O aumento da passagem para R$5,85 foi evitada, por ora, mas a crise do transporte público ainda não tem data para acabar
Leonardo Godim*
Fazia calor em frente ao Savannah Mall por volta das quinze horas do dia 3 de maio. Mais de 15 usuários do transporte público esperavam em um ponto sem banco. Um senhor que se apoiava em duas muletas para andar estava escorado na coluna do edifício, e esperava sem expressão de queixa. Passaram-se 20, 30 minutos, três mulheres entraram em um táxi enquanto as outras perguntavam-se entre si para onde iam e se queriam dividir um também. Alguns iam embora, outros chegavam ao ponto, e o ônibus não passou no horário previsto pelo aplicativo – pela segunda vez. O tempo passava, e o senhor na coluna já reclamava para um desconhecido que parou na sombra ao lado. Já passava das 16 horas da tarde e o aplicativo previa que outro ônibus deveria passar em breve. Passou, mas não parou. O 5250 lotado se afastava no horizonte enquanto todos reclamavam entre si.
As crônicas dos usuários do transporte público de Belo Horizonte e seus percalços nos últimos meses ainda não foram escritas, mas sua força dramática caminha pelas ruas. São cerca de 642 mil passageiros que andam de ônibus todos os dias, e que só neste ano já pagaram quase 150 milhões de reais em tarifas. Esse um quarto da população de Belo Horizonte que todo os dia gira a catraca tem sua própria página neste livro com cheiro de lata de sardinha.
A situação dos ônibus ganhou uma nova tonalidade quando no dia 5 de abril a 3º Vara de Justiça de Belo Horizonte aprovou uma liminar, em urgência, que previa o aumento da tarifa para R$5,85, 30% a mais que o preço atual. Em um momento de crise dos transportes e tensão com as empresas concessionárias, esse aumento tornaria Belo Horizonte a cidade com a passagem de ônibus mais cara do país.
Por tensão entende-se a situação que se arrasta desde que uma CPI instaurada pela Câmara dos Vereadores apurou, no ano passado, uma série de irregularidades na licitação e no cumprimento dos contratos entre a BHTrans e as concessionárias. O relatório final da comissão propôs a condenação de empresários e funcionários públicos envolvidos nas licitações de 2008. É nesse contrato que se baseou a decisão da 3ª Vara pelo aumento da tarifa.
Os contratos
Em 2008, enquanto estava aberto o edital de concorrência para decidir quais empresas iriam assumir o controle das linhas de ônibus da capital por 20 anos, o Ministério Público de Minas Gerais recebeu uma denúncia anônima. Nela, o poder público era informado que as propostas técnicas e de preços de todas as concorrentes estavam sendo elaboradas por uma única empresa, a TECNOTRAN ENGENHEIROS CONSULTORES LTDA., de Andrés Barra. Na denúncia, foi escrito que “tanto é verdade que 5 dias antes da entrega das propostas, enviarei a V.sas. quais serão os consórcios vencedores de cada lote”.
Em tempo recorde, 4 meses após aberto, o edital bilionário de concessão do transporte público – que não só contratou os ônibus e serviços dos consórcios vencedores do edital, mas transferiu para eles toda operação, inclusive a cobrança das tarifas e sua distribuição entre as empresas – era decidido a favor dos Consórcios Pampulha, BH, Leste, Dez e Dom Pedro II.
A CPI apurou que os documentos com as propostas eram idênticos entre as empresas vitoriosas, tal como entre aquelas que perderam – todos foram elaborados pelo mesmo escritório do senhor Andrés. Ainda segundo o relatório da comissão, essas empresas que perderam com documentos iguais saíram vitoriosas em outra licitação, em Governador Valadares, pouco tempo depois.
O próprio relatório conclui que “o que ocorreu de fato foi uma pantomima orquestrada pelos empresários das empresas de ônibus em conluio com servidores públicos do município, para dar aparência de legalidade a um procedimento completamente fraudulento”. Porém, até o momento, os contratos seguem vigentes.
