Entre relojoarias e o primeiro salão de beleza unissex de Belo Horizonte, conheça a Galeria do Ouvidor.

 

A Galeria do Ouvidor é aquele típico lugar onde você encontra de tudo. Dá para consertar relógios, eletrodomésticos e roupas, comer pastel, comprar selos, cabelo, joias, bijuterias, material para artesanato, acessórios eróticos, cortar o cabelo, alugar roupas de festa, fantasias, dentre outros vários serviços. O nome da galeria foi inspirado no nome da Rua do Ouvidor, uma via da cidade do Rio de Janeiro conhecida pelo comércio.

A partir da sua inauguração, em 1964, o espaço passou a ser considerado o centro comercial mais importante de Belo Horizonte, com cerca de 100 lojas. Segundo Valter Faustino, administrador do edifício, o número de lojas é, atualmente, em torno de 270, distribuídas em 6 andares. Uma curiosidade é que o prédio tem dois térreos, um na Rua Curitiba e outro na Rua São Paulo. A distribuição inusitada nos causou um certo estranhamento, já que subimos 4 andares, mas oficialmente estávamos no 2º. Ao subirmos, reparamos que as escadas rolantes têm uma aparência antiga.

Hoje em dia a escada rolante não traz o mesmo glamour de 50 anos atrás, mas, mesmo assim, a quantidade de consumidores que passa por lá é grande. São entre 40 e 45 mil frequentadores diários. A galeria tem uma área total de 21 mil m². Já o tamanho das lojas varia entre 20 e 300 m², uma vez que algumas ocupam o espaço relativo a várias lojas.

 

Memórias seladas

 

Sebastião Ribeiro, de 87 anos, faz parte da história da galeria. Ao entrar na Filatélica Globo, loja que está no prédio desde sua inauguração, o encontramos cantarolando “País Tropical”. Inicialmente, não sabíamos o que era uma filatélica, mas com uma rápida busca na internet descobrimos que é uma loja que vende selos postais para colecionadores. No caso dessa loja, os selos dividem o espaço com artigos esotéricos, presentes e bijuterias. Para quem acha que o local estaria às moscas, encontramos lá um rapaz escolhendo “novos” antigos selos para sua coleção. Sebastião pergunta o nome do cliente, que se chama Fernando. A partir daí, o senhor começa a falar sobre um amigo que tinha o mesmo nome. Aliás, tudo para ele é pretexto para uma história.

 

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Logo no início da conversa, Sebastião nos pergunta se já vimos o selo mais bonito do mundo, e nos mostra um que tem uma raposa comendo um galo. Apesar da ilustração não ter sido elaborada com esse intuito, Sebastião adora usá-lo para interagir com cruzeirenses e atleticanos, chegando a criar conflitos com torcedores alvinegros. Ele também mostra, com orgulho, um maço de cigarros com uma ilustração do Flamengo, de 1952. Ele diz que acabou se desfazendo da coleção de maços que tinha, mas manteve aquela pelo “Mengo”. Enquanto exibe a caixinha, cantarola “eu sou Flamengo e não desfaço de ninguém”. Quando voltamos à loja, algumas semanas depois, Sebastião contou que acabou vendendo seu maço para um colecionador, por R$ 150.

A filatélica de Sebastião está ali há 50 anos, mas na hora de contar sobre as datas, ele se confunde e insiste que a contagem é de 53 anos. Depois de tantos anos, lembrar de datas deve mesmo ser complicado. Talvez ele tenha somado os anos de galeria aos anos da loja fora dali.

Inicialmente, a filatélica ficava na Avenida Afonso Pena, número 740 – informação que o comerciante repetiu diversas vezes durante a conversa. Sebastião diz que a loja foi aberta por um judeu alemão. Após receber um dinheiro pela venda de alguns imóveis que possuía na Alemanha, o homem se mudou para São Paulo para morar com uma filha, e vendeu a loja para Sebastião. Depois de um tempo, o prédio em que a loja ficava seria demolido, gerando a mudança para a então recém-inaugurada Galeria do Ouvidor.

“Aqui, antigamente, numa hora dessas tava lotado. Era moça, rapaz… Tinha loja de tudo”, lembra Sebastião sobre os anos iniciais da galeria. “Eu acho que o centro da cidade todo mudou. Hoje você não precisa sair dos bairros, você encontra tudo neles. Mas a galeria continua, principalmente, pela lembrança. O pessoal traz os filhos e os netos para conhecer aqui”. Quando perguntado sobre as vendas na sua loja, Sebastião afirma que “hoje o colecionismo não tem mais aquela atração que tinha antigamente, quando se colecionava tudo. Hoje fica-se na internet, olhando lá”.

 

Ponteiros de relógios giram rápido

 

Entrando na loja Rei do Estojos, nos deparamos com enormes relógios pendurados na parede, os ponteiros expostos, e imaginamos quem compra esses itens hoje em dia. Conversamos com Marcelo Tafarelo – filho do dono da loja -, sorridente, solícito. Para fugir da confusão entre os clientes, ele nos convidou para conversar na sua sala.

Entramos por um corredor estreito e chegamos a uma salinha com várias caixas de mercadorias amontoadas. Mesmo com o Rei dos Estojos ocupando o espaço de dez lojas, o espaço ainda parece não ser o suficiente. Logo quando Marcelo começa a contar sobre a história da loja, é interrompido pelo telefone. Pede educadamente que aguardemos e atende a chamada ainda sorridente e com uma entonação de voz parecida com a de um locutor de rádio. Responde à cliente com toda atenção do mundo, como se o sucesso da loja dependesse daquilo.

