Jequitinhonha: Uma avenida como qualquer outra na região leste de BH, localizada entre a boemia e a fé da considerada capital mundial dos botecos. Em um trecho de quatro quarteirões, coexistem seis bares, seis igrejas e diversos moradores cheios de histórias para contar.

 

Em outubro de 2017, a Prodabel, empresa de Informática e Informação do município de Belo Horizonte, confirma aquilo que todo belo-horizontino já sabia sobre a imensa concentração de bares na capital mineira. Criando um mapa de densidade a partir dos dados de registro de atividades econômicas da Prefeitura, a Prodabel afirma sem receios: Belo Horizonte tem uma média de 28 botecos a cada quilômetro quadrado. Ou seja, em seus 332Km², a capital mineira abriga mais de 9.500 bares cadastrados.

Motivo de estranhamento para alguns, comemoração para outros. Pois nem a alta religiosidade dos belo-horizontinos atrapalha o sucesso dos bares na capital. De acordo com o último censo do IBGE, dos cerca de 2,5 milhões de habitantes na cidade, 1.422.084 são católicos apostólicos romanos, 595.244 consideram-se evangélicos e 96.639, espíritas, sobrando para outros credos e religiões a mínima fatia restante.

“Frequento todos os bares que você imaginar, desde o Vera Cruz, Alto Vera Cruz, Paraíso, São Geraldo, todos… Sou um grande frequentador de bar”. Precisamos apurar o ouvido para ouvir o que Ricardo Celestino tem a dizer, entre os barulhos da narração televisiva de um jogo de futebol exibido no Espetinho do Fred espetaria que fica na esquina da avenida Jequitinhonha com a rua Leopoldo Gomes, bairro Vera Cruz, região Leste de BH. Com 53 anos, Celestino afirma-se católico, e não se surpreende quando o perguntamos isso. Surpreende-se, contudo, com a informação que lhe demos.

Apenas no trecho localizado entre a rua Leopoldo Gomes e a Avenida Andradas as principais vias que cruzam a avenida Jequitinhonha contamos exatamente seis bares e seis igrejas. Por isso resolvemos percorrer por alguns dias essa fração da avenida, formada por quatro quarteirões: para tentar entender como convivem os bares e as igrejas que por ali se estabeleceram, formando um retrato sincero da própria distribuição de bares e igrejas em BH.

 

Nossas andanças tiveram mais ou menos essa trilha sonora:

 

Considerada histórica na região leste de Belo Horizonte, a Avenida Jequitinhonha é responsável pela divisa entre os bairros Vera Cruz e Alto Vera Cruz. Sob sua pavimentação, convivem casas, restaurantes, oficinas mecânicas, padarias, mercearias, uma companhia da Polícia Militar e um Clube dos Sargentos. Por ali, crianças correm descalças, jovens pedalam bicicletas, cavalos empurram charretes, carros circulam, idosos assistem ao movimento da rua e árvores crescem no extenso canteiro central, que também é curiosamente ocupado pelas mesas de um bar logo à frente, bem no outro lado da rua.

Em meio a tudo isso, funk, samba, pagode ou sertanejo concorrem e convivem com louvores, músicas gospel e orações. A relação, que nos parecia acirrada à primeira vista, se materializa em números precisos: a avenida Jequitinhonha, em toda  sua extensão, soma, em setembro e outubro de 2017, 14 bares e nove igrejas. Mais precisamente, um restaurante, duas espetarias, 11 botecos, uma igreja católica e oito igrejas protestantes.

 

 

De um lado, o 6 x 6 da avenida remete àquele velho ditado: “BH não tem mar, mas tem bar”. De acordo com dados divulgados pelo Ministério do Turismo, em 2013, a capital mineira possui o maior número de bares por número de habitantes do país. São 14 mil bares para uma população de cerca de 2,4 milhões de pessoas. Isso dá, em média, um bar para cada conjunto de 170 habitantes. Aqui, os números do levantamento se confundem com os divulgados pela Prodabel, já que o Ministério considerou também os outros “estabelecimentos do ramo” na conta.

Esses dados são levados tão a sério que, em 2009, a Lei 9714 declarou a capital mineira como a Capital Mundial dos Botecos, prevendo ainda que o Dia Municipal dos Botecos seja comemorado anualmente a cada terceiro sábado do mês de maio.