Esse não seria o único motivo para um virtual questionamento da concessão. A CPI também apurou que houveram diversas ocorrências de “descumprimento sistemático do contrato e irregularidades na execução dos serviços”. Entre elas estão fraudes fiscais com prejuízo do erário; não pagamento de seguros por parte das empresas; não pagamento ao fundo de estabilidade garantido pelo contrato; ampliação dos lucros pela retirada de agentes de bordo e diminuição dos ônibus em circulação; descumprimento de medidas sanitárias durante a pandemia da covid-19; não pagamento de multas administrativas; apropriação de recursos de isenções tributárias; e apropriação indevida de receitas não-tarifárias.
A comissão apurou que em 2013 e 2014 as concessionárias foram isentas de impostos no contexto dos protestos contra o aumento da tarifa e a má qualidade do transporte público, que irromperam em todo o Brasil. A medida tinha como objetivo alegado reduzir o valor pago pelos usuários do transporte público. Em agosto de 2013, como contrapartida às isenções, o preço da passagem baixou de R$2,80 para R$2,65.
Mas, em 2014, esse valor subiu novamente, para R$2,85 em maio e R$3,10 em dezembro. A partir daí, até 2018, seguiram-se uma média de reajustes de R$0,41 centavos por ano. Isso é, as isenções de impostos se mantiveram, mas a contrapartida, não.
Até agosto de 2021, estima-se que as empresas deixaram de pagar mais de 300 milhões de impostos. O relatório conclui que esse valor foi apropriado como lucro pelas empresas.
Pode-se dizer o mesmo dos custos operacionais economizados com a demissão dos cobradores – apesar da Lei nº 8.224/01, alterada em 2012, estabelecer a obrigatoriedade dos ônibus serem operados “por um motorista e um agente de bordo”, com exceção do BRT, horários noturnos e nos domingos e feriados.. O Movimento Tarifa Zero elaborou um estudo em 2019 que estimou que as empresas, em apenas dois anos, se apropriaram de 203 milhões de reais em economias ao não cumprir a lei. A falta de fiscalização e multas aquém dos valores poupados estimularam que ela fosse deliberadamente ignorada.
A redução dos ônibus em circulação também é outro descumprimento dos contratos que ampliaram o lucro das empresas. A frota de ônibus da cidade era de 3.048 veículos quando o contrato foi firmado. A CPI apurou que antes da pandemia esse número baixara para 2.853 ônibus, e para 2.396 no período pandêmico. Entre março de 2020 e agosto de 2021 houve uma redução de 21,1% das viagens realizadas, enquanto o número de passageiros transportados caiu apenas 9,23% – dados que comprovam uma superlotação dos ônibus da capital nesse período, prevista pelas empresas.
Essa redução de frota durante a pandemia foi enquadrada pela comissão parlamentar como “descumprimento das medidas sanitárias” com relação à covid-19. Em outubro de 2021 a Prefeitura notificou as concessionárias para que retornassem com o horário normal de funcionamento pré-pandemia. A fiscalização, pelo modelo da concessão, é difícil, mas qualquer usuário sabe que o retorno integral da frota de ônibus não ocorreu até o presente momento.
Subsídios e isenções
Uma das consequências mais imediatas da CPI foi a aprovação pelos vereadores da Lei 11.355/2022, que revogou a isenção dos dois impostos que as empresas concessionárias não pagavam desde 2013 e 2014.
A lei que revogou as isenções foi aprovada em novembro do ano passado, mas houve tentativa de veto do então prefeito Alexandre Kalil (PSD). No dia 4 de abril o veto foi derrubado, e os impostos voltaram a ser cobrados das concessionárias – mas com validade somente a partir do ano fiscal seguinte, segundo a vereadora Bella Gonçalves (PSOL).
Na ocasião, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (Setra-BH) adiantou que, com o fim da isenção, as concessionárias solicitariam o repasse destes valores no preço da tarifa de imediato.
No dia seguinte, 5 de abril, a Justiça aprovou a liminar que autorizava o aumento do valor da passagem, requisitada pelas empresas no ano passado.
