Estudantes com mais de 60 anos relatam desafios e conquistas na graduação da UFMG. Aumento do número de idosos na educação superior reflete tendência demográfica e contraria preconceitos.

Por João Alves

Foi com os olhos mareados e sob o som dos aplausos de colegas e professores que Maria de Fátima Barbosa, 66 anos, recebeu o certificado de conclusão do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, da Escola de Belas Artes (UFMG), em 2023. O que pode parecer um caso isolado, uma história de superação e coragem – e realmente é -, integra um quadro mais amplo: o número de estudantes idosos na graduação tem aumentado.

Maria de Fátima foi uma das estudantes que, em 2022, fez parte do time de 51.3 mil idosos matriculados  na educação superior no Brasil, de acordo com o Censo Superior da Educação, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O número é aproximadamente 82% maior do que o da década passada, segundo o mesmo estudo, que contabilizou 28.041 graduandos da chamada “terceira idade” em 2012.

Maria de Fátima Barbosa em disciplina prática de Restauração na EBA/UFMG. Foto: Arquivo Pessoal

Na UFMG, a presença de estudantes com mais de 60 anos também está em ascensão. Segundo dados da Diretoria de Registro e Controle Acadêmico, em 2022, haviam 104 discentes com mais de 60 anos com o registro ativo no primeiro semestre e 97 no segundo. No ano seguinte, o número cresceu: 114 matrículas ativas no primeiro e 103 no segundo. Hoje, em 2024, há 139 estudantes idosos matriculados nos cursos de graduação na UFMG. Embora com variações em relação ao primeiro e segundo semestre letivo de cada ano, o aumento é significativo e ilustra uma tendência que encontra amparo nas modificações da pirâmide demográfica brasileira.

Um país com mais idosos

De acordo com o último censo do IBGE, o Brasil está ficando “mais velho”. Em 2022, quando a apuração foi realizada, a população de pessoas idosas residentes no Brasil era de 32.113.490, cerca de 56% a mais do que àquela recenseada em 2010. Comparando com o restante dos brasileiros, os idosos, hoje, somam 15,8% da população geral – em 2010, eles eram 10,8% dos residentes. Segundo o próprio IBGE, um dos motivos para o aumento da população idosa – em comparação com a população com menos de 60 anos -, é a redução do número médio de filhos por mulher e a diminuição da mortalidade em todos os grupos etários.

Diante desses números, o aumento da população idosa representa, de um lado, um desafio com relação às políticas específicas a serem formuladas para este grupo, e de outro, uma oportunidade: “O que fazer quando a terceira idade está batendo à porta?”. 

“Recomeçar é sempre um desafio”

Jackson de Sousa Figueiredo, de 59 anos, tem um currículo acadêmico extenso. É  jornalista formado pela UFMG na década de 80, especialista em Gestão Estratégica da Informação, e tem passagens nos cursos de História e de Psicologia. Após décadas exercendo o Jornalismo, Jackson, em suas próprias palavras, resolveu dar uma guinada em sua vida. Com esta nova direção em mente, matriculou-se em Letras, na Faculdade de Letras da UFMG, em 2018, e deve se formar ainda este ano. À frente, está o objetivo de se tornar um professor da Língua Portuguesa.

Embora falte pouco para alcançar o diploma, o estudante de Letras confessa que voltar a estudar, por diferentes motivos, não foi nada fácil.

“Recomeçar a estudar sempre é um desafio, principalmente quanto às condições financeiras e pessoais que se tem de ter para viabilizar que se curse e forme em condições necessárias (num país explorado e concentrador de renda). Agora, com quase 60 anos, o desafio é gigantesco, pois fiquei doente da Covid (afetando principalmente minha memória), além de trabalhar de dia e estudar à noite, bem como a busca de romper as barreiras que a maioria dos alunos tem com aqueles estudantes que são da terceira idade (conversas, hábitos culturais, memória sobre o Brasil e o mundo etc)”, comenta Figueiredo.

Mãe e filho: apoio mútuo no ensino superior

A trajetória de Maria de Fátima Barbosa rumo ao ensino superior difere bastante da de Jackson. Conta a aposentada, e agora conservadora e restauradora de bens culturais móveis, que sempre que passava de carro na Avenida Antônio Carlos, olhava para o Campus Pampulha, o principal da UFMG, e pedia a Deus uma “cadeira” para o seu filho, Arthur de Melo Barbosa.

“Quando jovem, inclusive, mais especificamente na década de 1970, cheguei a realizar o antigo Vestibular da UFMG, em que os candidatos realizavam a prova no estádio do Mineirão, sendo as provas ofertadas em uma prancheta. Como ele era muito concorrido, não passei no curso de Letras e, assim, a vida seguiu  novos rumos”, afirma Maria de Fátima. 

