O Edifício Maletta fala em primeira pessoa sobre seus moradores e visitantes.

Crônica por Aline Cabral, Ana Carolina Gomes, Lorena Calonge e Marjorie Zocrato

 

“Uma cidade dentro de Belo Horizonte, independente, com tudo o que você precisa para viver e trabalhar”, assim dizia o folheto de meu lançamento nos anos 50. Localizado no coração da cidade, nasci a partir do projeto do arquiteto Oswaldo Santa Cruz, com bela estrutura e que fazia lembrar o extinto Grande Hotel. Diante dessas expectativas, fui inaugurado, nomeado “Conjunto Arcangelo Maletta”, com uma proposta nova e diferenciada para a época.

Digo com orgulho que sou o maior edifício da cidade em área construída e em número de unidades (salas, lojas, apartamentos). Porém, bem diferente estou do que jamais imaginei que me tornaria. Sou hoje conhecido pelos meus sebos, restaurantes e vários bares, mas minha fama já não é das melhores: muitos me associam à marginalidade e me acusam de “mal frequentado”. Apesar de não possuir o glamour e a boa fama do antigo Grande Hotel, posso dizer que muitas histórias se passaram em minhas dependências e acabei mesmo me tornando uma verdadeira “cidade”.

Recebo diariamente uma enorme quantidade de pessoas que transitam por aqui com diferentes objetivos. Um dos motivos dessa movimentação é a grande quantidade de estabelecimentos comerciais em meu interior: lojas de roupas, lan house, livrarias, sebos (aos montes!), bares, restaurantes, lanchonetes, banco, além de escritórios de serviços diversos. Considero-me o lugar ideal para quem quer resolver suas questões práticas e também para quem quer explorar. Isso mesmo, pois quem não me conhece e escuta falar de tamanha variedade de serviços deve imaginar algo semelhante a um shopping, mas não sou como eles. Além de minha estrutura ser muito diferente, existem aqui desde lojas que oferecem produtos e serviços bem diferenciados, como a loja do Seu Silas que conserta máquinas antigas, verdadeiras relíquias, a bares reconhecidos e famosos em toda Belo Horizonte, como o Xok Xok, especialista nos deliciosos torresminhos.

 

Maleta

 

Tenho lojas bem antigas e tradicionais, mas também as que chegaram aqui há pouco tempo. Um exemplo é a da Cléo, o Empório Trecos e Afetos, que abriu há quatro anos e montou uma loja de artesanato, um cantinho colorido lá no fundo do andar da sobreloja. Achei que combinou comigo, uma vez que tenho afinidade com as artes: costumo ser escolhido para dar lugar a eventos culturais, como apresentações de teatro e saraus literários. Eu e a Cléo compartilhamos alguns problemas. A minha velha estrutura, por exemplo, faz com que ela tenha medo de que algum dos meus canos estoure e inunde sua loja, como aconteceu com seu vizinho, o Oseias, da Livraria Crisálida. Ele acabou perdendo grande parte do seu estoque e levou um baita prejuízo. Minha má reputação é outro inconveniente que partilhamos, pois já a ouvi dizer que várias de suas amigas nunca vieram visitar sua loja, com receio do ambiente que encontrariam por aqui. Mesmo diante de todos os meus inconvenientes, a Cléo é uma boa companheira e reconhece meu valor cultural: escolheu-me por saber que abrigo visitantes que se identificam com o que ela oferece em sua loja, “artistas e pessoas com sensibilidade para reconhecer o valor dos produtos artesanais”, como ela mesmo descreve.

 

Maleta 1

 

Grande parte dos meus frequentadores, que são atraídos por esta vasta opção de comércio e serviços, não sabe, porém, que meu setor comercial está em segundo plano se comparado à minha função habitacional. O número de pessoas que residem por aqui é inferior apenas ao do Edifício JK. São pessoas de perfis bem variados: de estudantes universitários a antigos moradores, como a Dona Esmeralina, que está aqui há mais de cinquenta anos e presenciou muito de minha história, desde as brigas entre moradores e um antigo síndico, à festa de arromba, como ela mesma diz, que foi dada com a posse do Amauri, o sucessor desse mesmo síndico. Dona Esmeralina também já alugou quartos para estudantes, transformou seu apartamento em um restaurante improvisado e presenciou até um incêndio que ocorreu em minhas dependências – sobre o qual ela conta que a causa teria sido uma vela de sete dias esquecida acesa pelo proprietário de uma antiga loja de Umbanda.

 

Maleta 2

 

Há algum tempo tento me acostumar novamente com o barulho e a agitação dos bares. Na década de 70, eu tinha muitos deles, que eram frequentados por artistas e intelectuais. Mesmo com fama de “mal frequentado”, inspirei vários, como o Mário de Andrade que, da minha sacada, compôs “Noturno de Belo Horizonte”, no qual diz:

“A polícia entre rosas…

Onde não é preciso, como sempre…

Há uma ausência de crimes

Na jovialidade infantil do friozinho (…)”

No trecho, ele retrata nossa capital em uma fase que, infelizmente, não conhecemos mais nos dias de hoje. Também tive a honra de presenciar o primeiro show do Milton Nascimento, que foi realizado em minhas dependências. Na época, lembro-me que gostei muito da apresentação do Bituca. Hoje em dia, alguns de meus frequentadores noturnos também são artistas e intelectuais, porém sem a fama dos antigos. Não me tome por saudosista, contudo, em razão desses comentários – sou interessado, de igual forma, por cada uma de minhas fases.

Com minha fachada e instalações já velhas, tenho minhas singularidades, compreendidas pelos meus frequentadores, que são uns durante o dia e outros quando anoitece. Apesar da má fama que tenho para alguns, não invejo o esplendor do Grande Hotel, de quem tomei o local, pois sei que sou apreciado e querido por aqueles que me conhecem a fundo.