Casa histórica de clube celeste, Mineirão se divide entre futebol e shows e irrita torcedores e diretoria do Cruzeiro

Por André Hermeto, Caio Rodrigues, João Ventura, Pedro Gonçalves e Vagner Cardoso*

O Mineirão foi inaugurado em 1965 em um jogo entre a Seleção Mineira (na época, era comum a junção dos melhores jogadores de cada estado para disputa de campeonatos entre essas seleções) e o River Plate, da Argentina. Desde então, o Gigante da Pampulha recebe os jogos dos grandes clubes de Minas Gerais, sendo palco de história tanto para o Atlético, quanto para o Cruzeiro. O clube celeste, em especial, criou laços fortes com o estádio, pois sempre o refere como O Gigante da Pampulha, apelido dado pela localização do estádio, próximo a Lagoa da Pampulha, ponto turístico importante da cidade de Belo Horizonte. 

No estádio o clube conquistou seus principais títulos e construiu um legado importante no futebol brasileiro, se consolidando como um dos grandes do país. Entretanto, nos últimos meses, essa relação de grande sucesso quase chegou ao fim. Após diversas reclamações do Cruzeiro Esporte Clube a respeito das condições em que o estádio é entregue para as realizações de partidas de futebol foi anunciado que os próximos shows no Mineirão não acontecerão dentro de campo, para que o gramado não seja afetado nas partidas de futebol. Esse debate percorre o Mineirão desde o repasse da administração do estádio para a Minas Arena, em dezembro de 2010, visando a reforma para a Copa do Mundo de Futebol, ocorrida no país em 2014.

Foto de Adriano Ferreira

O Gigante da Pampulha

No Mineirão, o Cruzeiro conquistou duas Libertadores, seis Copas do Brasil, quatro Brasileiros, além de diversos títulos mineiros. O estádio também foi palco da maior conquista do Atlético, na Libertadores de 2013, de dois campeonatos brasileiros e duas copas do Brasil, inclusive sendo palco de uma final inédita entre Atlético e Cruzeiro nesta última competição. Apesar disso, o sentimento de paixão e identificação com o estádio é visivelmente maior entre cruzeirenses, muito por conta do carinho que o torcedor atleticano tem com o Independência. O clube alvinegro chegou a ficar mais de um ano sem perder no estádio. O Cruzeiro, que também jogou no estádio localizado no Horto no ano de 2012, não lutou por grandes coisas, e não atraiu essa mística para si. 

O ex-jogador e ídolo da torcida cruzeirense, Tostão, em entrevista ao periódico Lance, em 2015, falou sobre a importância do Mineirão para os clubes mineiros, visto que o futebol no estado era desconhecido nacionalmente. A força de se ter um grande estádio ainda hoje é importante e percebida. Clubes como Palmeiras, Corinthians, Grêmio e recentemente o Atlético reformaram ou construíram estádios, seja para modernizar ou para aumentar a capacidade e atrair cada vez mais público. Contando ainda que esses estádios são de propriedade dos clubes, enquanto o Mineirão pertence ao Estado de Minas Gerais (em comodato para a empresa Minas Arena), essa relação de pertencimento, principalmente dos torcedores, que passaram as últimas décadas tendo o estádio como sua segunda casa, vai enfraquecendo aos poucos. Enquanto boa parte da torcida cruzeirense acredita que a melhor solução seja um acordo benéfico com a Minas Arena, muitos torcedores já consideram uma boa ideia a construção de um novo estádio. O mandatário celeste chegou a fechar parceria com a empresa WTorre, construtora do Allianz Parque, estádio do Palmeiras, para um possível novo estádio do Cruzeiro, mas até a realização dessa matéria, não havia notícias públicas a respeito.

Condições do gramado

O cerne de toda a briga, na situação atual, é a condição do gramado para a realização de jogos. Esses problemas começaram depois que diversos shows realizados no estádios eram dentro de campo, afetando as condições de jogo. Outros estádios também recebem diversos shows por ano, como o já citado Allianz Parque, mas o estado do gramado continua aceitável para a prática de futebol, seja pela retirada do gramado nesses shows ou uma boa estrutura para tratamento da grama,  o que não acontece no Mineirão. 