Por outro lado, a Jequitinhonha acompanha o ritmo de Minas Gerais e de todo o Brasil em relação ao crescente número de instituições religiosas. De janeiro de 2010 a fevereiro de 2017, a Receita Federal registrou 6.495 novas entidades religiosas no estado, e 67.951 no Brasil. Ou seja, a cada dois dias, cinco novas organizações religiosas foram criadas em Minas nos últimos sete anos.

Essa situação, que poderia ser considerada uma disparidade a primeira vista, encontra eco nas histórias que a Jequitinhonha abriga. Pois não só de rivalidade vivem os fieis de Deus e os fieis da cerveja. Tais papeis, quando não se confundem, convivem em tolerância e harmonia nos 570m de avenida embora deslizes possam ser cometidos de ambos os lados:

 

 

DE FRED À CRISTO, UM PANORAMA

 

No dia 22 de setembro, o barulho terminou mais cedo. Os moradores da região já estavam acostumados com as sextas lotadas no Espetinho do Fred, o mais movimentado da rua. Música alta, pagode ao vivo, tiros para o alto, momentos coroados por uma Jequitinhonha entupida de jovens que se divertiam entre o funk e o álcool. Contudo, naquela sexta em especial, o bar que é alvo de tanta inveja, segundo a mãe de seu dono, recebeu uma visita da Polícia Militar, que pediu para que o estabelecimento fechasse mais cedo.

“O mundo é invejoso. O ser humano é ruim”. São opiniões de uma cansada Rosângela Coimbra, de 55 anos, balconista do Espetinho e mãe do Fred homônimo ao bar. Sem aceitar ser gravada, filmada ou fotografada, ela reclama dos muitos jovens que frequentam o Espetinho sem propriamente consumir no local e da concorrência quase idêntica que abriu recentemente e copiou até a infraestrutura de seu negócio.

O Espetinho do Fred abriu há cerca de oito meses, funcionando inicialmente de quarta a sábado, a partir de 18h, e domingo, começando às 15h. Mas de uns quatro meses para cá, a situação começou a ficar complicada. A superlotação do bar trouxe, no mínimo, uma dor de cabeça a mais para a mulher já exausta em ter que vir trabalhar.

O Espetinho da Resenha, por sua vez, outra espetaria da avenida, não é tão movimentado assim. Peter Lisboa é dono do empreendimento e carrega um colar de Nossa Senhora Aparecida no pescoço. Ele afirma que, lá, as pessoas prezam por um ambiente mais familiar, com confraternizações de amigos íntimos e empresas. O espetinho também recebe pastores e fieis da Igreja Cristã em Belo Horizonte, sua vizinha da frente.

“A igreja tem um papel fundamental na sociedade: dar um ponto de estabilidade para esse mundo corrido e fragmentado do jeito que está”, o missionário da referida Igreja Cristã, Moisés Nunan, afirma. Moisés é um dos que frequentam o Espetinho da Resenha sem, contudo, consumir bebida alcóolica. João Rodrigues, engenheiro de produção e também fiel da Igreja, concorda: “Jesus traz essa paz pra gente, esse conforto. Então eu não preciso buscar na bebida alcóolica aquilo que Jesus me dá”.

 

Avenida Jequitinhonha no cair da noite, quando o relacionamento entre boemia e fé se intensifica.

 

Discordaria Nélio Barbosa, sentado com os moradores de rua no canto próximo à garagem de ônibus, entre a Comunidade Batista Atos II Kadosh e o Bar do Luis Português. “A igreja me chamou”, ele admite, quando, uns dias atrás, ouviu os louvores e teve vontade de participar da celebração. “Eu fui. Fiquei, chorei. E, depois, cheguei aqui [no bar], e bebi mais”. Contudo, saiu satisfeito: Nélio agradece pela energia proporcionada e pelo alívio que sentiu ao participar do culto. A própria Comunidade Batista que ele visitou, já há três anos na rua, costuma realizar ações de evangelismo recorrentes nos bares e bocas de fumo da região.

“Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15)

“Misericórdia nessas vidas, Jesus poderoso”, desabafa Rosângela Coimbra, a própria, do Espetinho do Fred. Religiosa, a senhora afirma frequentar o Ministério Kairós toda terça, templo localizado no outro lado da avenida Jequitinhonha, para além da rua Leopoldo Gomes. Por isso admite viver uma situação conflituosa no bar que administra: embora ela não beba, vê pessoas consumindo álcool em seu estabelecimento. Assim, realiza “campanhas de oração” para Deus guiar o seu caminho, o do filho e o do espetinho que ambos dirigem.

 

 

ENTRE FIEIS E BEBUNS, OS RESIDENTES

 

Em meio aos fluxos, barulhos e residências que habitam a avenida, a presença de uma figura sentada em sua cadeira na calçada chama a atenção. Dona Marília não é a única que gosta de assistir ao movimento, dando ares de interior à rua. Mas foi com ela que paramos para conversar na expectativa de um relato sobre a presença dos bares e igrejas pela perspectiva de alguém que está ali há muitos anos. Afinal, quando foi que a rua ganhou esses estabelecimentos?

Mas Marília não se ateve a isso. Mais preocupada com as plantas que crescem no canteiro central da avenida, ela se queixa pelo tamanho das árvores, sem ligar para louvores ou agitos da boemia. Pois enquanto discorre sobre as mudanças da avenida e reclama com as crianças na rua, a senhora, que tem o próprio rosto grafitado na parede de sua casa, dá-nos uma peculiar lição de história sobre a rua.

 

O passado da Avenida Jequitinhonha é apenas um dos temas abordados pelos seus residentes. O rio a que Marília se refere, conhecido como córrego Taquaril, foi mais um dos rios aterrados a favor da vontade de desenvolvimento da capital mineira. Sua canalização foi determinada em 7 de junho de 1985, pelo prefeito à época, Ruy Lage.

 

A nascente do córrego Taquaril está localizada no bairro Baleia. Ele deságua no Ribeirão Arrudas, sendo um de seus principais afluentes. Clique na imagem para ampliar. Mapa hidrográfico: Projeto Manuelzão/ PBH

 

Apesar de reconhecerem a presença espaçosa de bares e igrejas na Avenida, os moradores do bairro nem sempre se atém a isso. Alguns dos entrevistados preferiam conversar (ou cantar) outras coisas. Foi assim com o Rafael. Nosso encontro com ele se deu na rua em meio a um grupo de homens não muito sóbrios – que costumam frequentar o conhecido bar do Luis Português. Por lá, não são muito bem vistos pelo tal português, dono do bar que, segundo ele, é “mais de família”. Mas, apesar disso, são os clientes mais assíduos.

Começam a beber pela manhã e, como dizem, vão até o anoitecer. É cedo quando nos encontramos com o grupo e a conversa, que já é meio embaralhada, caminha para as cantorias de Rafael. Um pouco tímido, ele começa com uma música gospel, resistindo a cantar aquelas de sua autoria que os amigos pedem. Inicialmente, ele nega, dizendo que essas são “do mundo”. Mas, no final, acaba cedendo.

Com vocês, “A Flor Amarela”:

 

 

As ruas que Rafael canta já não são mais as mesmas. O próprio 6 x 6 que justificou a produção da matéria sofreu uma nova atualização que desequilibrou a balança. No final de outubro, misteriosamente, o Espetinho do Fred, antes tão característico à rua, fecha suas portas, como quem desiste do empreendimento frente aos vários empecilhos colocados pelas circunstâncias e pelos “homens de coração ruim”, como dizia Rosângela.

Por outro lado, um crucifixo é pendurado em uma casa no final da rua Itamirim, um beco “quase sem saída” que praticamente faz parte da Jequitinhonha. Lá, agora, funciona uma casa de oração católica.

Novo placar: 7 x 5. Mas, a despeito dos bares e igrejas que estão ou deixam de estar, a Jequitinhonha ainda tem a cara dos moradores que nos ajudaram a contar essa história.

 

 

ROSTOS DA JEQUITINHONHA

 

 

 

Alice Machado

“Bela, como uma flor amarela, eu conheci ela…” nunca mais saiu da minha cabeça.

Gabriel Araújo

Após o mesmo conselho ser dado, no mínimo, quatro vezes pela mesma pessoa, o trôpego Nélio Barbosa, concordo que está na hora de investirmos no jornalismo rural.

João Paulo Alves

BH: várias Jequitinhonhas

Thaís Costa

Era uma rua muito engraçada…