Trajetória, Ocupação e Experiência. Entenda qual o lugar das mulheres nas torcidas organizadas dos três maiores times da capital mineira

Por Clara Lessa, Giovanna Rafaela Castro, Julia Cosme, Lucas Sant’ana e Thiago Assis *

Nos anos iniciais do planejamento urbano de Belo Horizonte (BH) vislumbrava-se uma cidade idealizada, que queria ser vista como uma cidade “comportada”, encaixada nos padrões de idealização de planejamento da capital que ocupara o local do antigo Curral del Rei. Quando foi introduzido em BH, no início do século XX, o futebol era praticado pela elite e foi uma forma de socialização entre os jovens. Assim, além de um exercício físico e forma de lazer, era uma maneira desse grupo interagir. Naquela época, o esporte ainda não era profissional e não havia se massificado, mas a presença feminina já era muito comum nos estádios. 

Mulheres de Organizada do Atlético nas arquibancadas Foto: Atlético/Divulgação

“Os jogos eram um grande acontecimento na minha mocidade. Não tem como comparar com hoje em dia. Nós íamos mais cedo para o estádio, pois sabíamos que as moças iam chegar depois. O momento mais esperado era quando elas chegavam com suas famílias. Nós levantávamos e cedíamos os lugares para elas se sentarem. A partir daí, iniciava-se uma conversa… Era o grande momento para paquerar. O cinema, o teatro, a missa eram coisas muito formais. Então você via a moça ali, no estádio, e à noite, no baile, quando encontrasse com ela, tinha algum assunto para falar,” relembra Salim Salum, ex-dirigente e torcedor do América Football Club, na década de 1920, em entrevista em 2002, disponível no artigo “Os Sentidos e os significados da torcida feminina nos eventos de futebol em Belo Horizonte (1913-1927)”, do pesquisador Euclides Couto. 

“Os moços iam porque gostavam do jogo. Vibravam, gritavam, eram muito mais atentos ao jogo. Já as moças iam para ver as pernas dos rapazes. Naquele tempo os homens não usavam bermudas como hoje em dia. Era só calça comprida. Para ver as pernas, era uma dificuldade danada. O futebol era uma das poucas ocasiões em que isso acontecia. Eu e minhas amigas sentávamos juntas só para escolher as pernas mais bonitas do jogo. Isto é que era a diversão,’ relembra Silvia Bonfiglioli, torcedora do Cruzeiro, então Palestra Itália, para a pesquisa de Couto. 

Com a popularização da presença das mulheres nos estádios, periódicos passaram a registrar e divulgar para toda a população esses momentos, como é possível ver no jornal Gazeta Esportiva, de 17 de novembro de 1927: “A tarde esportiva de domingo passado, pode-se afirmar, uma das mais agradáveis do anno, pelo crescido numero de lindas admiradoras dos sports, que compareceram ao “stadium” americano. Era mesmo agradável o aspecto apresentado pelas archibancadas, onde se notava a presença de centenas de senhorinhas, cada qual salientando-se ao longe, pelos seus delicados vestidos e pelos seus differentes modos de torcer.”

A mídia foi uma das grandes responsáveis por reforçar o papel das mulheres como torcedoras. O semanário Footing, que circulou em Belo Horizonte no ano de 1921, possuía publicações destinadas ao público feminino que traziam inúmeras referências da relação entre as mulheres e o futebol. “Linda tarde de domingo. Autos e bondes repletos passam incessantemente pelo caminho do Prado, onde nossos guapos e jovens conterrâneos se entregam valentemente às pugnas do Foot-Ball. A varanda de sua residência, Senhorita aprecia o desusado movimento da rua. Senhorita é apaixonada pelo futebol e aguarda ansiosa a nova do resultado. A quem caberá a vitória? Qual clube será o vencedor? E aqui para nós: um dos clubes é homônimo de Senhorita. E nessa expectativa, alica, encantadora e gentil, na esplendente belleza de sua radiosa mocidade.” A história da Senhorita América, mostra evidentemente o interesse das mulheres em acompanhar o futebol, na página 2, da edição de 19 de março de 1921.

