidade.
Uma visita ao passado
A história do esporte universitário no Brasil começou a se estruturar entre 1933 e 1941, quando estudantes de estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais criaram as primeiras federações esportivas estudantis. Sem apoio regular do Estado, essas iniciativas partiram dos próprios alunos, que organizaram competições e buscaram formas de financiamento — como festas e pedidos pontuais ao poder público.
Esse protagonismo, porém, começou a mudar com o Estado Novo, em 1937. Em 1941, o governo Vargas criou a Confederação Brasileira de Desportos Universitários (CBDU) e passou a controlar oficialmente o esporte universitário, transformando-o em ferramenta de disciplina, nacionalismo e controle ideológico da juventude.
Apesar do discurso de integração, o esporte nas universidades refletia a realidade de um ensino superior elitizado. Em uma sociedade majoritariamente analfabeta, a vivência esportiva dentro das universidades era privilégio de poucos — principalmente jovens brancos, homens e das classes mais altas. Assim, o esporte universitário, desde suas origens, foi mais um espelho das desigualdades sociais do que um espaço real de inclusão.
Esporte na UFMG
Na Universidade Federal de Minas Gerais, o esporte ocupa um espaço relevante, mas ainda desigual. A instituição conta com estruturas como o Centro Esportivo Universitário (CEU), o Centro de Treinamento Esportivo (CTE), referência nacional, e uma variedade de projetos de extensão que mantêm viva a prática esportiva entre os estudantes.
Além da infraestrutura material, a UFMG também conta com atléticas históricas. As atléticas são associações formadas por alunos de um ou mais cursos de uma faculdade, que atuam voluntariamente para organizar atividades esportivas, culturais e sociais dentro da universidade. Atualmente, a UFMG possui 15 atléticas, que são fundamentais para promover a integração entre os estudantes e fomentar a prática esportiva.
Mas o que está no papel nem sempre se traduz em acesso pleno. Apesar da infraestrutura e das oportunidades existentes, a prática esportiva ainda enfrenta barreiras invisíveis — como o tempo, o deslocamento, o custo e a falta de reconhecimento institucional. Em muitos cursos, por exemplo, a atuação em atléticas e projetos esportivos não é validada como atividade complementar, o que acaba desestimulando a participação dos estudantes.
Esses obstáculos, muitas vezes ignorados, se refletem também nas competições. Mesmo com títulos expressivos e uma estrutura consolidada, a vivência esportiva de muitos estudantes não é tão celebrada quanto os troféus. O brilho das medalhas esconde desigualdades que seguem presentes fora das estatísticas e dos pódios — especialmente quando olhamos para quem são os corpos que conseguem, de fato, competir.
Dentro das quadras, mas fora dos holofotes
A UFMG é a atual campeã geral dos Jogos Universitários Mineiros (JUMs) — evento organizado pela Federação Universitária Mineira de Esportes (FUME). Título que rende postagem no feed, grito de torcida e orgulho institucional. Entretanto, a torcida nunca sabe o que, de fato, acontece dentro dos vestiários, porque quando a disputa é pra valer, os corpos que atravessam barreiras sociais, de gênero, sexualidade ou raça seguem ficando fora do enquadramento.
Os recortes são muitos, e começam nos lugares menos óbvios. A seleção técnica de atletas para as competições parece ter um critério claro: escolher os melhores. Mas o que define quem é “melhor”?
Para Humberto Oliveira, aluno de Fisioterapia e Diretor de Recursos Humanos da Associação Atlética da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG, a questão está na origem das oportunidades. O que costuma ser chamado de “nível técnico” é, muitas vezes, apenas a herança de quem teve a chance de jogar desde cedo — ou não.
“Dependendo da modalidade, existem menos LGBTs nos campeonatos do que nas ‘peladinhas’. É uma questão de nível técnico e está relacionada com oportunidades. Gays do futsal não têm o mesmo nível técnico porque, durante a vida, não tiveram a mesma oportunidade e incentivo que outros garotos que não são da comunidade.
Se eu não pratiquei lá com 14 ou 15 anos, quando estou desenvolvendo habilidades motoras e essa especialização, eu vou ter o que chamamos de ‘limiar’ do que eu vou aprender. E essas pessoas que praticaram, obviamente vão estar acima de mim.”
A vulnerabilidade econômica também é uma questão ao se pensar na diversidade dentro das competições. As taxas de inscrição para os campeonatos são altas e, para muitos estudantes, a soma vira um impeditivo. Afinal, tem o transporte, o lanche, o tempo.
“Em campeonatos, como o da UFMG, que estava custando 50 reais, e o metropolitano que custa 75, se você soma dá 105 reais. Tem muita gente que não tem condição de pagar, fora os treinos e fora os jogos”
Enzo Beber, aluno de futsal da atlética Fafich.