Mal sabia Maria de Fátima que esses novos rumos a levariam a espaços inesperados – e surpreendentes. Após a formatura do filho no Curso Superior de Tecnologia em Radiologia da Faculdade de Medicina da UFMG, a mãe coruja já se sentia realizada. Porém, sua admiração pelo trabalho de conservação e restauração feito na Igreja de São José, no Centro de Belo Horizonte, onde os artistas, à época, trabalhavam nas pinturas do santuário, a levaram a tentar o ingresso no ensino superior após 30 anos longe da educação formal.

“Em meio a isso, com o desejo de voltar a estudar, o meu filho me informou que, apesar de recente, existia o curso de Conservação-Restauração na UFMG, e resolvi tentar uma vaga. Portanto, em 2013, participei da edição regular do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), aliada à realização da então última edição da 2ª Etapa para o meu curso no Vestibular-Habilidades, em janeiro de 2014. Resultado: fui aprovada na 2ª chamada em ampla concorrência, sem cursinho, sem cota, sem nada”, enfatiza Barbosa.

Embora Maria de Fátima não tenha tido o apoio de uma estrutura que a preparasse para o processo seletivo, ou mesmo se inscrito nas recém-criadas ações afirmativas – que, à época, reservavam apenas 12,5%  das vagas -, a aposentada encontrou uma forma inusitada de se preparar para o exame. Além do conhecimento da “escola da vida”, Maria de Fátima estudava por meio dos livros usados que ela ajudava a reciclar no Galpão de Triagem de Materiais Recicláveis da Associação Rede Solidária de Contagem (COOPERCATA), em Contagem (MG).

Dificuldades enfrentadas durante a graduação: tecnologia e etarismo

Entrar na graduação, não importa a idade, é um desafio. No caso da UFMG, da imponente portaria da Antônio Carlos para dentro, há um universo de possibilidades nas áreas de ensino, pesquisa, extensão e cultura. O problema, contudo, é saber como acessá-las. E isto, para um estudante idoso, pode ser visto como uma dificuldade a mais. 

Jackson Figueiredo, 59 anos, estudante de Letras. Foto: Arquivo Pessoal

Jackson, por exemplo, considera a estrutura da Universidade complexa e direcionada quase exclusivamente aos calouros. Outro problema apontado pelo estudante de Letras são “as metodologias direcionadas para, em grande parte, executar programas fastfood na sala de aula”, talvez em referência ao pragmatismo das aulas em detrimento de discussões aprofundadas. 

Para Maria de Fátima, os principais desafios enfrentados durante a graduação têm relação com a tecnologia. Com a pandemia de Covid-19, o Ensino Remoto Emergencial (ERE) entrou em vigor na UFMG e, com isso, quase todas as atividades teóricas foram realizadas no ambiente virtual: “Eu sempre tive dificuldade com computador/celular, mas com a ajuda do meu filho eu pude ter um suporte na entrega de exercícios, realização de provas e acompanhamento da verificação de notas e e-mails dos professores.”

Outro desafio apontado pela restauradora foi a convivência com estudantes mais novos. Ela esclarece que, em boa parte, teve um acolhimento receptivo de seus colegas, mas que, em alguns momentos, se sentia isolada.

“Em boa parte eu senti um acolhimento dos colegas, sim, mas, em contrapartida também tiveram aqueles que ficavam com os olhos atravessados, de uma forma distante para não ter que conviver e interagir com a minha pessoa. Infelizmente, o etarismo na nossa sociedade existe, mas em momento algum eu deixei que isso pudesse me afetar diretamente, até mesmo pelo motivo de eu ter feito o meu próprio percurso acadêmico”, explica Barbosa. 

Com relação aos docentes, ambos não se cansaram de tecer elogios à dedicação e empenho dos professores. Entretanto, houve momentos – pontuais, diga-se de passagem -, em que a convivência com um ou outro docente careceu de cordialismo. Maria de Fátima, por conta do trancamento de sua matrícula, em razão de motivos pessoais, desabafa que se sentiu “pressionada” após uma docente da unidade em que estudava ligar para seu número pessoal e insinuar que o trancamento feito era um desserviço à UFMG. 

As críticas de Jackson são variadas: “um professor da FAE que me chamou de chato porque questionava o modelo de pensar durkheimiano da educação dele e da faculdade; uma professora que disse para a turma que o [curso] noturno tinha que ser extinto; um ou outro professor impositivo nas suas visões de mundo…”. Face a tudo isso, garante o estudante de Letras que nada disso se compara aos adoráveis e sábios professores de literatura e suas reflexões diversas e amplas da humanidade. O mesmo elogio também é voltado aos orientadores de estágio, que dão dicas e atividades que preparam o estudante para a sala de aula.