Esta ‘briga’, apesar de enfatizada nos últimos meses, começou após a reforma do Mineirão, iniciada em 2011, para a realização da Copa do Mundo em 2014. Na época, o estádio, antes administrado pela Ademg Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (ADEMG), órgão estatal, foi concedido à Minas Arena por meio de Parceria Público Privada (PPP). Neste processo, o conceito de estádio de futebol administrado por um órgão público foi substituído. O Mineirão a partir dali se tornaria um palco de espetáculos, recebendo ainda futebol, mas também diversas outras atrações artísticas e culturais, o que era de se esperar, visto que a empresa faria o possível para capitalizar de todas as maneiras com o estádio.

Isso afetou o relacionamento dos clubes mineiros com o Mineirão. Já em 2013, nos primeiros momentos após a reabertura do estádio, o então presidente do Atlético, Alexandre Kalil, já criticava a condução da Minas Arena, ficando com aproximadamente 50% dos lucros de bilheteria dos jogos e destinando parte do estádio, em especial camarotes, a Minas Arena. Em entrevista, Kalil declarou que o Atlético só jogaria no Mineirão em último caso. Em 2016, o então presidente do Cruzeiro, Gilvan Tavares, afirmou que parou de pagar a Minas Arena depois que o Atlético teria tido privilégios no estádio, jogando a Libertadores sem precisar pagar o aluguel, etc.

O Cruzeiro e o Mineirão pré-Minas Arena

É seguro dizer que as relações do Cruzeiro com o Mineirão começaram com o pé-direito. Pouco mais de um ano e dois meses após a inauguração do Gigante da Pampulha, estima-se que noventa mil cruzeirenses assistiram o time de Tostão e Dirceu Lopes golear o Santos de Pelé, atual campeão brasileiro, por 6×2, em uma final que marcou a primeira grande conquista do clube celeste. A final contra o Santos levou o Cruzeiro a um patamar de destaque no cenário futebolístico nacional.

Elenco do Cruzeiro campeão da Taça Brasil de 1966 (Foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas)

“O Cruzeiro foi o primeiro time mineiro a conquistar os mais diversos títulos no Mineirão: Mineiro, Taça Brasil e Copa Libertadores. Isso logo nos seus primeiros anos. Com isso, vejo uma sensação natural de ser a casa do cruzeirense. E desde então é assim. Mesmo depois da reforma, o Cruzeiro conquistou muitos títulos, logo no primeiro ano da reforma, dois brasileiros seguidos.”, comenta Bernardo Motta, ex-diretor do programa de sócio do Cruzeiro.

Durante a maior parte dessa relação, o Cruzeiro tratou suas necessidades com a ADEMG, uma autarquia estadual com personalidade jurídica de direito público e autonomia administrativa e financeira, estabelecida junto à inauguração do Mineirão. A criação da ADEMG tinha como propósito principal proporcionar um gerenciamento mais eficiente e profissional dos estádios, promovendo a organização das atividades esportivas e a melhoria das condições para os eventos realizados. Além disso, visava também garantir a segurança dos torcedores e oferecer um ambiente adequado para a prática esportiva. Seu funcionamento envolvia a manutenção dos estádios, a operação dos eventos esportivos e a gestão dos contratos de locação com os clubes e demais entidades que utilizavam as instalações. A entidade cuidava da agenda dos estádios, estabelecendo cronogramas para jogos, eventos e manutenções necessárias.

A relação do Cruzeiro com a entidade era baseada em parceria e utilização mútua dos estádios administrados por ela. O clube mantinha um contrato de locação com a ADEMG para a utilização do estádio em suas partidas oficiais. O acordo envolvia o pagamento de aluguel pelo Cruzeiro para o uso do Mineirão, bem como o cumprimento de regulamentos estabelecidos pela ADEMG para a operação do estádio. O Cruzeiro, como um dos principais clubes do estado e frequentemente disputando competições de grande visibilidade, desempenhava um papel significativo na ocupação e receita da organização. 

O Mineirão, sob a administração da ADEMG, fornecia ao Cruzeiro uma estrutura adequada e segura para a realização de seus jogos, com capacidade de público e infraestrutura necessárias para atender às demandas do clube e de sua torcida. A relação clube e ADEMG, ao longo dos anos, passou por poucos imbróglios, com pouquíssimos eventos que dificultassem a realização de jogos ou acordos financeiros, como os vivenciados hoje com a Minas Arena. Embora grande parte dos acordos firmados ao longo dos anos não tivessem seus detalhes disponibilizados ao público, em janeiro de 2001, o canal de notícias “terra” revelou os pormenores de um contrato fechado entre a ADEMG e o Cruzeiro, que incluía um repasse de 10% das arrecadações com bilheteria dos jogos, além de um valor fixo de R$ 10 mil. Sobre o valor bruto de vendas de placas de publicidade, era cobrado também um percentual de 10% do valor bruto.