Mas não é só o dinheiro que restringe o acesso. O preconceito também marca ponto. Em 2023, durante a semifinal dos Jogos Universitários Mineiros, justamente em uma das edições vencidas pela UFMG, duas atletas negras da equipe de vôlei foram chamadas de “macacas” por um homem da torcida adversária. A denúncia foi feita, mas o silêncio institucional ecoou mais alto do que qualquer grito da torcida.
A transfobia também tem deixado marcas. Ano passado, durante a Copa União da UFMG — campeonato interno entre atléticas —, uma atleta trans sofreu um episódio de transfobia: o árbitro “errou” seu pronome mais de uma vez ao longo da partida. Mesmo diante de um time inteiramente feminino, a escolha de palavras do árbitro escancarou o incômodo com a presença de uma jogadora trans.
Nalú, estudante de Letras e Presidente da AALEB — Associação Atlética da Faculdade de Letras, Escola de Ciência da Informação, Escola de Belas Artes e Escola de Música da UFMG — comentou o ocorrido:
“[…] Meu Deus, em pleno século 21 isso está acontecendo? Meu Deus 2024 e isso está acontecendo? Meu Deus é um campeonato dentro da UFMG e isso tá acontecendo? […] sim a gente tá em 2024, sim você tá dentro da UFMG e esse tipo de preconceito prevalece.
Ele é muito forte ainda e isso faz com que a gente pense que sim a gente tem muita coisa pra lutar, debater e a ser mudada, para que um dia isso nunca mais aconteça.”
Essa questão é ainda mais urgente quando se entende o que está em jogo. Cerca de 50 atletas que representaram o Brasil nas Olimpíadas de Paris 2024 vieram diretamente dos Jogos Universitários Brasileiros de 2023. Ou seja, essas competições não são apenas passatempo ou recreação: são plataformas reais de projeção nacional e internacional. Portanto, quando a diversidade fica no banco reserva, o país inteiro perde a chance de enxergar o seu potencial esportivo.
Mais vale um passo lento do que ficar parado
Apesar dos pesares, o jogo da inclusão no esporte universitário segue com a bola rolando — mesmo que devagar. Entre os avanços tímidos, mas significativos, destaca-se a gestão da Atlética da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional UFMG (EEFFTO), que em 2023 foi inteiramente composta por mulheres. Essa conquista, embora ainda rara, representa uma mudança importante em um espaço tradicionalmente dominado por homens.
Ainda na EEFFTO, o sistema de gestão da atlética permite que os alunos pratiquem mais de uma modalidade, pagando um valor único mensal de 55 reais para geral e 30 reais para pessoas que possuem assistência estudantil da universidade. Isso explicita que, ainda que não seja regra, existem movimentações para abarcar alunos de baixa renda no cenário esportivo universitário.Outro marco relevante é a eleição da primeira presidente negra da Atlética da Medicina, uma instituição com mais de 30 anos de história. Essa vitória simboliza a quebra de barreiras e a ampliação da representatividade dentro das atléticas da universidade.
Quando se pensa nas competições, também existe um esforço claro das atléticas em incluir atletas em vulnerabilidade econômica. A AAFAFICH e a AALEB, por exemplo, frequentemente promovem “rifas” e outras ações sociais que possibilitam a vivência esportiva para alguns estudantes.


Além disso, o apoio de instituições como o Centro Esportivo Universitário (CEU) da UFMG — clube onde os alunos praticam esportes e participam de campeonatos — tem sido fundamental para fortalecer espaços em que o esporte universitário ocupa posição central.
Da mesma maneira, projetos de extensão esportivos, externos às atléticas, são uma oportunidade para que estudantes possam conhecer e praticar uma modalidade. Cesar Castilho, Coordenador do projeto de extensão que oferece aulas de tênis no CEU, ressalta o papel do centro esportivo e destaca como essas iniciativas contribuem para ampliar o acesso dos alunos ao esporte, promovendo aprendizado e inclusão.
“É interessante pensar como a UFMG tem um espaço onde se propicia isso, às vezes, a gente não dá o devido valor ao CEU, mas se for comparar com outros campus, talvez seja um dos melhores locais que tenhamos no Brasil.
[…] sobretudo, aqui no Brasil a gente vê que o acesso aos esportes e algumas modalidades é muito difícil, devido a classe social. Entretanto, nesse projeto de extensão realizado no CEU existe a presença de muitos jovens que nunca tiveram contato com jogos de raquete antes”
O esporte universitário na UFMG acontece entre conquistas visíveis e disputas que nem sempre são percebidas. Há quem levante troféus, mas também quem precise vencer distâncias, custos e preconceitos para apenas estar presente. O que se vê nas quadras é só uma parte da história. Fora delas, seguem em jogo questões sobre acesso, reconhecimento e pertencimento.
*Reportagem produzida na disciplina de “Laboratório de produção de reportagem” sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos.