O Parque Municipal Américo Renné Giannetti pelo olhar de quem fez parte de sua história.

 Por Thiago Furbino Elias

 O asfalto e o concreto pintam a cidade de cinza, prédios riscam os céus, ocultando o tão famoso belo horizonte, os carros disputam cada centímetro das ruas, o ar carrega uma poeira pesada e tóxica enquanto sons se confundem em uma sinfonia caótica. Esse é o cenário que predomina no centro da capital mineira, exceto por um local, que resiste à ideia de progresso infindável típica da era moderna.

Com 182 mil metros quadrados de extensão, mais de 100 espécies de vertebrados (entre elas mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes) e cerca de 4 mil árvores, o Parque Municipal Américo Renné Giannetti — mais conhecido simplesmente como Parque Municipal — é um refúgio para quem busca um pouco de tranquilidade em meio ao caos.

Inaugurado em 1897, antes mesmo da fundação oficial da capital, o espaço testemunhou as intensas transformações de Belo Horizonte. A cidade, inicialmente planejada para abrigar cerca de 200 mil habitantes, cresceu exponencialmente, ultrapassou os limites da Avenida do Contorno e hoje conta com aproximadamente 2,2 milhões de pessoas. Ao longo desse processo, o Parque Municipal também sofreu com mudanças, mas sua importância permanece, oferecendo à população uma opção de lazer gratuita e de qualidade.

Para garantir um bom funcionamento, fazem parte todo um conjunto de trabalhadores: seguranças, faxineiros, veterinários, operadores de brinquedos, biólogos, jardineiros, entre muitos outros. Uma ocupação específica, contudo, chama atenção: os vendedores ambulantes são verdadeiros patrimônios do parque. Muitos deles desempenham suas funções há tanto tempo que suas histórias pessoais se entrelaçam com a memória do local. 

Teimosia premiada

Um dos rostos conhecidos do Parque Municipal é o do Sr. João Serra, fotógrafo lambe-lambe há mais de  30 anos. Natural de Abaeté, ele conta, com orgulho, a trajetória que o levou até ali.  Quando chegou a Belo Horizonte, João trouxe consigo o sonho de se tornar radialista, inspirado pelas radionovelas que ouvia em sua casa. Com muita teimosia, como ele mesmo gosta de dizer, conseguiu convencer os profissionais da Rádio Inconfidência a lhe darem uma oportunidade e conquistou o emprego que tanto desejava. Anos depois, trabalhou como pedreiro no Iraque e, ao retornar ao Brasil, usou da mesma teimosia para persuadir a dona de um carrinho de lambe-lambe a aceitá-lo como ajudante. Foi assim que João Serra realizou seus três maiores sonhos: trabalhar no rádio, viajar de avião e se tornar fotógrafo.

Sr. João Serra e a antiga máquina de lambe-lambe. Fotografia: Thiago Furbino

Quando começou, os tempos eram diferentes, o processo fotográfico era trabalhoso e a imagem demorava cerca de uma hora para ser revelada. Mesmo assim, dezenas de pessoas buscavam seu serviço para registrar momentos especiais em família ou fazer uma simples 3×4. Hoje, operando uma câmera digital que substituiu a antiga lambe-lambe, ele celebra o reconhecimento de seu trabalho, tombado pelo IPHAN-MG como patrimônio imaterial da cidade, mas ressalta que, atualmente, ganha muito pouco, pois todos têm suas próprias câmeras nos celulares. “Se você viesse ao parque e não fizesse fotos para comprovar, era o mesmo que não ter vindo”, diz ele. 

Em meio aos relatos, contou que quando mais jovem tinha o sonho de ser jornalista, mas não teve a oportunidade. No entanto, após a conversa, fez as contas e concluiu que, com pouco mais de 60 anos, ainda há tempo para perseguir mais esse sonho.

Um parque na palma da mão

Outra figura emblemática é Márcia “a Preta”, que há 60 anos trabalha no local. Inicialmente na bilheteria, após 20 anos de espera, ela conquistou a licença para atuar como vendedora ambulante. Seu primeiro carrinho foi de frutas, mas segundo ela os alimentos estragavam rápido e o preço não era compatível com o público do parque que, geralmente, busca por opções mais em conta. Assim, quando teve a oportunidade, trocou para o carrinho de pipocas, onde pôde vender um alimento de maior durabilidade e que atende a todos os visitantes.

 

Márcia vendendo pipoca para os visitantes. Fotografia: Thiago Furbino

Márcia lembra com nostalgia os tempos em que o parque ainda era apenas “chão bruto”. Ela  acompanhou de perto sua transformação e, por isso, conhece a história do local como poucos. A pipoqueira apontou detalhadamente o nome dos córregos que passavam por debaixo do parque anteriormente à construção do asfalto. Orgulhosa de fazer parte da história, lamenta o público reduzido após o período da pandemia de COVD-19 e ressalta que o Parque Municipal é o verdadeiro pulmão de Belo Horizonte, merecendo muito mais cuidado e atenção por parte das autoridades.

Passado rico, futuro incerto

Sueli, é outra trabalhadora símbolo do Parque Municipal. Ela trabalha ali há impressionantes 42 anos. Assim como Márcia, começou na bilheteria, migrou para o carrinho de frutas e, mais tarde, decidiu inovar: tornou-se a primeira vendedora de cachorros-quentes do lugar. Enquanto o filho e o sobrinho atendiam os clientes, Sueli compartilhou memórias de tempos áureos, quando o parque chegava a receber mais de 70 mil pessoas em um único domingo. Hoje, ela lamenta, o número não passa de 5 mil, mesmo em dias de maior movimento.

Sueli e seu carrinho de cachorro-quente. Fotografia: Thiago Furbino

Sueli conta que nos anos passados, o espaço era uma das poucas opções de lazer para a população e, por isso, recebia atenção especial da prefeitura. Havia investimentos constantes em segurança e infraestrutura, o que tornava o local mais atrativo para as famílias. Hoje, ela observa que o efetivo de guardas é insuficiente, deixando o parque menos convidativo, especialmente para quem busca um ambiente seguro para as crianças.

Outro ponto destacado por Sueli é o impacto dos eventos privados realizados no parque. Embora muitos imaginem que shows e festivais aumentem o fluxo de visitantes e beneficiem os ambulantes, a realidade é bem diferente. As áreas de shows são cercadas por grades, muitas vezes restringindo a circulação de visitantes e forçando o consumo exclusivo de produtos vendidos dentro do espaço, mesmo que sejam mais caros.

Sueli começou a trabalhar aos 9 anos como babá na casa de conhecidos da família, mas foi no Parque Municipal que encontrou sua verdadeira vocação. “Eu amo isso aqui. Toda a minha vida eu estive aqui dentro”, diz com emoção. No entanto, sua paixão pelo parque vem acompanhada de preocupação. Ela teme pelo futuro do local, que se encontra cada vez mais esquecido pelo poder público e pela população.

“Quem garante que, daqui a alguns anos, isso aqui não vai virar um cemitério?”, questiona inconformada. Para Sueli, o parque é muito mais do que um espaço verde; é uma parte viva da cidade, um lugar que carrega as memórias e histórias de quem passou por ali.

Um lugar para todos

Quem concorda com isso é o Sr. Ivan, frequentador de longa data do parque. Mesmo morando em Nova Lima, faz questão de visitar o local ao menos duas vezes ao mês. Para ele, não há nada semelhante em sua cidade, com tamanha área verde, lagos, brinquedos, obras de arte, e demais atrações.

O simpático aposentado destaca a importância do parque na redução dos impactos ambientais causados pela urbanização. Ele cita a temperatura como exemplo: “Dentro do parque, a temperatura é bem menor do que do lado de fora.” Além disso, o ar fresco e a tranquilidade do local são benefícios que ele mais valoriza.

Mais do que um refúgio natural, o local, para o Sr. Ivan, é um espaço de convívio. Comunicativo, ele valoriza as oportunidades que o parque proporciona, como famílias reunidas, grupos de conversa, rodas de dança, entre outras, que acabam fortalecendo os laços entre as pessoas. No entanto, ele acredita que o potencial cultural do parque poderia ser melhor aproveitado. “Eventos como o mês da consciência negra deveriam acontecer com mais frequência”, sugeriu.

Senhor Ivan segurando a carteira de identidade. Fotografia: Thiago Furbino

Relatos diferentes, mas percepções semelhantes

O pulmão de Belo Horizonte segue sendo um espaço único, que contribui para tornar a vida na metrópole um pouco menos estressante, seja por meio de suas opções de lazer, seja pela enorme área verde que ajuda a equilibrar o meio ambiente da cidade. No entanto, foi consenso entre os entrevistados, que o Parque Municipal enfrenta a deterioração gradual de seus serviços e uma queda no número de visitantes, um processo acelerado pela pandemia de Covid-19. Seus trabalhadores e visitantes mantêm de pé o local que tivera seus anos dourados há décadas atrás, mas é preciso urgentemente que mais pessoas se engajem para preservar esse patrimônio de valor imensurável.

Reportagem produzida na disciplina de “Laboratório de Produção de Reportagem” sob a supervisão de Dayane do Carmo Barretos