Seja para embalar o sono dos filhos ou simplesmente contar algo que já vivemos, todos nós narramos histórias uns para os outros. Mas seria possível ensinar alguém a ser um bom contador de histórias? Pelo menos essa é a proposta de alguns cursos interessados na profissionalização da área que surgiram recentemente no Brasil, em que um contador experiente ensina aos interessados como desenvolver habilidades de memorização, técnicas de fala e como se portar frente ao público, dentre outras.
Em Belo Horizonte, a única escola que oferta cursos periódicos é a Aletria. Nascida como editora de livros infantis e produtora cultural, a empresa oferece duas turmas por semestre. Em 2017, os narradores profissionais eram formados pelo valor de R$890,00 (além de uma taxa de matrícula de R$90,00), no curso “A arte de contar histórias”, que inclui uma parte teórica sobre a tradição de narração oral e história das narrativas, além de técnicas de memorização, exercícios de desinibição, respiração, voz e performance.
A Transite foi a uma dessas aulas e te conta o que viu.
Alunos de primeira viagem
A dupla de repórteres Vitor e Vitória (que bem poderia ser uma dupla sertaneja) conta como foi a experiência na aula de contação de histórias.
Eu não vou te contar como é uma contação
Para uma paulista perdida em Belo Horizonte há um ano, até mesmo o caminho percorrido até à aula de contação de histórias tornou-se uma novidade. Eu nunca havia visto ou lido nada sobre contação de histórias.Tanto que quando nos propusermos a produzir a matéria, eu tive certo receio, pois aquele mundo era (e continua sendo) muito novo para mim. Mas decidi que mergulharia ao máximo na contação e foi isso que fiz, ou pelo menos tentei fazer. A timidez ainda é um traço característico da minha personalidade. O trajeto feito pelo ônibus até o centro da cidade eu já sabia de cor. Na verdade, demorou alguns bons meses até eu gravar. Precisei escrever passo-a-passo o caminho que eu deveria seguir inúmeras vezes mas, naquele dia, cheguei à Estação Carijós com segurança. “Ok, cheguei até aqui, mas o que eu faço agora?” A minha sorte é que eu não estava sozinha, o Vitor me acompanhava e, embora ele também não conhecesse a cidade assim tão bem, pelo menos estava com o trajeto todo feito pelo celular, o que já facilitaria as coisas.
Meia-hora de caminhada até chegar ao bairro Floresta e, a partir desse momento, cada esquina era um misto de sensações. O entusiasmo de estar em um lugar desconhecido e, principalmente, a nostalgia que aquele local me trazia. Aquela região específica do bairro, intimista e simples, era muito similar a que eu morava em minha cidade natal, no interior de São Paulo, antes de me mudar para Belo Horizonte. Durante o caminho, observava os moradores cumprimentando todos que passavam, jogando conversa fora em uma das diversas praças do bairro e tudo que eu conseguia pensar era a saudade que aquilo me trazia: eu me enxergava naquele ar interiorano que, durante muito tempo, foi a minha realidade. Percebi que, de fato, estava em um local diferenciado da capital mineira. Chegando à Editora Aletria, local onde as aulas são dadas, fui tentando observar e me atentar à tudo que estava ao meu redor, desde a arquitetura acolhedora da casa até mesmo os livros de contação expostos no hall de entrada..
Antes da aula começar, Vitor e eu conversamos com algumas alunas, e também com a professora do curso, bem rapidamente. A alegria e a paixão no olhar de cada pessoa que nos falava da importância da contação de histórias em sua vida me deixou com uma pulga atrás da orelha. “O que será que existe de tão especial em contar histórias?”, eu pensei. Animada, vi a professora arrumando um cenário na sala. Provavelmente, ela começaria a aula contando alguma história. Ela cumprimentou as alunas e o único aluno e disse o que eu já presumia: “Hoje, iniciaremos a aula com uma história baseada numa canção que muito de vocês já devem conhecer, chamada ‘A Árvore da Montanha’”. Eu tentei me conter ao máximo, mas acabei soltando um singelo, porém vivaz, “Eu não acredito!” que, provavelmente, a aluna sentada ao meu lado escutou, pois ela olhou para mim e sorriu.
De fato, eu estava bem agitada: a minha primeira experiência com a contação de histórias seria através de uma canção que possui grande importância na minha vida. Naquele momento, me vi mais uma vez nostálgica, me lembrando do tempo em que eu e minha família viajávamos à praia nas férias. Era mais ou menos umas quatro horas de viagem e, durante o percurso, meus irmãos e eu passávamos praticamente todo o caminho cantando “A Árvore da Montanha”. Pensando agora, imagino o quanto aquilo devia ser estressante aos meus pais… três crianças cantando (ou gritando) uma canção durante quase quatro horas! Mas o fato é que aquela música tinha um lugar muito especial no meu coração, pois me lembrava de momentos que não eram tão comuns na minha infância, mas que, quando ocorriam, me faziam muito feliz.