Nomes de peso

 A popularização do futebol, na década de 1920, foi algo muito importante para a formação da identidade da ainda pequena população da recém inaugurada Belo Horizonte. Nesse contexto, a presença das mulheres nos jogos de futebol na capital e sua participação nos mais diferentes âmbitos que envolvem o esporte não é uma novidade. Assim, algumas personagens acabaram se tornando importantes figuras na história de algumas equipes da capital. 

Alice Neves, também conhecida como “Madrinha do Galo”, é uma das mulheres mais importantes da história do Atlético Mineiro. Ela era mãe de Mário Neves, um dos fundadores do clube, e teve um papel fundamental nos primórdios da equipe. De acordo com a Enciclopédia do clube, Alice costurou os primeiros uniformes e as primeiras bandeiras do time e organizou uma torcida feminina para acompanhar as partidas. Além disso, as reuniões dos jogadores aconteciam na casa de Dona Alice. 

Dona Alice Neves, “a mãe” do Atlético-MG Foto: GE/Reprodução

Dona Alice não é citada na história do clube no site oficial e sua importância foi resgatada através de apurações jornalísticas e por reivindicação de descendentes da família Neves. Na Enciclopédia do Atlético, publicada pelo autor Adelchi Ziller, Hugo Francarolli, um dos jovens fundadores do clube, explica a importância daquela senhora para o nascimento do Alvinegro. “O Atlético praticamente nasceu na casa dela. Era uma figura singular que os atleticanos de hoje não conheceram,” destacou Hugo. 

O clube buscou uma maneira de homenagear uma das suas figuras mais importantes. A criação de um bar especializado em feijão tropeiro no novo estádio do Galo, a Arena MRV, que leva o nome de “Dona Alice” foi a solução encontrada. Entretanto, a constante ligação de nomes femininos a bares e restaurantes reforça à uma mulher, que pode ser considerada informalmente uma das primeiras diretoras do time (já que nunca foi reconhecida por isso), apenas uma visão materna. 

As mulheres também tiveram um papel fundamental para o desenvolvimento e profissionalização dos outros times da capital mineira. Ignes Helena, foi a primeira funcionária de relações públicas do Cruzeiro Esporte Clube e foi fundamental para evoluir a comunicação e melhorar a imagem do time celeste no final da década de 1960. Redatora do caderno feminino do jornal Correio de Minas, a paulistana Ignes chegou em Belo Horizonte em 1958. Inicialmente, convidada para trabalhar no Atlético, ela acabou indo para o Cruzeiro a convite do então presidente Felício Brandi. A contratação veio após ela responder num programa na TV Alterosa que o Cruzeiro era seu time do coração. As diversas ações planejadas por ela ajudaram a tornar a relação com os torcedores mais próxima e expandir ainda mais a quantidade de fãs da equipe. Ignes foi, também, a única mulher autorizada por João Saldanha a entrar no Retiro dos Padres, concentração da Seleção Brasileira antes da Copa de 1970.

Ignes Helena Foto: One Football/Reprodução

Ângela Azevedo também foi uma funcionária que teve uma atuação importante dentro do clube azul e branco. No começo dos anos 1980, ela estava focada na relação entre as torcidas organizadas e o Cruzeiro. Dessa forma, envolveu-se no processo de criação da Associação das Torcidas Organizadas do Cruzeiro, uma iniciativa que também tinha o intuito de fortalecer o vínculo com os fãs. Por fim, Rita de Cássia deu sequência ao legado de suas antecessoras e atuou na área de relações públicas na década de 1990 e também realizou ações voltadas para o desenvolvimento do cruzeiro nacional e internacionalmente. 

Ângela Azevedo (centro), relações-públicas nos anos 1980, em partida da equipe feminina do Cruzeiro Foto: Estado de Minas/Reprodução

Além de Cruzeiro e Atlético, o futebol da capital mineira também é protagonizado pelo tradicional América. No hino oficial do clube, composto pelo torcedor do Atlético – MG, seu maior rival, Vicente Motta, entre 1969 e 1970, é exaltada a participação das mulheres na torcida do clube, presente no verso “As suas cores são alviverdes; tua torcida feminina é demais”, sendo um dos únicos clubes a abordarem essa pauta em um dos seus símbolos oficiais. 