O (não) acompanhamento da Universidade 

Há pouco mais de uma década, após a implementação das Ações de Políticas Afirmativas, as universidades federais presenciaram uma mudança no perfil do graduando com relação a diferentes variáveis. O antes egresso das escolas de elite de Belo Horizonte, branco e de classe média alta, “cedeu” espaço a estudantes pretos, indígenas, quilombolas, com deficiência, de diferentes realidades socioeconômicas e regiões do país. 

A despeito das válidas questões internas quanto ao tratamento dado pela UFMG a esses estudantes, é possível afirmar que a adaptação à chamada “Lei de Cotas” teve um acompanhamento tanto teórico quanto prático.
O mesmo, infelizmente, não pode ser dito com relação aos estudantes idosos. Talvez pelo número (ainda) pouco expressivo, com relação aos mais de 33 mil estudantes de graduação, a Universidade não oferece qualquer tipo de suporte ou acompanhamento ao ingressante, aluno regular ou egresso com mais de 60 anos de idade.

O mesmo, infelizmente, não pode ser dito com relação aos estudantes idosos. Talvez pelo número (ainda) pouco expressivo, com relação aos mais de 33 mil estudantes de graduação, a Universidade não oferece qualquer tipo de suporte ou acompanhamento ao ingressante, aluno regular ou egresso com mais de 60 anos de idade.

Em resposta ao e-mail enviado por este repórter-estudante à Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae), o Setor de Acolhimento e Orientação respondeu o seguinte: 

“A PRAE não tem uma ação específica de acolhimento para estudantes com mais de 60 anos. Essas pessoas ingressam na política de permanência com os mesmos procedimentos e critérios dos/das demais estudantes. No atual momento, não configuram um perfil específico na política de permanência”.

Perguntada sobre o que poderia mudar no sistema educacional para tornar o ambiente acadêmico mais acessível e acolhedor aos estudantes idosos, a professora da Faculdade de Educação Analise da Silva, pesquisadora e defensora da Educação de Jovens, Adultos e Idosos responde que a reserva de vagas pode ser um caminho: “Se a reserva de vagas nas instituições de educação superior para pessoas com 60 anos ou mais for adotada como uma ação afirmativa, isso amplia o acesso. É Importante garantir que pessoas que não têm uma graduação a conquistem”.

“Voltar a estudar depois dos 60 anos de idade não pode ser tratado como um passatempo e sim, como um direito de pessoas que não puderam fazê-lo quando eram jovens. Além disso, é importante combater o etarismo como políticas públicas que valorizem as pessoas idosas e que lhes assegurem direitos”, enfatiza Analise.

Maria de Fátima em sua Colação de Grau. Foto: Arquivo Pessoal

“Aprender é minha fonte de vida”

Jackson Figueiredo conta que, embora tenha enfrentado – e ainda enfrente -, obstáculos, voltar a estudar foi a decisão acertada, afinal, para ele, conhecimento é sinônimo de vitalidade.

“Apesar das adversidades que tinha consciência, adorei voltar a estudar, pois aprender é minha fonte de vida, para isso não me sinto “velho” e inapto, mas um cidadão produtivo. Hoje posso dizer que minhas estadias na UFMG contribuíram demais com minha vida, seja pessoal, social e profissional. Sou um cidadão mais crítico, atento ao que é ensinado e focado em objetivos mais nítidos para minha vida pessoal e profissional. Sempre dou apoio aos mais velhos e aos novatos de sala de aula onde ensino, que aprender é fundamental para melhorar e promover a vida de todo cidadão e ter um país mais solidário e justo socialmente”, destaca Figueiredo.

Esta mesma visão é compartilhada por nossa outra entrevistada. Após finalizada a sua primeira graduação, Maria de Fátima diz que “não poderia estar mais feliz e realizada”. Afinal, uma vez que não teve oportunidade de estudar há algumas décadas, hoje é formada em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis por uma das melhores universidades do país.

“No dia da Cerimônia de Posse do Presidente Eleito e Empossado Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, eu me senti representada pela Aline Souza, catadora de materiais recicláveis, de 33 anos, a qual representou parte da sociedade brasileira na entrega da faixa presidencial ao Presidente Lula. Foi por intermédio dos livros, das revistas e dos cadernos, os quais eu encontrei na reciclagem que eu pude ler, reler e poder ter um pouco mais de segurança para enfrentar a tão temida prova do ENEM e, também, do Vestibular da UFMG”, rememora Barbosa.

Apesar das dificuldades pelo percurso acadêmico, Maria de Fátima e Jackson são gratos à oportunidade de voltar a estudar. E, certamente, na visão deste repórter-estudante, a comunidade acadêmica também é grata por tê-los. Nesta inusitada troca de saberes, de um lado, o “conhecimento da vida”, conforme comentado por Maria de Fátima, e do outro, o conhecimento acadêmico, todos saem ganhando.


* Reportagem produzida na disciplina “Laboratório de Produção de Reportagem”, sob supervisão de Elton Antunes