Surgimento da Minas Arena

O governo de Minas apresentou em fevereiro de 2009 o projeto de modernização do Mineirão. O projeto apresentado assegurou a preservação da fachada original devido seu tombamento em outubro de 2003 pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (“CDPCM-BH”). Posteriormente, em maio de 2009, Belo Horizonte foi confirmada como uma das cidades-sede da Copa do Mundo de 2014.

Em 2010, o estádio foi fechado para sua maior reforma desde sua inauguração, e seus últimos eventos foram o jogo Atlético 0 x 1 Ceará, em 6 de junho, e um show do Skank em 19 de junho. O fechamento eternizou os recordes de público que o estádio presenciou, seja com sua fase para mais de 100 mil pessoas até 2004, ou à redução para 75 mil, devido a regras de segurança impostas pela FIFA. O público de 132.834 pessoas registrado em 1997, na final do Campeonato Mineiro, disputada por Cruzeiro e Villa Nova e vencida pelo time celeste, é o maior público registrado na história do estádio e certamente imbatível, uma vez que hoje a capacidade da arena é de menos da metade do público batido à época.

Foto de Gil Leonardi/ Secom-MG

A reforma no estádio – que custou cerca de R$670 milhões, mas que tinha orçamento inicial de R$400 milhões – se deu pela parceria das construtoras Construcap, Egesa e HAP Engenharia, que fizeram obras de rebaixamento de gramado, construção da esplanada de aproximadamente 80 mil m² e que comporta eventos, instalação de amortecedores, extensão da cobertura, redução da capacidade que era de quase 76 mil pessoas para 64 mil, além da modernização geral. Juntas, as três empresas de iniciativa privada constituem a Minas Arena, criada exclusivamente para administrar o novo Mineirão por 25 anos.

Em novembro de 2012, a nova arena foi o primeiro estádio da Copa 2014 a receber o plantio do gramado, e em dezembro, foi reaberto ao público, tornando-se o segundo estádio a ser entregue para a Copa, após o Castelão de Fortaleza. A reinauguração contou com um show da banda Jota Quest na nova esplanada e recebeu cerca de 20 mil pessoas.

A primeira partida no novo Mineirão aconteceu sob críticas dos 59.968 torcedores que assistiram no dia 3 de fevereiro de 2013 à vitória do Cruzeiro por 2 a 1 sobre o Atlético, pelo Campeonato Mineiro. As faltas de água e luz foram os principais questionamentos que foram minimizados pelo então governador de Minas Antônio Anastasia, que classificou o evento como satisfatório e ressaltou só ouvir elogios.

O novo Mineirão

A relação entre o Cruzeiro e a Minas Arena, nova administradora do estádio, começou a entrar em rota de colisão ao longo dos anos.  Nos anos iniciais, existia uma certa paz com o acordo firmado. A concessionária foi responsável pela reforma do estádio nos padrões FIFA para a Copa do Mundo e em troca, ficou com a administração do estádio.

Nos dias de jogo, o clube locatário, seja Atlético ou Cruzeiro, tinha direito a comercialização de 54 mil ingressos e as receitas advindas do mesmo e dos estacionamentos do Mineirão, enquanto cobriam as despesas técnicas do estádio nessas datas (funcionários, banheiros, manutenção, limpeza, etc). A Minas Arena explorava nos eventos esportivos e não, a receita obtida dos ingressos além dos 54 mil cedidos ao locatário, dos bares, restaurantes, produtos, camarotes e áreas VIP do estádio.

Essa distribuição de receitas é um dos questionamentos do Cruzeiro SAF, sobre a administração do ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Segundo Samuel Lloyd, diretor comercial da Minas Arena, em entrevista para o GE, o Cruzeiro SAF solicitou renegociação desses termos para ter participação nas vendas de Camarotes, áreas VIP, exploração da venda de alimentos e bebidas do estádio e que essa distribuição não se ativesse aos jogos apenas do Cruzeiro, mas aos outros eventos realizados pela Minas Arena no Estádio. A concessionária rechaça as ofertas da SAF cruzeirense.