Realidade paralela 

Com a popularização do esporte na capital, os estádios de futebol ficaram cada vez mais lotados e pouco controlados. Com isso, as situações de violência começaram a se tornar mais comuns. “Um funcionário estadual sofreu colapso cardíaco e outro levou uma cadeirada no joelho. Mais de dez môças e mulheres estão sendo atendidas no pôsto central, a maioria desmaiada. Uma foi atingida por um copo, levou cinco pontos no supercílio,” narra João Antônio em trecho da matéria “É Uma Revolução” da Revista Realidade de novembro de 1968. 

A partir disso, muitas pessoas passaram a pensar que as partidas de futebol não eram um espaço para mulheres. O esporte passou a ser associado por muitos à virilidade masculina.  Assim, a noção generalizada de que mulheres deveriam ser damas e recatadas era mais forte na sociedade e, baseado nesse ponto de vista, elas não deveriam frequentar os estádios. 

Daí para frente, são poucos os relatos de mulheres mais velhas que tiveram o hábito de ir ao estádio estimulado pelas famílias, pelo contrário, essas gerações em muitos casos eram desestimuladas ou até mesmo proibidas de frequentarem os jogos. 

Trecho do matéria “É uma revolução” da edição de novembro de 1968 da Realidade sobre uma idosa torcedora Foto: Arquivo Revista Realidade

Porém, desde essa época, uma parte considerável da população, ia contra essa ideia e assistiam aos jogos. Eram apaixonadas pelos seus clubes e se engajaram nas questões que envolviam as equipes e realmente participavam da experiência nas arenas futebolísticas. Uma outra passagem da matéria da revista Realidade, de novembro de 1968, evidencia esse fenômeno.

Trecho do matéria “É uma revolução” da edição de novembro de 1968 do Revista Realidade, novembro de 1968 Reprodução/Revista Realidade

Nesse contexto, os três grandes da capital têm torcedoras que representam essa luta das mulheres de poderem frequentar o espaço dos estádios. Ainda no Atlético, existem outras duas figuras muito importantes na história do clube: Maria Philomena Aluotto, conhecida como Dona Neném e considerada a “Rainha do Galo”, e Ana Cândida, carinhosamente conhecida como Vovó do Galo. Ambas foram torcedoras fanáticas do Atlético e acabaram ganhando notoriedade por estarem sempre presentes nos jogos. Nenem acompanhou os primeiros anos de existência do clube e Ana viu de perto a trajetória do time do século XX até falecer, em janeiro de 2022, aos 101 anos. 

À esquerda, Nenem Aluotto sendo reconhecida como Rainha do Atlético em 1927 Foto: Twitter/Reprodução

Dentro da torcida do América, podemos destacar uma torcedora ilustre que a mais de seis décadas representa seu amor pelo alviverde e simboliza a torcida feminina americana. Zuleine Epiphanio Garcia Leão, a Dona Zuzu, sempre esteve presente nos jogos do seu time de coração com sua clássica peruca verde. “É uma alegria muito grande, uma paixão que vem do fundo do meu coração ser torcedora do América,” relatou em entrevista para o Jornal Tempo, na comemoração aos 110 anos do clube.

Nenem, Dona Zuzu e a “Vovó do Galo” não são as únicas torcedoras que simbolizam a paixão mineira. Salomé Silva, que faleceu com 86 anos, dois dias após o rebaixamento do time de coração, se intitulava como “Salomé 5 estrelas” e marcou a arquibancada cruzeirense. 