Depois dessa breve lembrança, voltei a minha mente à aula, escutando atenciosamente a professora contar a história. Fiquei hipnotizada, talvez nem tanto pela história em si – pois já havia escutado tantas vezes! -, mas sim com os olhos atentos dos alunos presentes ao olhar e escutar à interpretação. Em cada gesto e em cada entonação de voz dada pela professora, eu os via escrevendo em seus cadernos. Até hoje me pergunto o que eles poderiam anotar em uma aula de contação de histórias, pois eles faziam isso a todo momento… inclusive cogitei perguntar isso a eles, mas preferi apenas respeitar aquela ocasião.
Ao final, todos bateram palmas e reconheci o talento da professora. “Se isso é ser uma contadora de histórias, ela o fez muito bem”, pensei, pois todos e todas na sala envolveram-se e presumi que tudo aquilo foi muito natural. Nós realmente nos sentíamos bem escutando a história. Logo após, a professora nos convidou a levantar e cantar a canção utilizada para contar a história e eu, obviamente, não pude recusar aquele convite. Eu e as alunas (e não nos esqueçamos do único aluno!) nos colocamos em círculo e começamos a cantar: É claro que a minha timidez e a minha insegurança não me permitiram me soltar como eu gostaria, mas eu realmente me diverti. Voltei a ser criança durante dois ou três minutos.
Depois desse primeiro momento, a aula continuou, mas o início ainda permaneceu em minha memória. Os alunos fizeram atividades que me pareciam ser realizadas em todos os encontros, como sumarizar o que havia sido aprendido na aula anterior. A professora voltou a contar outras histórias, que também me encantaram profundamente. Após o intervalo do primeiro tempo de aula, eu e Vitor nos despedimos da classe e da professora e todos foram calorosos: “Voltem sempre!”, “Vocês gostaram?”, “Por favor, me mande a matéria quando estiver pronta, estou muito curiosa pra ver!”… eu saí de lá com o coração preenchido por pessoas que eu nunca havia visto em minha vida.
Refletindo sobre aquele momento, me pego com algumas indagações que fiz desde que deixei a aula. Uma delas é: será que tudo aquilo que vivi em uma tarde é, de fato, a contação de histórias? A ideia de se ter um curso (que, aliás, não é barato) para se ensinar pessoas a contarem histórias ainda me deixa um pouco confusa, pois sempre enxerguei na contação um caráter popular, familiar. Quando me falavam sobre contação de histórias, eu imaginava um senhor de 90 anos contando causos para seus netos, ou até mesmo um artista apaixonado narrando para um público atento. Então, pelo pouco que vi, acredito que a contação de histórias vai muito além da técnica: você precisa criar laços com o seu público, você precisa respeitar e ter afeto àquilo que está fazendo. E uma coisa não posso negar: todos as pessoas envolvidas naquele curso respeitam muito a cultura de contação de histórias. Dá para enxergar nos olhos de cada um o respeito, o amor e a dedicação em repassar a herança da contação de histórias.
Isso não quer dizer que deixemos a técnica de lado: a contação não é, literalmente, apenas contar histórias. Um contador precisa saber lidar com o seu público, utilizar a linguagem verbal e corporal de forma a conquistar a atenção geral. Embora essas características pareçam ser inatas ao contador (assim como dizem que há pessoas que nascem com o “dom” da música ou do teatro), um curso me parece um bom caminho para desmentir essa concepção. Seus avós provavelmente não sabiam disso, mas eles eram notáveis artistas que aprenderam o ofício observando cada gesto, cada palavra dita, inúmeras vezes, pelo seus bisavôs ao contarem histórias. Estes, por sua vez, aprenderam com seus tataravós e por aí vai. São formas diferentes de aprendizado, mas que demonstram que qualquer um pode se tornar contador de histórias, independente da timidez ou de nunca ter ouvido falar sobre.
Um curso profissional é, sem dúvidas, um dos caminhos para se aprender um pouco mais sobre a extensa trajetória da contação de histórias. As experiências que tive naquela rápida, mas intensa, tarde responderam à pergunta que me fiz quando conversei pela primeira vez com os alunos do curso. Em apenas uma aula de contação, eu revivi o meu passado, me emocionei e fui cativada pelas histórias. “O que será que existe de tão especial em contar histórias?” Essa é uma pergunta que apenas quem ouvir uma contação saberá responder.