Outro questionamento se refere às dívidas do Cruzeiro com a Minas Arena. O clube mineiro devia cerca de 32 milhões a concessionária advindas de gestões que datam desde a abertura do novo estádio. A Minas Arena aceitou um acordo que reduziria o passivo para pouco mais de 11 milhões pagos até 2030. Partindo de um entendimento de que o Cruzeiro SAF não teria o compromisso com essa dívida ou esse acordo, a gestão de Ronaldo não realizou o pagamento das parcelas desse acordo, agravando ainda mais a relação entre as partes.

A postura mais agressiva do Cruzeiro nas negociações deve-se também à postura do rival, Atlético. O Galo mineiro está se preparando para a inauguração de um estádio próprio no Bairro Califórnia, a Arena MRV. Com a ida do Atlético para seu novo estádio, o Cruzeiro assume o monopólio futebolístico do Mineirão e se torna o único clube a pleitear negociações com a Minas Arena.

A concessionária é obrigada por lei, a realizar 66 jogos de futebol por ano, no Mineirão. Sem o Atlético (Arena MRV) e o América (Arena Independência), o Cruzeiro torna-se a opção quase única de manutenção das condições contratuais. A Minas Arena respondeu colocando o estádio à disposição nas 66 datas previstas, afirmando que a não realização dos jogos seria dos clubes locatários, que optaram por não aceitar os termos ali e jogar nas datas disponibilizadas pela concessionária.

Bernardo Mota, ex-gerente de Marketing e do Programa Sócio Torcedor do Cruzeiro, com passagens pelo Vasco e atualmente no futebol europeu, cedeu entrevista à nossa coluna, discordando do mau uso do estádio na área futebolística e o rompimento entre Cruzeiro e concessionária. “Entendo que o Estádio é um bem público que deve promover o futebol no Estado, ao qual se inclui o Cruzeiro e que todos os esforços devem ser feitos para a (função social) na qual o estádio foi construído em 1965.” O Mineirão, entretanto, vê uma quantidade alta de datas relacionadas a eventos não esportivos no estádio, como a realização de shows e eventos culturais dentro do gramado, impossibilitando a realização de jogos ali, além de contribuírem para a deterioração do gramado, gerando multas da CONMEBOL, confederação de futebol sul-americana no ano de 2023. 

Gramado do Mineirão em Atlético x Athletico-PR, pela Libertadores. Clube foi multado em cerca de 150 mil reais pela CONMEBOL| Foto: João Godinho/O TEMPO

Essa é outra crítica apresentada por Bernardo, atualmente Head de marketing no Alverca de Portugal. “Enquanto os eventos e shows não faziam o Cruzeiro jogar em outros estádios e, enquanto o gramado não era deteriorado, todos sempre apoiaram que o uso do estádio fosse feito também para outras finalidades. Mas, nas condições atuais, realmente é um absurdo o Cruzeiro não poder jogar ou quando joga, ter um gramado ruim para os seus jogos”. A alta expectativa fez o programa de sócios cruzeirenses ser o com maior elevação no ano de 2014, logo após a reinauguração do Mineirão para a Copa do Mundo. Esses números também têm sofrido baques com a deterioração da relação entre o time celeste e a administradora do Estádio na Pampulha. 

“O programa de sócios é feito para todos, mas a sua grande maioria de adeptos está concentrada em BH. Quem criou o hábito de ir ao Mineirão, em sua maioria, foi o belorizontino. Quem vinha do interior, também tinha essa possibilidade, pois o estádio comportava a todos. Então, todos estes foram prejudicados. Um dos pilares centrais de um programa de sócios bem sucedido é ter uma casa definida, onde quem adere, consegue se programar para a ida aos jogos com mais antecedência, melhorando a experiência no dia de jogo. Hoje a torcida percebe que o foco do Estádio não é o futebol. E isso afeta toda a indústria envolvida”, completa Mota. 

A discussão em torno do uso do Mineirão vai além das reclamações recentes sobre shows que afetam o gramado. Ela remonta à época em que o estádio passou a ser administrado por uma empresa privada, levando a um conflito de interesses entre os clubes e a empresa responsável. Enquanto o Mineirão possui um rico legado e importância histórica para o futebol mineiro, as divergências sobre sua utilização para outros eventos não relacionados ao esporte continuam a alimentar o debate sobre o futuro do estádio e seu papel na cidade de Belo Horizonte e uma resolução parece estar longe do fim.


*Reportagem produzida no “Laboratório em Comunicação Social: Belo Horizonte, jornalismo e futebóis”, coordenado por Ives Teixeira, doutorando do PPGCOM/UFMG