A torcedora-símbolo, quando veio para Belo Horizonte do interior do estado, grávida, trabalhou em casas de família, lutou para criar seu filho e se apaixonou pelo Cruzeiro. Salomé era a cara das arquibancadas celestes, esteve presente em quase todos os jogos do clube, pelo Brasil afora fez questão de representar seu amor ao clube. “Sou apaixonada pelo Cruzeiro e é o time que me mantém firme,” disse Salomé após revelar ter faltado somente um pouco mais de 20 jogos do Cruzeiro na sua vida.

Salomé, ‘Vovó do Galo’ e Dona Zuzu, juntas no Mineirão Foto: Estado de Minas/Reprodução

Surgimento das torcidas organizadas

O contexto político da cidade de Belo Horizonte, apresentada como a cidade planejada que sediaria a capital de Minas Gerais, possui uma grande influência na chegada das torcidas organizadas na cidade, tendo como originador desse feito a Máfia Azul, torcida organizada do time do Cruzeiro. A partir dos anos 1970, o futebol belo-horizontino se fortifica com o surgimento das torcidas organizadas, visto que “é marcado por mudanças na organização dos campeonatos e na forma como o esporte passa a ser um espaço para a integração nacional e a constituição de um imaginário em torno da nação”, segundo o trabalho de conclusão de curso “Galoucura e Máfia Azul: a trajetória das principais torcidas organizadas de Belo Horizonte”, dos alunos da UFMG Bernardo Leal, Igor Marçal e Marco Túlio Bayma. 

De acordo com eles, o surgimento de grupos fortificados que eram marginalizados pela sociedade da classe alta, como os roqueiros e os punks, tiveram uma forte influência, além de pichadores que se reuniam em espaços diversos da cidade, nas torcidas organizadas. Dessa forma, começaram a aparecer formas de repressão contra esses grupos que eram caracterizados à margem da Belo Horizonte oficial. A partir disso, a Galoucura, por exemplo, começou a alugar espaços centrais, como uma sala no prédio do Maletta, para a confecção de carteirinhas dos associados, visto que os membros originários das torcidas organizadas tiveram origem da região centro-sul da cidade.

Na década de 1970 as brigas entre os bairros ganharam popularidade, grupos de homens jovens se reuniam nas discotecas e na vida noturna de Belo Horizonte para se confrontar. Eder Toscanini, um desses jovens, morador do bairro Floresta, resolveu criar seu próprio grupo de briga de bairro. Em conjunto com seu irmão Henri, fundaram a Máfia Azul, Máfia pois era o nome que os grupos de bairro adicionavam, por exemplo, Máfia Jaraguá e Azul pelo amor ao Cruzeiro. Isso de acordo com o próprio Eder em relato dado no livro “Galoucura e Máfia Azul A trajetória das principais Torcidas Organizadas de Belo Horizonte”

Nascia então, na altura do Colégio Batista, a Máfia Azul. Os dois irmãos conseguiram juntar seus amigos do bairro e o  intuito do grupo não era mais as brigas e sim apoiar o clube celeste. Eles se reuniam e iam para o Mineirão em conjunto, ficando sempre no mesmo lugar no estádio.

A Torcida só foi crescer mesmo e se popularizar no final dos anos 1980. Com as frequentes viagens para outros estados e a chegada de um francês torcedor do Cruzeiro, o intercâmbio cultural serviu de inspiração para a torcida e uma mudança na visão dos responsáveis, deixando de ter esse caráter de “turma de bairro” e se profissionalizando. A Máfia emergiu na cidade e expandiu, criando alguns comandos pelos bairros da cidade e até migrando para cidades do interior de Minas Gerais. Além disso, o surgimento e crescimento de uma torcida organizada do seu maior algoz também contribuiu para esse processo.

Torcida Organizada Máfia Azul no Mineirão em 1990 Foto: Facebook/Reprodução

A arquibancada do Atlético Mineiro era composta por algumas torcidas que se organizavam em conjunto, como, a Galo Táxi. Essa torcida, no entanto, era apenas um grupo de trabalhadores amigos que iam reunidos assistir os jogos. Isso era bastante comum na torcida alvinegra, amigos de escola, faculdade, trabalho, entre outros, se juntavam e iam para o Mineirão cantar e apoiar o seu time.