De volta à conversa, ele começa a contar sobre a história da galeria. Há 50 anos, quando ela foi inaugurada, o Rei dos Estojos, que possui 28 anos, ainda não existia. Marcelo, de 23 anos, também estava longe de nascer. Mesmo não tendo vivenciado grande parte da história da loja, ele explica que a galeria passa por ciclos, e o primeiro teria sido o das lojas de roupas. “Roupa custava muito caro, então aqui tinha muita gente que mexia com costura, calça jeans”.

Depois do fim do ciclo das roupas, o que esteve em alta por ali foram as joias. Foi nesse período que o Rei dos Estojos cresceu, já que a loja também vende artigos para joalheria. Quando o preço do ouro subiu, as joalherias perderam um pouco do seu espaço para semi-joias e bijuterias, cujas lojas ainda estão muito presentes no prédio.

O ciclo seguinte deu espaço às sex shops. “Só tinha sex shop aqui dentro. Isso tem coisa de uns três anos”, afirma Marcelo. Depois vieram as lojas de cabelo, que se multiplicam até hoje pelos andares da galeria. No entanto, a “fase dos cabelos” também está passando e algumas lojas estão começando a fechar, informação que foi confirmada por Valter Faustino. Para a próxima moda, Marcelo arrisca um palpite: “Tô achando que vai vir lembrancinha de festa”.

Quando perguntado sobre como a loja se adaptou a essas mudanças de ciclos, ele afirma que ela se saiu muito bem ao longo do tempo. O ótimo relacionamento com os compradores, por exemplo, ajudou nesse ponto. O pai de Marcelo, Vitor Nascimento, destaca que a loja sempre soube aproveitar as tendências de mercado. Durante o período em que os camelôs estavam em alta na cidade, o estabelecimento chegou a revender produtos para eles. Atualmente, também revendem mercadorias para outras lojas. A Rei dos Estojos é uma das lojas âncoras da galeria. Segundo Marcelo, grande parte dos seus clientes vão ao local exclusivamente para ir lá.

Desde o início até hoje, o foco da loja são os itens para joalheria – indo de alicates a estojos para joias – e para relojoaria – como peças e também prestação de serviços. No começo, o Rei vendia cinco itens: estojos, mostruários, etiquetas, medidores e limpa joias. Atualmente, são 4875 itens. Marcelo conta que, se um determinado produto não tem muita saída, eles rapidamente o liquidam para dar espaço às novas mercadorias. A falta de espaço da loja – visível nas paredes repletas de produtos expostos – não permite o luxo de manter itens que não são muito vendidos.

Adaptando-se à modernização, recentemente o Rei dos Estojos lançou um site para vendas online. Como o espaço da loja está ficando pequeno, eles estudam uma ampliação para fora da galeria, “mas nós jamais sairemos daqui, porque, como começamos nesse espaço, sempre haverá uma perninha aqui dentro “, ressalta Marcelo.

Sobre a sua relação com a loja, ele conta: “Foi muito bom participar disso tudo. Quando a loja começou eu não estava nem vivo. Eu cheguei aqui no Rei dos Estojos há uns cinco anos, e cresci aqui. Desde criança eu vinha, a loja era pequenininha. É ótimo ver a empresa crescendo, saudável, com uma boa equipe.”

 

Nero põe fogo na cidade

 

Galeria do Ouvidor

 

Uma prática banal atualmente era raridade na década de 1960: os salões de cabelo unissex. O salão do Nero foi o primeiro de Belo Horizonte a aderir à prática. No auge, ele chegou a trabalhar com cerca de 10 funcionários, mas hoje só tem duas. O salão abriu no fim dos anos 60, “perto da época da revolução militar. Então a gente era muito vigiado, punido de alguma maneira, humilhado por eles, pela repressão que a polícia fazia em cima dos homossexuais. Não tínhamos muita liberdade de expressão, de viver. Mas nós fomos lutando, abrindo espaço e foi melhorando até os dias de hoje”, lembra Nero.

Ele conta que saiu de sua cidade natal, São João Del Rei, e veio para a capital na esperança de encontrar mais aceitação. No entanto, “o preconceito era velado do mesmo jeito”. Mesmo com a repressão, no entanto, Nero inovou o mercado dos salões de beleza em Belo Horizonte. O cabeleireiro conta que começou a misturar homens e mulheres durante o dia. Antes, os homens só eram atendidos depois das 18 horas e as mulheres durante a tarde. “Isso causou bastante estranhamento, mas também um interesse muito grande de todo mundo, porque era algo diferente na época”.

Nero explica que, naquela época, quando as mulheres iam ao salão cortar o cabelo, os maridos e namorados iam junto para que nenhum homem olhasse ou chegasse perto delas. “Eles eram muito machistas, acho que ainda são. Eles falavam ‘não corta aqui não’, e a mulher muda, calada”, conta o cabeleireiro. Segundo ele, esse costume prevalece até hoje. Quando atende clientes mais velhas, Nero afirma que os maridos continuam as acompanhando. “Tem certos comportamentos que não mudam, mas muitas coisas já quebraram. Vamos viver pra ver, né?”

Nunca foi à Galeria do Ouvidor? Então venha fazer um passeio com a gente:

 

Thaiane Bueno

Para mim, antes a Galeria do Ouvidor era só um lugar para comprar tintas capilares, cheio de lojas que vendem cabelo e sexshops. Agora é um local cheio de histórias e personagens interessantes.

Laiza Monique

Sebastião, da filatélica, é uma das pessoas mais simpáticas da Galeria do Ouvidor. Acabei ganhando um selo de presente.