Eu vou te contar como é uma contação
Já havia assistido algumas contações profissionais e conhecia algumas contadoras de histórias – uma em especial, especializada em Guimarães Rosa, me havia despertado a curiosidade. Como aquela mulher podia decorar uma dezena de páginas a ponto de dramatizá-las em frente a uma plateia de adultos pouco receptíveis àquela abstração? Foi bonito ver a dureza dos adultos perder pra uma atividade bastante infantil.
Sempre reparei um certo desconforto no início de toda contação de histórias para adultos. O contador precisa provar pro público que ele não está perdendo tempo com aquilo. Se você não compra a ideia fica uma situação constrangedora até o fim. Pensando justamente nisso, uma parte importante do curso é voltada para reconhecer o público e preparar as introduções, que são chamadas de preâmbulos e tem como finalidade “quebrar o gelo”.
As duas turmas lotadas revelam: aulas de contação são um sucesso. Várias mulheres de meia idade, quase todas educadoras e aposentadas, se juntam a um par de homens no bairro Floresta para aprender as técnicas por trás de uma contação de histórias profissional. A motivação banca os quase R$1000 pagos pelo curso.
Gostei dos meus colegas de classe, que eram todos mais velhos, a média beirava os 50. Havia dois homens além de mim. Um com pinta de descolado, que fumava Souza Paiol e andava com uma edição da revista Cult na bolsa. O outro era bem sério e formal, me contou ser jornalista de formação, dono de uma produtora de vídeos e diretor de cinema. Se tudo der certo vai gravar uma série pra Globo no ano que vem.
Rose e Luiza eram educadoras aposentadas, assim como uma boa parte das alunas. As duas já contavam histórias para a família e, antes da aposentadoria, para os alunos. Partilhavam do sonho de se profissionalizar na contação. Outra colega de turma era Fernanda, mais jovem e psicóloga especializada em treinamento de pessoal. Os interesses eram variados, nem todos queriam contar histórias profissionalmente. Alguns estavam mais interessados em despertar habilidades específicas, pensando em melhorar de desempenho no emprego.
Eu, que pensei haver perdido toda a timidez dos 14 anos depois que saí de casa, estava tímido outra vez. Não era vergonha de parecer ridículo, nem de estar deslocado, mas sim de não poder só ser cara de pau e sair contando uma história do zero, porque é justamente isso que é ensinado ali. Existem técnicas que podem ser aprendidas e que diferem das usadas por contadores de causo tradicionais, como meu avô. Fizemos um exercício em que devíamos pegar uma caneca que estava no meio da sala e, de sopetão, inventar uma história que provasse sua posse. Depois de ver como os outros faziam, a minha pretensão de fazer uma performance razoável zerou. Queria ter falado que a caneca era minha e que tinha trazido ela do interior, mas o argumento foi usado e abusado antes de mim. Me restava inventar que usava aquela caneca para pedir esmola quando morei na rua, mas meu jeito de mendigo nem me convenceu. Acabei por não participar e me arrependi.
Outro ponto alto da aula foi a cantoria de “A árvore da montanha”. Vitória adorou, eu nem tanto. Já que estava gravando a cena, não pude participar da algazarra, que nitidamente jogou com memórias afetivas de vários ali na sala. Eu nunca havia escutado a história, por isso não consegui entender a afetação que seguiu por quase 10 minutos de acumulação e repetição da “árvore da fruta, a fruta da flecha, a flecha da pena, a pena do pássaro, o pássaro do ovo, o ovo do ninho, o ninho do galho e o galho da árvore…”. Mais uma vez fiquei com a sensação de que o fundamental ali era jogar o jogo proposto, “comprar a ideia”, ou então a situação se tornaria autoconsciente e constrangedora.
Nessa altura devo confessar que não aprendi muito nas aulas que participei. O curso demanda pesquisa extra classe e dedicação nas aulas. Acho que fui um aluno nota 5. O que mais gostei foram os instrumentos musicais e a forma com que são usados para ganhar a atenção do público. O tambor do oceano é simplesmente hipnotizante. A professora o utilizou no preâmbulo da história das Abayomis, a melhor que ouvi naqueles dias como aluno.
É assim uma contação de histórias profissional:
Sem dúvida a contação opera melhor para um público de crianças do que para adultos. Para mim, foi uma mistura de ruim com bom. Apesar disso, não acho que devemos ter vergonha de voltar a ser meninos de vez em quando.
Pronta para explorar, ainda mais, o maravilhoso mundo da contação de histórias!
Nota mental: ser um bom aluno requer dedicação, não sem-vergonhice.