Porém, no ano de 1984 jovens torcedores se reuniram e decidiram ir ao estádio juntos e uniformizados. Esses uniformes, com o escrito de “Galoucura”, chamavam a atenção dos demais torcedores, por ser algo padronizado, trazia esse “ar de novidade” ali para a época. A atenção não se dava apenas pelo âmbito dos uniformes, a Galoucura era composta por torcedores mais empolgados, que segundo Leo James, um dos integrantes mais antigos da torcida, “os caras eram animados”

Com esse diferente torcer, a Galoucura foi ganhando espaço no cenário alvinegro, atraindo cada vez mais um público para se unir. Diferente do rival, essa torcida organizada já tinha uma mentalidade mais profissional e de expansão, aproveitando as famosas caravanas para atrair os jovens torcedores e unir forças com as demais torcidas de outros estados.

No início de 1990 a Galoucura já tinha se estabelecido como uma grande torcida organizada e se expandia não só por BH, mas por todo estado. Com as festas, eventos, compras de instrumentos a torcida revolucionou a arquibancada do Clube Atlético Mineiro e se mantém até hoje como a maior torcida organizada do time. Nesse período, “a SELT, Secretaria de Esporte, Lazer e Turismo, que forneceu o material para a confecção das 50 primeiras bandeiras da Galoucura, através de contato estabelecido por Mundinho com o órgão”, de acordo com o TCC.

Caravana de membros da Galoucura em 1985 Foto: TOG/Reprodução

Outro fator que influenciou na consolidação das torcidas organizadas na grande BH, foram as chamadas gincanas de bairro, que faziam que tanto a Galoucura quanto a Máfia Azul, ocupassem esse espaço para transmitir seus ideais. Ou seja, o principal objetivo político das torcidas organizadas estava em ocupar as ruas por meio de seus grupos urbanos. As torcidas organizadas possuem um viés político, exemplo que vemos até hoje, como a torcida Galoucura que em 2022 furou o bloqueio organizado pelo público da extrema direita no país, que estava impedindo que algumas torcidas pudessem chegar à locais como o estádio em que o Atlético Mineiro iria realizar uma partida. 

Vale destacar que na história das principais torcidas organizadas de Belo Horizonte a presença feminina é apagada a todo momento, assim como acontece na história dos próprios clubes. O processo das mulheres conquistarem seu lugar no futebol, vai além do campo. Foram várias conquistas individuais e coletivas para ocuparem as arquibancadas e o seu lugar dentro das organizadas. 

Histórias das arquibancadas

Como já citado, a conquista do espaço feminino nos estádios de futebol é resultado de muita luta ao longo dos anos. As torcidas organizadas, que são conhecidas por terem uma maioria absoluta de homens, aos poucos vêm se tornando ambientes também para as mulheres.

“Meu pai sempre foi atleticano. Lembro que todas as tardes após a aula eu ouvia Itatiaia com ele e, assim, passei a gostar de futebol. Em 2006, comecei a ir a alguns jogos, com o incentivo de amigas, que um dia me chamaram pra ir no aniversário de 22 anos da Torcida Organizada Galoucura (TOG). Lá me apaixonei e decidi que iria fazer parte,” conta Jennifer da Silva, de 35 anos. Ela passou dois anos ativa na torcida, até o momento que levou uma punição, após cantar funk em uma festa e foi, por um ano, suspensa da organizada. “Naquela época o machismo era muito nítido. Demorei muito a ter coragem [de participar] novamente, fiquei 9 anos fora e retornei a convite da gestão da regional norte em 2018.” 

Atualmente, Babi, como foi apelidada pelos amigos da TOG, percebe uma presença feminina muito maior no contexto das organizadas. “Hoje as coisas são um pouco mais fáceis e tenho mais diálogo com a atual gestão. Nunca vi tantas mulheres. Mesmo com o  espaço sendo predominantemente masculino, muitos amigos e colegas homens protegem a gente e nós mesmas aprendemos a nos posturar sem medo do sexo oposto.” 