A partir desses dois episódios – ou seria apenas um? –, a crise do transporte público de Belo Horizonte virou assunto nos pontos de ônibus, na câmara, na mídia e nos botecos. A superlotação parece ter se agravado, ainda que não existam dados disponíveis ao público. O Setra-BH afirma que a frota de ônibus está operando normalmente, mas não é isso que os usuários têm relatado.
Como se jogasse lenha na fogueira, a Petrobras anunciou no dia 9 de maio que o preço do diesel seria reajustado em 8,9%. O combustível é o maior custo operacional das empresas de ônibus de Belo Horizonte, segundo o Setra-BH, chegando a 25% dos gastos correntes. Catástrofe foi a palavra usada pelo sindicato para descrever a situação caso esse aumento não fosse compensado. As empresas indicaram que seriam obrigadas a reduzir as viagens fora do horário de pico.
Antes desse aumento do diesel, já estava em discussão um subsídio da prefeitura às empresas no valor de R$163,5 milhões, desde que os horários fossem cumpridos e o aumento da tarifa não fosse aplicado. No dia 10 de maio, prefeitura e vereadores se reuniram e propuseram às empresas um aumento de R$44 milhões ao montante subsidiado, custeado pela Câmara. Após negociação, mais R$30 milhões foram propostos.
Com isso, o valor do subsídio chega a R$237,5 milhões, e o acordo foi firmado entre poderes públicos e concessionárias no dia 12 de maio.
No acordo, as empresas aceitam a suspensão da ação judicial que aumenta a tarifa de ônibus e garantem que não haverá qualquer aumento enquanto o subsídio estiver vigente. Além disso, elas se comprometem a aumentar em 15% o número de viagens em dias úteis após o primeiro aporte, e 30% após 15 dias, e retomar os horários noturnos aos níveis pré-pandemia. Por fim, será criado um canal de atendimento direto ao usuário via WhatsApp e e-mail, visando supostamente aumentar a participação dos usuários na fiscalização do serviço.
O impasse adiado
A aprovação de um generoso subsídio como contrapartida ao aumento da tarifa de ônibus posterga novamente o impasse criado pelo próprio modelo de concessão do transporte público de Belo Horizonte. Se a história de 2013 se repetir, o aumento virá em breve e o efeito real dos subsídios permanecerá tão oculto quanto às movimentações de caixa das empresas que ganharam a licitação de 2008. Se evitar o aumento da tarifa for a prioridade das próximas administrações públicas, sem a revisão dos contratos ela só será possível a custo de grandes investimentos sem qualquer fiscalização efetiva. De todas as formas, os interesses de poucas empresas que assumiram o controle do transporte público municipal entram em contradição com qualquer solução efetiva para o impasse.
Questionado sobre a viabilidade do município assumir diretamente o funcionamento do transporte público de Belo Horizonte, Gabriel Azeredo (sem partido) disse que isso estaria previsto pela lei de licitações. “É possível uma vez que essa previsão decorre da Lei Federal 8.666/93”, afirmou.
“Como forma de pressionar o Poder Executivo, apresentamos projeto de lei autorizando a imediata tomada de controle pela prefeitura do serviço de transporte coletivo de passageiros no município, vez que se trata de serviço essencial e sua interrupção traria consequências gravíssimas para o município”, acrescentou o vereador.
A proposta, que seria uma das soluções ao impasse, não aparece, assim, senão como forma de pressionar a prefeitura.
Ao menos até o ano que vem, porque um dos pontos, discreto, do contrato firmado com as empresas no dia 10 diz que “as partes se comprometem a, no prazo de até um ano, apresentar proposta de reformulação da tarifa e de modernização e/ ou repactuação do contrato”.
O problema, que fica assim sem resposta, é se a situação atual não irá deflagrar nova crise antes desse generoso prazo.
Leonardo Godim é estudante de jornalismo com formação complementar em ciências econômicas na UFMG, estagiário da redação do jornal Estado de Minas e florianopolitano de criação. |