Na visão da promotora de vendas, a crescente dos movimentos feministas têm uma grande influência no aumento do número de mulheres nas torcidas organizadas. “Na minha percepção, a luta fora das arquibancadas ajudou. As mulheres estão cada dia mais conquistando espaços importantes no cenário nacional e mundial e no futebol não seria diferente,” analisa. “Todas tinham vontade [de se filiar às torcidas] e tinham medo. Hoje, muitas se sentem mais à vontade para ir [aos jogos], porque, além da segurança pública, os nossos agregados não toleram discriminação e situações de assédio, por exemplo. Defendemos umas às outras, então, esse medo, que era o que nos afastava, diminuiu,” explica. 

“Temos que dar as mãos nos unir para que cada dia seja um espaço melhor pra se conviver. Estamos ali para cantar, vibrar e fazer o time ganhar. Todos por um só ideal,” conclui.

Mulher balançando bandeira do Movimento Feminino da TOG Foto: Jennifer da Silva/Arquivo Pessoal

No outro lado das arquibancadas também é perceptível essa maior participação feminina. “Acho que a sociedade de um modo geral foi amadurecendo. O Cruzeiro começou a lançar campanhas de incentivo à presença de mulheres no estádio, isso tudo contribuiu com o acesso à torcida organizada. Deixou de ser um tabu mulher gostar de futebol,” complementa Anna Cristina Liberato, uma das líderes do Comando Feminino da Máfia Azul, maior torcida organizada do Cruzeiro.

“Além de apoiar em eventos e na presença de arquibancada, temos a função de agregar e dar visibilidade ao público feminino. Lançamos materiais de acordo com o que as meninas pedem. Desenvolvemos ações, como orientação sobre o câncer de mama. Agora, por exemplo, estamos com uma campanha contra o feminicídio,” explica a psicóloga, de 33 anos. 

Comando Feminino da Máfia Azul na final do Campeonato Mineiro Feminino de 2019 Foto: Máfia Azul/Reprodução

Bruna de Araújo, diretora de uma organizada do América, contou sobre sua trajetória até o cargo mais alto da instituição: “Eu sempre senti a necessidade de fazer algo a mais, algo que eu pudesse fazer a diferença como torcedora, sabe? Então eu conheci a Torcida Seita Verde (TSV). Entrei como integrante, mostrando toda a minha vontade de fazer parte daquilo. Ser mulher dentro de uma torcida organizada é ainda mais impactante, lutar pelo meu lugar e pelo de todas as mulheres. Com o passar do tempo, e participação na torcida, em 2022, eu me tornei Diretora da TSV, e continuo até hoje.” 

A jovem, de 24 anos, enxerga seu mandato como uma inspiração. “Em grande parte, acredito que as mulheres que querem se aproximar se sentem mais seguras, pois eu já estou lá envolvida, e tenho certeza que elas criam mais confiança e acreditam que podem estar ali também,” inicia. “Onde tem outras mulheres, eu me sinto mais livre para ser eu, e acredito que outras mulheres também pensam o mesmo,” reflete. 

“Hoje, muitas mulheres perceberam que podem tocar, bandeirar, fazer tudo dentro de uma TO. Não são todas que permitem, não todas que estão abertas a isso, mas com o passar do tempo acredito que estamos evoluindo. No nordeste, por exemplo, já podemos ver que as mulheres estão enfrentando o machismo nas arquibancadas,” finaliza.  

Bruna de Aráujo, da bateria da Torcida Seita Verde durante jogo do América Foto: Lucas Pousas

Movimentos organizados 

A questão das mulheres no futebol é bem mais do que a presença física. Para elas se sentirem acolhidas, é necessário que ideais sejam seguidos e que situações machistas sejam combatidas em todos os ambientes e não só nos estádios. Com esse objetivo surgiu o Grupa Galo.

Em 2016, durante o desfile de lançamento da coleção de uniformes do Atlético para a temporada, diversas mulheres se revoltaram nas redes sociais após as modelos desfilarem na passarela apenas de sutiã e calcinha, enquanto os modelos mostravam as camisas e calções do clube. A objetificação do corpo feminino entrou em pauta e juntou torcedoras de diferentes cantos em um só objetivo: diminuir a misoginia em relação ao Galo.

Juntas, elas escreveram uma carta, direcionada à diretoria do time de coração, mostrando sua indignação. A jornalista Elen Campos, que fazia parte do grupo, publicou o texto no blog que escrevia para a ESPN, onde pôde ser acessado pelo Brasil inteiro.

“Na época, as mulheres [que fizeram a carta] foram atacadas e massacradas por outras mulheres e por homens. Começaram a desdenhar, falavam aquele ‘grupelho’,  ou ‘aquele grupinho’. Uma de nós então disse: ‘Não é grupo é uma Grupa’, já que é formado por mulheres,” explica Luciane Soares, de 53 anos. “Muitos achavam que nosso discurso era mimimi, hoje alguns já entendem o quão é necessário a mudança de postura. Não dá para chamar os cruzeirenses de ‘Maria’, por exemplo, ou ficar gritando ofensas homofóbicas a cada tiro de meta,” conclui.

Além de se posicionarem contra ações, as mulheres do coletivo também mostram insatisfações individuais no clube. “Quando houve o caso Robinho, algumas mulheres colocaram faixas nas arquibancadas pedindo que o contrato dele não fosse renovado, e a Grupa foi taxada de responsável. Na época falaram que estávamos julgando e que não tinham provas. Ele já tinha sido acusado e condenado. Não fomos nós, mas concordávamos com a faixa. Em 2022, a condenação definitiva saiu,” relembra a servidora pública, sobre o caso de 2017, onde a Sede de Lourdes foi alvo de faixas com dizeres contra o jogador.

O mais recente linchamento sofrido pela Grupa foi entre 2021 e 2022 ao se posicionarem contra a contratação do técnico Cuca, acusado pelo estupro de uma adolescente, na Itália em 1987. “Não se trata de cancelar o cara, o que sempre pedimos é que ele assumisse seu erro e trabalhasse com seus comandados para que não agissem da mesma forma com mulheres,” esclarece.

Bandeiras da Grupa Galo em destaque no Mineirão Foto: Grupa Galo/Reprodução

O Grupa Galo, que completou 7 anos no último dia 15 de fevereiro, é um dos maiores coletivos de resistência feminina no futebol de Minas Gerais, com mais de 100 associadas. “A gente torce muito para que a Instituição Clube Atlético Mineiro abrace e cumpra a função social que lhe cabe, fazendo trabalhos com as torcidas, com os atletas, com os colaboradores,” enfatiza Luciane, que além de apoiadora do Grupa, é membro da torcida organizada Resistência Alvinegra.

A luta continua

É evidente que mesmo que as mulheres ainda estejam nas torcidas organizadas, ainda são minoria em quantidade e importância. Poucas são aquelas que conseguem ascender dentro dessas instituições e realmente se impor. Entretanto, essa realidade não é exclusiva das organizadas, mas representa o futebol brasileiro como um todo. 

Segundo pesquisa de 2021 da revista Gênero e Número, entre os 255 dirigentes (considerando presidentes, vice-presidentes, secretários, superintendentes e diretores) de 25 clubes brasileiros (os 20 da Série A e 5 da Série B), apenas 7 são mulheres, representando cerca de 2,7%. Esse cenário se repete também na maior instituição futebolística do país, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). 

A CBF existe desde 1979 e nesses 44 anos nunca teve uma mulher em cargos de gestão – apenas em 2020, foi criado um departamento exclusivo para o desenvolvimento do futebol feminino e a ex-capitã da seleção feminina Aline Pellegrino foi contratada como coordenadora de competições femininas, e Eduarda Luizelli, como coordenadora das seleções brasileiras femininas. É possível voltar às origens do futebol em Belo Horizonte, onde Dona Alice Neves, maior exemplo de doação à um clube, nunca chegou a ser considerada dirigente do Atlético.


*Reportagem produzida no “Laboratório em Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismo e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira, doutorando do PPGCOM/UFMG